A Garganta da Serpente
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Prelúdio

(Viviani Ketely)

"Prelúdio, o que precede o que anuncia, eu deveria saber o que se anunciava".

Ela sorri, afinal era a respeitada esposa do pastor, como desejou estar ali.

"Jamais voltarei aquele lugar jamais, por Deus jamais". - seus olhos se enchem de lágrimas ao ver a devoção com que o marido conduz o culto.

"Em nome de Deus abençoo a todos" - diz o pastor depois de ser ovacionado, pela fervorosa plateia de uma pequena Igreja nos confins gelados de algum lugar.

O pastor conduz seu rebanho à saída. Por fim volta-se para a mulher e diz:

"Pode ir querida, eu fecho tudo e recolho os hinos".

"Esta bem meu amor, Romy fique e ajude seu pai".

O pastor fica incomodado com aquela ordem. Um incomodo sobrenatural.

"Não há necessidade, está frio, leve-o com você".

"Não, insisto Romy fica".

O pastor observa o pequeno garoto de apenas nove anos, recolher os hinos, da a ele as costas e começa a fechar as janelas, logo depois sente aquela 'coisa' pequena frágil indefesa, atrás de si.

"O que foi Romy?".

"Já recolhi, os hinos senhor".

O pastor abaixa a cabeça, algo lhe sufoca, algo que ele gostaria de esquecer, algo de que ele muito se envergonha, "ele não é meu filho, não é meu filho, é filho daquela vagabunda sabe Deus lá com quem. Não! Não posso... o que é isto?".

"Obrigada Romy, sente-se aqui, sente-se ao meu lado". Fala trêmulo.

O menino gentilmente obedece ao padrasto, este acaricia seus sedosos cabelos antes de abraçá-lo, antes de tomar seu pequenino corpo para o prazer.



Cinco anos depois, um sorumbático garoto caminha por ruas estreitas e escuras, desejando nunca chegar em casa, mas infelizmente suas preces não são atendidas e ele chega, mas deveriam ter sido afinal ele é o enteado do pastor.

"Chegou tarde novamente Romy, o que há com você garoto?".

O menino passa cabisbaixo, enquanto sobe as escadas ouve a voz da mãe.

"Volte Romy e responda a seu pai".

E ele responde:

"Ele não é meu pai".

O pastor impede a mãe de ir atrás do garoto e se senta diante de uma mesa farta para o jantar, diverte-se com seu filho de dois anos e suas caretas, este sim carne de sua carne.

Romy se preparava para deitar quando a mãe entra em seu quarto.

"Não pode falar assim, com seu pai - ela agarra o braço do menino e continua" "Você não têm ideia do inferno que ele nós tirou, é uma pena, pois se pudesse se lembrar talvez não fosse tão mal agradecido".

"Quero a chave do meu quarto".

"Por quê? Nunca trancamos as portas, e não vamos fazer agora, somos uma família, não precisamos destas bobagens".

Por volta das três horas da manhã, Romy olhava para o teto do quarto, quando ouviu alguém tentando abrir a porta, mas ele tinha colocado uma cadeira encostada, impedindo por hora a incomoda visita. Ele sentou-se na cama agarrou os joelhos, lembrava um bicho acuado pelo caçador.

"Tem que acabar... Vai acabar um dia?".



Romy caminha pelo bosque em direção a escola.

"Querido Romeu, porque sempre temos que passar por este bosque? Pela estrada vamos muito mais rápido?".

"Por quê: daqui posso vê-la".

"Ver o quê?". "Ah! A velha estrada abandonada, ninguém mais passa por aquela estrada velha, todos pegam a rodovia, quanta bobagem, Romy".

Romy olhava para a velha estrada como quem olha para o paraíso.

"Esta estrada nós leva para longe daqui".

"A rodovia também".

"Não é a mesma coisa, um dia Meany vou seguir por ela e nunca mais voltar, nunca mais, ninguém vai ouvir falar de mim, não deixarei rastro, só 'ela' pode me levar... pode me arrancar daqui, desse inferno".

"Credo! Tá bom! Você e esquisito, mas hoje se superou... Romy tá acontecendo alguma coisa?".

"Não está acontecendo nada. Sempre acontece".



Romy jogou a mochila encima da cama, encostou a porta e tirou a camiseta, foi então que percebeu que não estava sozinho, o pastor calmamente retira a chave do bolso e mostra a ele.

"E isto que tanto quer? - Romy não responde - sinto muito Romy, não vai tê-la. Poderia ser tudo tão diferente Romy, se você, se você entendesse o quanto eu o amo".

"Você me dá nojo, odeio você, você não presta".

O pastor agarra o menino pelos cabelos e diz:

"Repita, repita moleque".

E Romy repete cada palavra, enfaticamente.

"O SENHOR me dá nojo, odeio o SENHOR, o SENHOR não presta".

O pastor se enche de ódio e grita.

"Vou ter que corrigi-lo, como faz um verdadeiro PAI, você me desrespeitou dentro de minha própria casa, eu que lhe dei de comer, que lhe abriguei, seu... seu, e sussurra em seu ouvido, delicioso".

Ele bate no menino, até este cair ao chão sem forças, depois fica fácil abusar do seu corpo franzino, de maneira asquerosa.



A coisas que não se pode explicar, não há como absorve-las, aceita-las, é melhor virar as costas, fingir não ver, dói menos.

O pastor sobe ao palco, coloca a mão no peito, suspira, e finalmente fala a seu fieis cegados.

"Obrigada pela presença de todos, hoje não posso, realizar o culto, fiz algo horrível que muito me envergonho". Falou olhando para Romy.

"Aproxime-se Romy", o coração de Romy quase saltou pela boca.

'Venha Romy aproxime-se, eu lhe peço FILHO "".

Romy levanta-se e caminha lentamente em sua direção "".

"Levante a camisa Romy, por favor".

Todos ficam embasbacados, Romy obedece e todos veem as marcas da surra que o menino levou.

"Perdoem-me, fui quem fez isto, fui eu quem o castigou - os fieis olham perplexos - perdi a cabeça diante de sua falta de respeito, diante da sua falta de fé, Romy me disse coisa horríveis que jamais pensei que ouviria de um filho, eu o corrigi como PAI, quero apenas lembrar a todos que 'seu pastor' também é um homem, também é pai e quero o melhor para meus filhos - ele ajoelha-se diante de Romy e diz - Perdoe-me filho?".

Os fieis se levantaram e aplaudiam o pastor, naquele momento ele praticamente virou um Deus.Romy saiu cabisbaixo, sobre ele apenas olhos de desaprovação.



"Nunca mais vou sair de casa".

"Esqueça Romy, logo todos vão esquecer também, olhe admire sua estrada, só não se jogue no vale, vamos descer até ele? Desculpa hoje você não está para brincadeiras".

"Meany, ele mentiu, ele mentiu, ele não presta, ele e imoral".

"Romeu pare! O que está dizendo".

"Ela abusa de mim!".

"Pare! Romy eu não quero ouvir... pare!".

Romy se sentiu aliviado após de ter contado tudo, estava decidido a contar tudo à mãe também.

Não deveria tê-lo feito Romy, não devia tê-lo feito.

Sua mãe levou as mãos à boca, sufocando seu grito de ódio.

"Como pode? Como pode? Que Deus lhe perdoe, seu pai não merece tamanha injuria, não sabe o mal que está fazendo, não sabe?".

"Mas é verdade, eu juro".

"Cale a boca, filho do cão".

Ela arrasta o menino, para o banheiro e esfrega a boca dele até sangrar com sabão, não adiantou os gritos do menino, seus pedidos de socorro, ela estava enlouquecida, cheia de ódio.

"Eu não vou perder tudo! Eu não vou perder tudo, a família que construí o respeito que conquistei, por sua causa, você não presta como seu pai"."Sabia que seu pai era um bandido, BANDIDO, mentiroso assim como você olhe para mim - ela levanta a cabeça do menino olha bem no fundo de seus olhos e continua - se você continuar com estas mentiras, eu lhe mato, ouviu bem eu lhe mato. Agora me responda contou a mais alguém? Não minta".

"Meany, contei a Meany".



Poderia ter acabado ali, naquele momento, tudo foi culpa de Romy, ele não deveria ter continuado um dia às coisas passariam tudo passa, todos iam acabar esquecendo, Romy ia crescer, iria embora, a sua estrada o levaria para longe dali, então no fundo ele foi o culpado.

"O que fez na boca?".

"Meany minha mãe lhe procurou?".

"Não... não, aonde vai?".

"Caminhar pela estrada velha".

Romy fazia questão de pisar no tapete de folhas secas, claros sinais do outono, assim como claros sinais de esperança se desenharam em seu rosto.

"Eu não tenho muito Meany, para dizer a verdade não tenho nada, mas se existe uma coisa que eu quero ter, é liberdade. Ninguém Meany, vai mais me humilhar, eu juro Meany um dia. Um dia vou achar um jeito de limpar meu corpo e minha alma, das lembranças daquele maldito, vou mudar de nome talvez até de país nunca, nunca mais vão ouvir falar de mim. Venha quero lhe mostrar uma coisa".

Romy vai às margens da estrada adentra alguns passos novamente para o bosque e mostra uma mochila escondida com roupas e algum dinheiro.

"Eu vou embora Meany, tudo o que juntei está aqui, toda a mesada, todo o dinheiro que ganhei tudo. Tem que haver algum lugar para mim, não têm Meany?".

"Eu não sei Romy, eu não sei".

"Mas antes eu tenho que fazer uma coisa, e vai ser amanhã".

"O que vai fazer? Confie em mim".



Todos se sentaram a espera do pastor, que chegou como de costume sem um minuto de atraso, e deu inicio ao culto.

A mãe de Romy não tirava os olhos dele, cada movimento do garoto não lhe escapava. No meio do culto Romy se levantou e pediu a palavra.



"Este homem que fala de Deus - apontou para o pastor - não lhe tem no coração, muito menos aquela mulher, que diz ser minha mãe, este homem, que reza, que abençoa que absolve os pecados em nome de Deus, que os liberta, é um maníaco, que... abusa do meu corpo".

Todos ficaram no mais profundo silêncio, era difícil saber o que se passava na cabeça de toda aquela gente, pareciam em 'coma'.



"Acabou?". Perguntou-lhe a mãe.

Romy balançou a cabeça dizendo que sim, havia tirado um peso de sua consciência.

O pastor está hipnotizado, sentou-se na cadeia, e não disse uma palavra, toda a sua lábia, sua desfaçatez havia desaparecido.

"Peço que perdoem meu filho, ele está enlouquecido, o demônio o possui, tomou o seu corpo e coloca palavras vis em sua boca, mas juntos, todos vamos conseguir salva-lo, não vamos?".

Um coro de insanos respondeu que sim, o pastor sorriu a força que precisava lhe foi dada de onde ele menos imaginava.

"Meany, por favor, querida venha até aqui".

Romy olhou confuso.

"Diga Meany diga tudo que sabe". "Não tenha medo, você estará ajudando nosso amado Romy, lhe salvando a alma, não tenha medo meu amor".

"Perdoe-me, por favor, tente entender, e melhor assim Romy... Romy têm agido de forma estranha ultimamente, está sempre inventando coisas, não faz mais suas preces, e difama seu pai e sua mãe, Romy me disse... ah! Deus! Ele disse que adora ao demônio, e que o demônio quer que ele difame o pastor".



Não deveria ter sido daquele jeito, eu já disse foi culpa de Romy, toda aquela sujeira que deveria ter sido varrida para debaixo do tapete, Romy decidiu mostrar, e depois o que seria, a minha sujeira, a sujeira de outro e de outro. Tudo andava tão bem, o pastor ajudava minha família, tínhamos dinheiro, nunca tivemos dinheiro antes, tínhamos o que comer, meu pai tinha um ótimo emprego, e não ia ser Romy, que iria nos tirar tudo. Além do mais o pastor era muito bom para mim, me entendia, eu sabia sobre Romy! Eu o estava ajudando, a se livrar desta 'doença', era meu corpo que o pastor procurava para esquecer o de Romy. Se Romy tivesse tido paciência, tudo teria acabado bem.



Houve uma confusão na igreja, cada um tinha uma opinião diferente sobre como 'salvar Romy do demônio' e Romy se aproveitou disto para fugir.

No meio da noite um bando de ensandecidos saiu a sua procura, mas não o encontraram, eu sabia que se existia um lugar para Romy se esconder este lugar era o bosque, próximo a sua estrada.

O dia mal tinha amanhecido a cidade inteira ainda dormia, então eu a levei até meu amigo. Não sei como pude fazer aquilo, como pude leva-la até ele.

"Romy?".

Ele se voltou assustado e disse:

"Mãe! Eu não vou voltar com você, eu vou-me embora".

"Tenha certeza de algo menino, para onde vai não vai voltar nunca mais".

"Por que, não me ajudou, porque não fez algo por mim?".

"Por que eu não quis, pra que, eu sempre soube Romy, sempre, desde da primeira vez, quando 'recolheu os hinos', para o sacana do pastor".

"Mãe!".

"Eu já estava tomando providências, dei a ele outro corpinho para divertir, você estava ficando rebelde demais, estava ficando difícil de lhe controlar, iríamos manda-lo estudar fora e tudo acabaria sendo esquecido, tudo".

"Esquecido! Nunca, você me vendeu para aquele homem, em troca de casa e comida".

"Não! Em troca de respeito".

"Respeito?".

"Sim, respeito de uma cidade inteira por você".

"E eu? Eu sou seu filho".



Ela não respondeu. Tirou um revolver do bolso do casaco e apontou para Romy. Em seguida ouvi o som da morte, é não fiz nada, nada.

"Por que Romy, por que não me ouviu? Por que me abrigou a fazer isto? Por que Romy?".

Os olhos de Romy se encheram de lágrimas, eu sai de trás das arvores, já era tarde, Romy olhou para mim, quase pude ouvi-lo dizer:

"Não você Meany, não você".

Ele olhou em direção a estrada e fechou os olhos. Então eu gritei:

"ROMY".

Ela não disse uma palavra, abaixou-se e o beijou, fez uma prece, e disse que tinha feito o trabalho por Deus, por Deus ela matou o demônio que vivia dentro de Romy e que atentava o pastor.Rolamos o corpo para o vale, com sorte ele se despedaçaria, nas pedras sepultando assim de uma vez nosso delito.

Naquela noite e na seguinte, rezei por ele, e por mim, na cidade falava-se que Romy havia abandonado a família para viver em algum lixo, que é para o lixo que vão os imundos. O pastor e sua mulher foram consolados por toda a cidade.

Na manhã do terceiro dia, um domingo, fui até o bosque levar flores para Romy, desci com muito cuidado o máximo que pude, olhei lá para baixo, nem sinal de corpo ou do que sobrou dele.

Corri, fui procurar a mochila, está havia sumido.

Uma onda de esperança entrou em meu corpo, e por que não acreditar nela.

Ele queria ir embora, mudar de nome, apagar o rastro. Talvez tenha conseguido, talvez o tiro não foi no coração, ah! Eu sei lá. Não preciso saber de mais nada.

Eu espero que Romy tenha 'pego' aquela estrada.

Assim como eu peguei anos mais tarde. E como ele deixei tudo para trás, a única diferença e que tive que carregar a culpa, não houve como deixá-la.

Romy, ao contrário estava leve como um anjo.

Romy e sua estrada! A estrada de Romy!

Será que ela ainda está lá?

Romy é sua estrada...A estrada de Romy...Será que ele pegou a estrada? E a mochila? Onde foi parar a mochila? Com Romy?...É com Romy...ROMY, meu Romy está salvo!! Salvo!! A estrada...A velha estrada...Romy...Cadê o Romy, mandem chamar o Romy.Romy!

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