A Garganta da Serpente

Valdyr Fuîn

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O Salão (ou Pesadelos de um Sábado a Noite de Verão)

(Valdyr Fuîn)

Depositei minhas malas no chão, ao lado do carro. Acendi um cigarro, colocando as mãos em concha e contra o vento morno e constante, aproveitando disto para dar mais uma olhadela na casa que ficava diretamente frente a minha, no lado oposto da rua.

Eu sempre dizia que não acreditava em história de fantasmas e coisas do gênero, mas isto era o que eu pensava, até que presenciasse naquela noite quente o que vou relatar adiante.

Morava num pequeno prédio de apartamentos, o meu ficava no segundo andar. Na minha sala havia uma varanda que ficava bem defronte a uma grande sacada da bela mansão do outro lado da rua. Onde eu gostava de passar parte do meu tempo livre, debruçado sobre a mureta da varanda, observando a noite avançar lá fora.

Naquela noite calorenta de sábado, estava na varanda observando um movimento intenso que acontecia no casarão. Havia muitos carros na rua e pessoas elegantemente trajadas saiam e entravam pelo portão principal da suntuosa residência. O que me chamou mais a atenção, foi o fato de que desde que havia me mudado para aquele apartamento, há cerca de um ano atrás, nunca havia percebido movimento algum naquela casa. Só não a julgava fechada, pois volta e meia, via duas ou três pessoas, parecendo serem sempre as mesmas, saindo ou entrando na casa, as quais eu julgava serem seus moradores ou proprietários.

Durante as noites, a casa parecia sempre mergulhada em silêncio, eu distinguia algumas luzes espalhadas aleatoriamente por toda a propriedade. Aconteciam sempre assim, todas as noites, alguma luz se acendia num local, enquanto outra era apagada noutro lugar.

Nunca tive curiosidade em informar-me com algum vizinho sobre aquele casarão. Na verdade não me interessava por construções antigas e também não era de envolver-me com vidas alheias. A construção era bonita, até onde eu podia enxergar da minha varanda, seus jardins eram vistosos e bem cuidados, apenas os olhava porque proporcionavam uma vista agradável do meu apartamento.

Mas naquela noite fiquei curioso com toda aquela inusitada movimentação. A casa estava completamente iluminada e todo aquele movimento acabou por aguçar minha curiosidade. Estava mesmo incomodado pelo calor e resolvi ficar na varanda, onde vez ou outra soprava uma brisa menos quente. Não havendo nada melhor para fazer, fiquei lá observando a rua e a casa. Confesso que toda aquela suntuosidade de carros reluzentes, pessoas finamente trajadas transitando na frente do meu prédio, chamava minha atenção.

De onde estava, podia ver bem através das grandes janelas e portas envidraçadas do que parecia ser o salão de festas. Distinguia até alguns detalhes da sua decoração, tais como grandes quadros a óleo, tapeçarias estampadas, grandes lustres reluzentes, enormes cortinas, vasos com arranjos vistosos de todos os tipos de flores, mesas ricamente postas com toalhas de rendas brancas, prataria, cristais e porcelanas.

Fiquei por algum tempo, apreciando toda aquela visão inusitada, que mais parecia pertencer a uma época distante e que já não existe mais.

Voltei para a sala, peguei um livro, sentando-me numa poltrona para lê-lo. Passado algum tempo, notei que a intensidade da luz proveniente do casarão e que refletia em meu apartamento, diminuía. Curioso, fui até a varanda, olhando para a casa e qual não foi a minha surpresa, ao notar uma mudança no cenário que antes de entrar na sala, havia contemplado.

Os carros que estavam estacionados na rua e dentro dos jardins, haviam desaparecido, nos seus lugares havia então carruagens atreladas a belos cavalos emplumados e cocheiros em trajes de época circulavam e conversavam entre eles. Os convidados estavam vestidos em estranhas e antigas vestimentas, não menos elegantes e vistosos que as outras que antes eu vira.

Passado o impacto instantâneo e imprevisto, logo deduzi que certamente aquela festa tratava-se de um baile a fantasia, obviamente.

A rua estava deserta, exceto pelas carruagens, cocheiros e cavalos. Dos demais vizinhos, estranhamente, não notei nenhum outro curioso observando o movimento naquela casa. Parecia que eu era o único expectador, com direito a camarote e tudo o mais, pois do meu andar podia ver bem a festa que se desenrolava no também segundo pavimento da mansão.

Os ruídos da festa chegavam aos meus ouvidos, a música executada era do gênero clássico, e provavelmente tocada por uma pequena orquestra ao vivo. Um clima de mistério, trouxe-me uma sensação de dejavú, como se toda aquela redondeza tivesse sido transportada no tempo, e estivesse acontecendo no passado longínquo, quando a cidade vivia o resplendor do nascimento de uma época em que florescia o luxo e fortunas eram conquistadas por famílias que davam início às dinastias, comandando toda a sociedade e o mundo dos negócios, construindo impérios que permaneceriam estáveis até os dias de agora. Coincidentemente, talvez, estava lendo um livro, cuja história, passava-se no final do século dezoito na velha nova São Paulo, onde cenas como a que estava vendo acontecer bem frente aos meus olhos no presente, eram descritas elegantemente naquele livro. Apenas um detalhe a acrescentar sobre este último comentário: o livro eu havia encontrado dentro de um dos armários daquele apartamento, quando me mudei para ele.

Mais que curioso, estava fascinado com o que vislumbrava, entrei e fui buscar despudoradamente o meu binóculo, para poder ver melhor o que se desenrolava na minha vizinhança. Ajustei o foco das lentes mirando em direção ao salão de festas, quando observei uma jovem mulher saindo por uma das portas laterais do salão, que davam para a sacada.

Retive minha respiração, diante da visão daquela linda mulher, parecia uma cena de filme de época. A bela dama poderia ser descrita como a maravilhosa Scarlett O'Hara de "E O Vento Levou", trajava um longo vestido vermelho sangue com uma longa cauda que se arrastava no chão de mármore, todo em rendas bordadas em brocado com detalhes em verde esmeralda; usava um belo colar e um par de brincos com pingentes que pareciam ser de esmeraldas verdadeiras e valiosas, anéis e pulseiras também combinando com as outras joias. Cabelos negros presos no alto da cabeça com um pequeno chapéu em forma triangular, também vermelho, sob o qual pendiam longos cachos e madeixas do cabelo lustroso. Seus olhos pareciam ser verdes, tão intensos e luminosos como as esmeraldas. Ela era maravilhosa, uma verdadeira aparição cinematográfica.

Seu rosto era de uma beleza perfeita e fascinante, porém carregava um semblante melancólico e sofrido, numa mistura de encanto e mistério, podia ver através do binóculo, que ela estava um pouco aflita e expectante. Suas mãos, que carregavam uma bolsinha, estavam em constante movimento denotando um certo nervosismo, pois se juntavam no colo da saia, pareciam comprimir seus dedos uma a outra, depois iam até o colar e lá pousavam mexendo na pedraria e logo rumavam para os cachos dos cabelos, num movimento incessante e quase frenético. Eu a vi rumando até a mureta da sacada, pousou as mãos nela e ficou por um tempo inerte, elevando o rosto para o céu, parecendo contemplar o brilho da lua cheia e intensamente prateada. Ela parecia suspirar longa e pausadamente, como se fizesse uma prece à lua, fazendo meu coração disparar e também me percebi suspirando diante daquela visão. Sentia-me completamente absorvido e fascinado por aquela mulher, caso acreditasse em amor a primeira vista, mesmo que através de um binóculo, certamente poderia jurar que já estava apaixonado pela moça.

Quase que para minha decepção, entrou sob o foco do binóculo, um homem também trajado em elegante casaca preto e branco, enlaçando a cinturinha da moça e pousando seus lábios numa de suas faces.

Entregou-lhe um longo botão de rosa vermelha, e a moça virou seu rosto, então sorridente e de semblante aliviado, também lhe dando um beijo na face. Observei-os conversando por algum tempo, até que o jovem curvou-se tomando uma de suas mãos, beijando-na e afastando-se em seguida de maneira mesurada, exatamente como os cavalheiros procediam antigamente, eu presumia. Porém a moça representava estar querendo retê-lo, ao que ele parecia se desculpar e prometer que retornaria logo após.
A bela dama olhou novamente para a lua, depois para a rosa que colocou junto ao peito, abriu um sorriso tão luminoso que fez com que parecesse diminuir toda a intensidade das luzes da lua e do salão, tal a brancura dos seus dentes e a expressão de felicidade estampada em seu rosto.

Ficou caminhando entre as portas e as janelas do salão, espiando para o seu interior como se estivesse procurando por alguém. Deduzi que ela esperava o retorno do jovem cavalheiro. Outra vez melancólica, a dama voltou para a mureta da sacada, debruçando-se no seu parapeito, estendeu um dos braços para frente em direção ao alto, com a rosa na mão, como se quisesse com esse gesto sonhador e poético, tocar a lua.

Meus olhos ardiam, mas eu não conseguia tirá-los do binóculo. Novamente entrou em meu campo de visão o jovem, que tocava na moça tomando uma de suas mãos nas suas. Ela virou-se para ele exibindo um novo sorriso, que imediatamente apagou-se dando lugar a uma expressão de surpresa e de dor.

Assustado, percebi que o moço estava apertando com força a mão que segurava a rosa, a ponto de perceber fazê-la sangrar. Ela protestava, enquanto tentava desvencilhar-se do moço, mas este a retinha pressionando-na junto à mureta. Vi que ela chorava, de onde estava, quase podia ouvir seus lamentos e os brados exaltados emitidos pelo homem, estavam discutindo. Ele aumentava a pressão do seu corpo junto ao corpo da moça, e esta começou a gritar olhando na direção do salão, como que esperando que alguém a socorresse. Mas ninguém dentro do salão parecia ouvi-la, continuavam dançando e conversando, completamente surdos e alheios ao que estava acontecendo na sacada. Estranhamente descobri que as pessoas do salão estavam olhando para o jovem casal na sacada, mesmo assim não interrompiam o que estavam fazendo, e não intervinham no que acontecia lá fora.

A situação era embaraçosa, penalizado e já desesperado, tive vontade de correr ao socorro da jovem senhora. Entretanto sentia-me como que paralisado, incapaz de mover um dedo sequer, apenas não desviava os olhos do casal. Até que então aconteceu uma tragédia:

Num safanão mais violente do rapaz, a mulher foi atirada pela sacada, noite adentro, indo espatifar-se nas pedras frias do passeio do jardim, que ficava mais ou menos por cerca de dez metros abaixo da sacada.

Surpreendentemente, pois o céu estava límpido, vi um gigantesco raio cortando a escuridão da noite com um ensurdecedor estrondo, parecendo cair onde havia tombado o corpo da moça, deixando lá a sua marca, como pude comprovar mais tarde.

Os acontecimentos seguintes aquele raio, ainda estão um pouco confusos em minha cabeça, mas vou tentar relatá-los na ordem em que me lembro terem ocorrido.

Permaneci em meu local na varanda, olhando para o corpo estendido no chão, ela movia-se lenta e agonizantemente. De uma portinhola abaixo da sacada, vi o jovem saindo correndo até onde a mulher havia caído, aproximando-se dela, ele ajoelhou-se junto ao seu corpo, tomou com cuidado sua cabeça e a pousou em uma de suas pernas afastando alguns cachos do seu cabelo preto que estavam encobrindo a sua face. Com aparente dificuldade, a moça ergue suas mãos juntando-nas frente ao rosto do homem, como se estivesse fazendo-lhe uma súplica. Ela parece estar serena, e o homem transtornado chora pelo aparente arrependimento do ato insano que havia provocado. Pois para mim, de algum modo, havia a certeza de que a queda não fora acidental derivada do calor da discussão, mas sim um ato deliberado e homicida. Com os dedos ele afaga o rosto da moça, tentando limpar o sangue que escorria das suas têmporas e dos seus lábios, então se inclina para ela e lhe beija delicadamente os lábios, misturando suas lágrimas ao sangue vertido pela moça. Neste momento, sinto, mais do que vejo, a vida desprender-se daquele corpo jovem e belíssimo. O homem desesperado, pois se descobria ser o assassino do seu amor, pousa a cabeça da moça no chão novamente, levanta-se, recompõe-se, olha para o alto em direção à sacada constatando que não havia ninguém presenciando aquela cena, ruma em direção ao portão da entrada da mansão.

E só então um sentimento de revolta e desespero acudiu meu ser. Corri para fora do meu prédio através da escada de incêndio, dirigindo-me ansioso até a mansão. Chegando lá, vi que não havia mais carruagens, nem cocheiros, a música havia cessado, as luzes estavam apagadas, passei pelos portões e fui até onde o corpo havia caído.

A mulher não estava lá, também não encontrei no caminho o assassino, no lugar onde ela caíra havia uma marca ainda fumegante do raio que realmente havia também caído naquele local, ao seu lado estava um botão de rosa murcho e manchado de sangue. Não havia explicação, nada parecia ter acontecido naquela casa, todos sumiram, ficando somente a marca do raio e a rosa, como que para não me desmentir totalmente do assassinato que havia sido testemunha, enquanto acontecia uma festa na mansão bem aos meus olhos de expectador, na varanda do meu apartamento do prédio defronte ao casarão.

Atônito, saí desesperado, correndo pelo jardim, tropeçando, caindo, levantando, até sair daquela misteriosa casa e voltar para o meu apartamento. Completamente atordoado cheguei em casa, telefonei pedindo um táxi para daí uma hora. Corri para o meu quarto, pegando umas malas e fui colocando coisas nela, pois estava assustado e queria sair de lá o mais rápido possível. Com as malas arrumadas malmente, voltei para a sala; neste instante, senti algo como se fosse um punhal fino e gélido atravessando o meu coração.

Na minha varanda, estavam a dama e o cavalheiro de mãos dadas. Eles olhavam para mim, ela com um olhar misterioso e um sorriso nos lábios, ele ria cinicamente enquanto estendia uma mão para frente segurando o botão de rosa, como se o estivesse oferecendo para mim. Do botão escorria sangue. Nada disseram e também admito não dei tempo para dizerem alguma coisa, pois peguei as malas e fugi desatinado daquele local, como se o meu apartamento, o prédio, o bairro todo e não somente a mansão, fossem assombrados. E acho que eram mesmo. Ou tudo não passara de um pesadelo de sábado de uma noite de verão. Acontecia porém que eu estivera o tempo todo, e ainda estava, muito bem acordado, para ser apenas um pesadelo.

Cheguei na rua e da Portaria olhei meio que de esguelha para a varanda do meu apartamento. Não estavam mais lá.

Agora, dentro do táxi, esperando o motorista arrumar as malas no bagageiro, sentindo como se tivessem passado dias desde o início daquela noite, arrisco mais uma olhada para a mansão. De onde estava dava para ver parte do salão e sua sacada. O casal estava lá, encostados na mureta, pareciam fazer um brinde com taças nas mãos. Sentia suas presenças de uma forma tão intensa, que era como se estivesse do lado deles, tanto que via seus semblantes, agora para mim, completamente sinistros. Mais uma vez o cavalheiro faz um gesto com uma das mãos, como se estivesse jogando alguma coisa para mim...

E qual não é a minha estarrecedora surpresa ao ver sobre o banco em que estava sentado, um botão de rosa vermelha, linda, fresca e molhada de orvalho...Não de orvalho não, eram algumas gotículas de sangue mesmo, fresco, vivo e vermelho! Peguei o botão e vagarosamente o levei até meu nariz, senti o frágil aroma da flor e do sangue.

Minha expressão era indescritível, estava pálido, trêmulo e louco de pressa para sair dali. Venderia o apartamento e mandaria uma empresa de mudanças pegar as minhas coisas, não voltaria mais para aquele lugar. Como disse, minha fisionomia era puro transtorno, tanto que quando o motorista do táxi entrou e ajeitou o retrovisor, olhando para mim interpretou como se eu estivesse com algum problema sentimental, pois disse:

- Não se preocupe senhor, certamente a pessoa que receberá esta rosa, ficará muito feliz. É apenas um botão e não um ramalhete de flores, porém a rosa é enorme e belíssima. Aliás devo dizer que de tempos em tempos, sempre que alguém me chama desta região, ou melhor deste prédio, está com um botão de rosa parecido com este nas mãos, e desculpe a intromissão, estão com aparência de assustados, mais ou menos como a que o senhor está agora. Será que estão roubando estes botões de alguém deste prédio? A rosa parece ser de qualidade rara e cara - gargalhou com o próprio comentário, e acrescentou em seguida:

- Bem, para onde vamos?

Eu não conseguia responder a simples pergunta e muito menos comentar sobre o que ele dissera, porém uma sensação de horror se alastrava por todo o meu corpo e mente, parecia estar ouvindo gritos em meus ouvidos e risos também, daquelas pessoas naquele salão e da moça sendo assassinada e depois aparecendo como fantasmas para outras pessoas, que como eu, foram suas testemunhas da história que, provavelmente acontecera no passado, e como uma peça macabra era repetida de tempos em tempos pelos seus protagonistas fantasmagóricos.

Realmente, eu sempre disse que não acreditava em histórias de assombração...até que acontecesse comigo! E você acredita?

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