Hoje sinto vontade de um velho amigo. Daqueles que sentam no sofá como
se fosse na casa dele. Não espera que contes piada e nem que o chá
esteja no ponto. Certamente não estará.
O velho amigo entende que não estás triste, mas melancólica,
alguma coisa travou. A vida talvez, parada esperando o ônibus que não
vem. Atrasado, quem sabe...
O amigo assegura que o ônibus virá, fica calma, tudo dará
certo... Algum acidente deve tê-lo detido nos Andes. Gelo possivelmente.
Este inverno está forte, dirá com um sorriso encantador.
E verei a neve, a dificuldade da Harley Davidson ultrapassá-la. Sentirei
o frio que queimou teus lábios e a melancolia se despejará na
pena que me constrange o coração.
Os Andes...
Como em sonhos o amigo descreverá o que vislumbraram juntos da janela
do avião. A monumental beleza imersa no silêncio de brancura tanta.
E esfregarei as mãos soprando-as como deves estar fazendo para aquecê-las
com a mornidão interna de teu corpo.
Ouvirei o ronronar da moto e teu olhar na estrada em busca de um pouso qualquer.
Rústico e aquecido, onde arderá algum fogo, fátuo que seja.
Neste momento me desejarás por que minhas pernas aquecerão as
tuas e haverá alguma sopa fervente aguardando para te dar ânimo
de, ao amanhecer, enfrentar a estrada áspera novamente. Talvez Helena
(sempre pões nome de mulher nas motos, nunca foi o meu) resista um pouco.
O amigo sorrirá cúmplice como se tudo fosse verdade e em nenhum
momento zombará do brilho de meus olhos.
Antes que eu volte à monotonia da estrada que te espera, meu amigo falará
de seu amor distante, a esmo num clima tão diferente e mergulharemos
juntos nas águas mornas do Índico. Nos ouvidos a risada deliciosa
de seu bem querer, onde os olhos arteiros acompanham a voz aguda que também
sorri dizendo que o Índico é morno que nem xixi.
Meu amigo buscará meus olhos encontrando acolhida para o xiste. Sorrirei
cúmplice e direi que ela é fantástica e me lembrarei dos
cabelos lindos e suaves que contornam seu rosto branco como a neve dos Andes.
Assim voltarei para ti.
Rimos juntos: o amigo e eu. Um encolhido de frio e o outro abanando o calor
sul de Madagascar que fica no longínquo "não sei".
Com o velho amigo não me sentirei boba de viajar contigo e ele tranquilamente
atravessará o mundo atrás de uma moça menina rica de sonhos
e viagens míticas transformadas em realidade por um avião malvado
que a levou.
Tomaremos o chá frio e olharei a janela sem enxergar o lá fora
porque teus olhos escuros também se perdiam na janela nesta hora de Ângelus
que esvazia a gente de tudo enquanto os amores navegam para longe onde suas
vidas acontecem surpresas e mágicas com a paisagem que fala malagassy
exótico ou através de uma chola acalentando o filho.
Então, o amigo dará uma de suas risadas altas para quebrar a magia
que nos engolfa e de novo estaremos sentados na minha sala com a lágrima
que se soltou de maneira suave e doce igual à saudade que trago.
A neve se dissolve nas águas mornas do Índico e ver que o amigo
não está e não tomei chá, mas café forte
e escuro como um lago salobro e não há amor perdido numa moto
nos Andes. Apenas este lugar longe do mundo todo habitado por um ser: eu que
navego nas águas profundas de meus sentimentos calados para não
assustar impossíveis turistas nesta terra inóspita onde estou
morando.
Só presente a certeza que Madagascar é muito, muito longe e a
saudade é uma coisa que arde como beliscão.