A Garganta da Serpente
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Velho amigo

(Vana Comissoli)

Hoje sinto vontade de um velho amigo. Daqueles que sentam no sofá como se fosse na casa dele. Não espera que contes piada e nem que o chá esteja no ponto. Certamente não estará.

O velho amigo entende que não estás triste, mas melancólica, alguma coisa travou. A vida talvez, parada esperando o ônibus que não vem. Atrasado, quem sabe...

O amigo assegura que o ônibus virá, fica calma, tudo dará certo... Algum acidente deve tê-lo detido nos Andes. Gelo possivelmente. Este inverno está forte, dirá com um sorriso encantador.

E verei a neve, a dificuldade da Harley Davidson ultrapassá-la. Sentirei o frio que queimou teus lábios e a melancolia se despejará na pena que me constrange o coração.

Os Andes...

Como em sonhos o amigo descreverá o que vislumbraram juntos da janela do avião. A monumental beleza imersa no silêncio de brancura tanta. E esfregarei as mãos soprando-as como deves estar fazendo para aquecê-las com a mornidão interna de teu corpo.

Ouvirei o ronronar da moto e teu olhar na estrada em busca de um pouso qualquer. Rústico e aquecido, onde arderá algum fogo, fátuo que seja. Neste momento me desejarás por que minhas pernas aquecerão as tuas e haverá alguma sopa fervente aguardando para te dar ânimo de, ao amanhecer, enfrentar a estrada áspera novamente. Talvez Helena (sempre pões nome de mulher nas motos, nunca foi o meu) resista um pouco.

O amigo sorrirá cúmplice como se tudo fosse verdade e em nenhum momento zombará do brilho de meus olhos.

Antes que eu volte à monotonia da estrada que te espera, meu amigo falará de seu amor distante, a esmo num clima tão diferente e mergulharemos juntos nas águas mornas do Índico. Nos ouvidos a risada deliciosa de seu bem querer, onde os olhos arteiros acompanham a voz aguda que também sorri dizendo que o Índico é morno que nem xixi.

Meu amigo buscará meus olhos encontrando acolhida para o xiste. Sorrirei cúmplice e direi que ela é fantástica e me lembrarei dos cabelos lindos e suaves que contornam seu rosto branco como a neve dos Andes. Assim voltarei para ti.

Rimos juntos: o amigo e eu. Um encolhido de frio e o outro abanando o calor sul de Madagascar que fica no longínquo "não sei".

Com o velho amigo não me sentirei boba de viajar contigo e ele tranquilamente atravessará o mundo atrás de uma moça menina rica de sonhos e viagens míticas transformadas em realidade por um avião malvado que a levou.

Tomaremos o chá frio e olharei a janela sem enxergar o lá fora porque teus olhos escuros também se perdiam na janela nesta hora de Ângelus que esvazia a gente de tudo enquanto os amores navegam para longe onde suas vidas acontecem surpresas e mágicas com a paisagem que fala malagassy exótico ou através de uma chola acalentando o filho.

Então, o amigo dará uma de suas risadas altas para quebrar a magia que nos engolfa e de novo estaremos sentados na minha sala com a lágrima que se soltou de maneira suave e doce igual à saudade que trago.

A neve se dissolve nas águas mornas do Índico e ver que o amigo não está e não tomei chá, mas café forte e escuro como um lago salobro e não há amor perdido numa moto nos Andes. Apenas este lugar longe do mundo todo habitado por um ser: eu que navego nas águas profundas de meus sentimentos calados para não assustar impossíveis turistas nesta terra inóspita onde estou morando.

Só presente a certeza que Madagascar é muito, muito longe e a saudade é uma coisa que arde como beliscão.

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