A Garganta da Serpente
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Tentativa paradoxal de (mais) uma tradução

(Rodrigo Emanoel Fernandes)

… isolado em seus próprios pensamentos, ruminando as inumeráveis vozes do passado, correlacionando ideias, impressões, sensações… atingindo ápices internos sutis e inenarráveis do mais puro prazer intelectual, tão contrastante com o prazer mundano, o infinitamente desejado e cada vez mais distante prazer do contato, do contágio, do externo que se interioriza.

Abandonando-se diante dos outros, ouvia suas vozes, acompanhava os lábios em seu frenético movimento de exteriorização das profundezas íntimas complexamente traduzidas em palavras, frases, sentenças… linguagem… um texto solto ao vento, ansiando comunicação mas não oferecendo mais do que facetas, pequenas, insuficientes…

Não prestava mais atenção nas palavras, ficava atento apenas aos lábios, à entonação, às delicadas variações na postura, nas linhas do rosto, nas emanações subjetivas que, na falta de melhor denominação, convinha chamar de aura. Usava as palavras, tanto ouvidas quanto proferidas, apenas quando não era possível o contato dos corpos e os demais detalhes revelavam-se insuficientes.

(E como lhe era precioso esse contato… esse encontro de corpos, essa intimidade física que tanto comunicava, algo tão essencial e tão violentamente carregado de significações arbitrárias quase impossíveis de burlar, tanta sacralização para algo tão simples: corpos se tocando, tornando aquela cansativa e desanimadora tradução da linguagem tão desnecessária…)

Portanto pouco falava, cansava-se facilmente daquele ato maçante de traduzir. Sabia que essa atitude condenava-o exatamente àquilo que mais temia, mas aquele contato ineficaz das palavras chocando-se e dissipando-se no ar, aqueles textos que melhor caberiam em paginas escritas do que entre dois seres de carne e sangue, tampouco serviam para aliviar aquela sensação terrível de isolamento… desejava comunicação, contato, de uma forma tão intensa que as palavras, tão limitadas, jamais poderiam traduzir.

Parecia frio e distante diante das pessoas que, intimamente, desejava, mas essa frieza ocultava uma chama viva e radiante que ameaçava consumi-lo. E como poderia explicar sem a abertura para o toque, a permissão do contato, da intimidade física, da comunicação direta, sem intermediários? Como poderia traduzir a magnífica complexidade que sentia em sua mente e entranhas, todo aquele aterrador e esfuziante infinito que era o seu eu verdadeiro e desprovido de máscaras, enquanto estivesse limitado ao ridículo vocabulário verbal?

Melhor calar, então… ouvir, olhar, sentir… admirar o tocante esforço das pessoas atrapalhando-se em traduções grosseiras que pouco dizem, tecendo máscaras tão complexas e ilusórias, falando e falando e falando incessantemente, enquanto seus olhos, seus corpos, seus gestos e atos falhos revelam aquele desejo profundo e primordial: simplesmente tocar, romper as fronteiras entre si e o outro diretamente, sem quaisquer intermediários, deixar de ser apenas um indivíduo para se tornar parte de algo maior, complexo, íntimo… impossível de traduzir nesse texto pobre, feito de meras palavras…

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