A Garganta da Serpente
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Solitário entre nós

(Rodrigo Emanoel Fernandes)

"Era também nesse salão que se erguia, encostado à parede que dava para o oeste, um gigantesco relógio de ébano. O pêndulo oscilava para lá e para cá, com um tique-taque vagaroso, pesado, monótono. E quando o ponteiro dos minutos concluía o circuito do mostrador e a hora ia soar, emanava dos pulmões de bronze do relógio um som claro, elevado, agudo e excessivamente musical, mas tão enfático e característico que, de hora em hora, os músicos da orquestra viam-se forçados a parar por instantes a execução da música para ouvir-lhe o som; e dessa forma, obrigatoriamente, cessavam os dançarinos suas evoluções e toda a alegre companhia sentia-se, por instantes, perturbada. E enquanto os carrilhões do relógio ainda soavam, observava-se que os mais alegres tornavam-se pálidos e os mais idosos e serenos passavam as mãos pela fronte, como se em confuso devaneio ou meditação. Mas quando os ecos cessavam por completo, leves risadas imediatamente contagiavam a reunião; os músicos olhavam uns para os outros e sorriam de seu próprio nervoso e loucura, fazendo votos sussurrados, uns aos outros, para que o próximo carrilhonar do relógio não produzisse neles idêntica emoção. E, no entanto, passados os sessenta minutos (que abarcam três mil e seiscentos segundos do Tempo que voa), ouvia-se de novo outro carrilhonar do relógio, e de novo se ouviam a mesma perturbação, o mesmo tremor, as mesmas atitudes meditativas. A despeito, porém, de tudo isso, que esplêndida e magnífica folia!"
(Edgar Allan Poe in A MÁSCARA DA MORTE RUBRA)

I

A banda tocou por quase duas horas seguidas. Já passava das duas e meia da manhã. Cansado, Guber pediu uma pausa para refrescar a garganta. Tinha cantado de tudo um pouco até o presente momento e devia estar mesmo precisando beber alguma coisa. A galera chiou, mas só por pouco tempo. Como de costume, Mauá e Thomas assumiram, respectivamente, o vocal e a guitarra e aproveitaram a pausa do "Hímen Blues" para relembrar velhos sucessos dos Beatles, Creedence, Led Zeppellin e os outros clássicos do velho e bom rock'n'roll. Quando os primeiros versos de "Pretty Woman" começaram a ecoar pelos alto-falantes a todo volume o pessoal em peso foi a loucura e muita gente que estava parada começou a chacoalhar o esqueleto, pouco se importando se a música estava um pouco fora do tom e a voz do vocalista era levemente empastada. Não por culpa dele, é claro. A culpa era da cerveja. Ou talvez do vinho. Ou o conhaque. Ou o que quer que Mauá tivesse tomado naquela noite. O que quer que fosse com certeza não tinha sido pouco. Afinal, era o Mauá.

As "Festas da 10", como eram chamadas nos velhos tempos, sempre tinham sido as minhas preferidas. Não que eu fosse muito chegado a festas, mas por algum motivo que nem eu mesmo sabia explicar na época, eu gostava das "Festas da 10". Talvez fosse porque eu simpatizava com o Câmpus da Rua 10, apesar da grande maioria dos meus colegas no curso de Geografia da UNESP de Rio Claro preferir ferreamente o muitíssimo mais moderno e equipado Câmpus da Bela Vista, que ficava do outro lado da cidade. Eu jamais tentaria tirar a razão deles, obviamente. Estava claro pra todos, inclusive pra mim, que o Câmpus da Bela Vista era muito melhor do que o antigo e alquebrado Câmpus da 10, que datava dos idos tempos das Faculdades de Ciências e Letras de Rio Claro. O Câmpus da Bela Vista era o que se podia chamar de um verdadeiro câmpus universitário: amplo (embora pudesse ser considerado pequeno se comparado com a USP e a Unicamp), prédios e pavilhões novos de arquitetura moderna, melhores instalações, restaurante universitário, etc, etc. Sempre que era possível eu dava uma força para o Centro Acadêmico pressionar o instituto a transferir os cursos que ainda eram ministrados no câmpus antigo para o câmpus novo. Sabia que era a coisa certa, mas eu sempre fui um saudosista e amante de lugares antigos que transpiram História e nunca deixei de ver com bons olhos o Câmpus da Rua 10, com seus prédios antigos e sua arquitetura de colégio da virada do século.

Festas eram comuns em Rio Claro, naqueles tempos. Pelo menos para a comunidade universitária, que nunca foi realmente parte integrante da vida da cidade. Grandes festas, pequenas festas. Era raro que se passasse uma semana sem que houvesse pelo menos uma festa em algum lugar. No geral a quinta-feira era o dia sagrado (ou profano, como achar melhor), o dia das festas. Isso pode causar estranheza àqueles que nunca frequentaram uma faculdade pública e acham que o dia correto para uma festa é o sábado, ou mesmo sexta. Sexta-feira é o dia em que todos os estudantes vindos de fora voltam para suas casas. Poucos ficavam na cidade nos fins de semana. Portanto o dia das festas era a quinta. Os bailes, as festas do IB (no câmpus da Bela Vista), as festas em Repúblicas e, é claro, as "Festas da 10".

Apesar das festas em geral serem muito populares era raro que uma única festa reunisse de uma vez só todos os meus conhecidos, tanto os amigos quanto os "indiferentes" (eu nunca tive inimigos). Mas essa "festa da 10" tornou-se histórica por ter sido uma das mais lotadas de todos os tempos e quase todos os meus conhecidos estavam lá. E aqueles que tiveram a oportunidade de conhecer o Câmpus da 10 sabem que quando eu digo lotado, esse termo ganha um novo significado naquele lugar. Talvez seja melhor fazer uma breve descrição da cantina da 10, onde ocorriam as festas:

Na esquina da Rua 10 com a avenida 30, no bairro do Santana, ficava o portão que dava acesso ao prédio da secretaria da faculdade. Passando pelo portão, o cidadão atravessava um caminho que cortava um modesto jardim, geralmente bem cuidado, até adentrar o prédio e ficar de frente à portaria, ocupada dia e noite pelos entediados guardas. Se tomasse o rumo da direita, chegaria à secretaria no final de um pequeno corredor. Se subisse as escadas, poderia ter acesso ao departamento de pós-graduação, à sala do diretor e às demais subdivisões burocráticas. Se virasse para a esquerda e seguisse em linha reta, chegaria à biblioteca. Antes da entrada da biblioteca havia uma outra passagem perpendicular à direita; quem seguisse por ela atravessaria um curto corredor e teria acesso a uma espécie de jardim interno cortado por vários caminhos de pedra que levavam ao Departamento de Geografia, à sala de xerox, aos laboratórios de Física e Climatologia e por aí vai. Porém, se o sujeito seguisse pelo caminho que alongava-se diagonalmente para a esquerda, ficaria surpreso ao dar de frente com uma cerca de arame farpado coberta de trepadeiras como uma cerca viva, com uma única abertura no centro: um portão, permanentemente aberto, ladeado por dois pilares brancos da altura de um homem. Passando pelo portão, o sujeito entraria num espaço coberto por um gramado onde alunos e funcionários costumavam deixar suas bicicletas e, adiante, o surpreso cidadão daria com uma das construções mais esquisitas que eu já tive chance de ver: um elevado, mais ou menos um metro e meio de altura, com uma superfície irregular formando uma área retangular com cerca de dez por seis metros, cercada por uma grade baixa em péssimo estado de conservação. O acesso ao elevado se dava através de uma escadaria larga e gasta. A parte dos fundos do elevado era coberta, a parte da frente ficava ao ar livre. Do lado esquerdo da parte coberta ficava a cantina, do lado direito ficavam as portas das salas do Diretório Acadêmico, do CAEGE (o Centro Acadêmico da Geografia) e uma terceira e misteriosa porta à qual voltarei a me referir mais tarde (anotem isso na memória). A parte coberta também era dotada de algumas mesas de bilhar e pebolim, que eram retiradas nos dias de festa. Bem, esse elevado que tentei descrever a grosso modo era conhecido, genericamente, como a "Cantina da 10".

Pois é. As festas eram feitas nesse elevado. A banda ficava dentro da área coberta, do lado da cantina. A sala do Diretório era transformada num bar improvisado e todo o espaço restante era livre para o povo dançar, beber, "ficar" e dar as baixarias que tivessem vontade. Entre os dois pilares brancos da cerca viva era feita uma tosca "bilheteria". Depois de pagar a entrada, o cidadão tinha seu braço carimbado e, a partir daí, podia circular livremente. Era difícil que todo mundo se concentrasse na "Cantina" ao mesmo tempo. O normal era que o povo ficasse circulando de um lado para o outro (o que era ótimo, porque se todo mundo resolvesse subir no elevado ao mesmo tempo seria um inferno; ainda assim, em algumas festas, a lotação da "cantina" chegava a ser insuportável).

Mas estou deixando-me levar pelo saudosismo e fugindo do verdadeiro motivo que me levou a sentar diante do computador e voltar a escrever após tantos anos. Relendo o que escrevi até o momento chego a sentir vergonha por minhas lamentáveis deficiências de estilo. Eu já fui melhor nisso, acreditem. Eu já fui escritor. Não profissional, mas escrevia bem, eu creio. Já fui até poeta. Segundo alguns amigos eu era muito bom. Mas talvez eles estivessem apenas sendo gentis comigo. Nunca publiquei nada. O mais próximo que cheguei de fazer isso foi imprimir meus poemas do tempo da faculdade em forma de apostila e presentear algumas pessoas que, para mim, foram e ainda são muito importantes. Será que Kelly ainda guarda a sua? Faz tanto tempo, talvez já tenha ido parar no lixo. Mas, dane-se. Prefiro pensar que ela ainda a tem consigo e relê alguns versos de vez em quando. É bom pensar que ela ainda se lembra de mim. Ela que, de certo modo, foi a responsável por eu ter me tornado um poeta, ainda que por pouco tempo.

Mas como eu ia dizendo, aquela deve ter sido a maior de todas as "Festas da 10" que já se teve notícia. Na época, acreditava-se que esse sucesso se devia a uma bem bolada estratégia de marketing, por parte do CAEGE, na organização da festa. Eles venderam as entradas antecipadamente em cerca de uma semana, chamaram o Hímen Blues de Guber, a banda mais renomada da cidade e fizeram uma divulgação gigante. Precisavam de grana em caixa para organizar a Semana de Estudos daquele ano que já estava terrivelmente atrasada. Mas hoje, olhando retroativamente, percebo que esta foi a maior de todas porque, no fundo, todos sabiam que seria a última. Seis meses depois, a cantina da 10 foi demolida e o que quer que se escondesse lá, desapareceu para sempre. Não restou nenhum vestígio que me permitisse provar esse meu relato. As coisas que vi naquela noite eu nunca mais vi novamente. Na verdade não faz muito sentido contar essa história agora, após tantos anos. Mas já passei da idade de ficar procurando um sentido para tudo. Tudo o que quero é exorcizar velhos fantasmas que, volta e meia, insistem em vir me assombrar, apesar do homem que eu sou hoje pouco ter a ver com o homem que eu era naquela época. Velhos fantasmas costumam ser persistentes, mas sei que a melhor forma de se livrar deles é aprisiona-los, seja numa casa velha e empoeirada ou num porão infecto sob um prédio condenado.

Ou, é claro, nas páginas de uma história.

II

Bem, voltemos à festa. Como eu disse o Hímen Blues havia dado uma pausa pra molhar a garganta, dando chance para Thomas e Mauá se sentirem estrelas por mais alguns minutos. Eu tinha ido àquela festa com a intenção de dançar e esquecer todo o resto e quando eu fazia isso eu entrava literalmente em transe. O intervalo da banda foi o suficiente para me fazer sair daquele estado de delírio pela primeira vez na noite, apesar do restante da galera continuar se mexendo a todo vapor. Percebi que estava cansado e ainda não tinha conversado com ninguém. Afastei-me da massa de dançarinos alucinados e encostei-me na parede numa posição em que podia observar melhor a festa e as pessoas. Eu havia chegado cedo e não parara de dançar até aquele momento. Mal havia tomado ciência das pessoas conhecidas que circulavam pelo elevado. Vi Sílvia, Clauciana, Juliana e Ana Cláudia dançando e engraçando-se com um pessoalzinho da Computação. Eu dancei o tempo todo junto delas e não as notei? Podia ser, como eu disse, eu estava em transe. Carol e Luciene passaram ao meu lado e acenaram pra mim, dizendo algo que não consegui ouvir devido ao barulho da música, mas tenho certeza que não devia ser muito importante. Também vi Letícia caminhando pela área descoberta do elevado, já ligeiramente cambaleante e perguntei-me o quantos beques ela já teria fumado. Vi o Animal dançando como um turbinado homem das cavernas em adoração à Deusa Lua, vi Adriana trocando uma ideia com Dalberto num canto afastado dos demais e perguntei-me se dessa vez rolaria, vi Cláudio e Carlos servindo bebida no barzinho improvisado na sala do D.A., vi Talitha e Pinga dançando juntos num ritmo muito mais lento do que o da música, mas era compreensível, vi Makoto, o nobre oriental, numa rodinha formada por João Paulo, Manoel, Bruno e mais uns caras da Física que eu não conhecia tão bem (uma quadrilha de figurinhas carimbadas, também conhecida como a rodinha dos que não comem ninguém), vi Charlei contando histórias dos velhos tempos para um grupo de "bixos", vi Dell'Antônio e Fabiana sentados sobre uma das mesas de bilhar encostadas nos fundos e pensei "Ah... tem mais coisa por trás dessa bela amizade", vi pessoas solitárias espalhadas pelos cantos, vi grupos de amigos dançando juntos ou simplesmente conversando, vi casais beijando-se apaixonadamente apesar de terem-se conhecido a poucos minutos, vi namorados isolados do restante das pessoas, incapazes de desviar a atenção um do outro, vi bêbados gargalhantes torrarem todo seu dinheiro em latas de cerveja, vi amigas trocarem confidências secretas em meio a cacofonia de sons, vi um rosto envolto em lágrimas por motivos que eu ignorava totalmente. Comecei a imaginar, naquela noite, naquela festa superlotada, se a festa não seria um universo, um microcosmo onde toda a humanidade, em todas as suas facetas, poderia ser flagrada em escala reduzida. É uma ideia um tanto boba, eu admito, mas mesmo agora, tantos anos depois, ainda considero difícil deixar de pensar que, mesmo boba, essa ideia se aproxima muito da verdade.

Encontrava-me assim perdido filosofando comigo mesmo (num lugar e hora totalmente inadequados para isso, a não ser para quem estivesse muito bêbado mesmo) quando senti o toque de uma mão feminina no meu ombro, acompanhada de um perfume suave e tentador, quase ofuscado pelos odores fortes da cerveja barata e da maconha misturados ao suor dos dançarinos. Voltei-me e me vi mergulhado no olhar profundo de Cristina, a menina que, em minha modesta opinião, era a mais bela estudante de Geografia a passar por Rio Claro.

- Você veio, que bom! - disse ela me abraçando apertado, de forma tão agradável quanto inesperada. Senti um calor intenso subir para o meu rosto e torci para que ela não percebesse que eu havia ruborizado. Era impossível não reagir assim quando encontrava Cristina numa festa. Por favor, não me entendam mal, eu não era apaixonado por ela, longe disso. Gostava dela apenas como uma amizade agradável e não tinha a menor intenção de que passasse disso. Mas Cristina irradiava tamanho calor e sensualidade que era impossível para qualquer homem não tremer na base. Ela tinha consciência disso, é claro, mas não imaginava o quanto sua presença afetava as pessoas. Por mais difícil que fosse acreditar, Cristina era por demais ingênua e romântica para a época em que vivemos, mas poucas pessoas sabiam disso.

- Oi, Cris! Que bom te ver, você está linda - falei meio sem graça, contendo uma vontade irracional de agarra-la, o que provavelmente arruinaria nossa bela amizade (ou talvez não, a julgar pelo rubor nas faces ela já devia estar chapadinha... bem, nunca vou saber ao certo) - O que está achando da festa?

- Ah... eu estou me divertindo muito. Nunca vi tanta gente. E você, seu malandro, nem me viu dançando juntinho de você?

Na verdade eu me lembrava vagamente de dançar com ela em algum momento do meu transe de Xamã indígena.

- Bom, Cris, você sabe como eu sou, não? Eu vivo em outras dimensões, sabe como é.

Cristina riu. Comentou alguma coisa sobre como eu era seguro e "na minha" e não deixava nada me abalar e foi embora. Nunca conversava mais do que alguns minutos com cada pessoa numa festa. Fiquei pensando em como ela tinha uma ideia errada a meu respeito. Seguro? Inabalável? Como eu já disse, ela era muito ingênua.

Fiquei observando Cristina se afastar e se misturar à multidão, já começando a sentir os primeiros sinais da melancolia que sempre tomava conta do meu espírito em qualquer festa aonde eu estivesse. Era impossível, para mim, fugir dessa sensação que logo se transformaria em depressão, amargura profunda. A única maneira de fugir disso era encher a cara e isso eu me recusava a fazer. Dançar, entrar em transe ajudava a adiar o inevitável e a tentar enganar a mim mesmo, mas não durava. Não se pode dançar a festa inteira. O paradoxo das festas já se abatia sobre mim e logo não poderia mais ser ignorado. O paradoxo: solidão em meio a centenas de pessoas, todas preocupadas demais com elas mesmas para notar qualquer coisa mais. Todas solitários da multidão, buscando nos prazeres da noite alívio para seus próprios tormentos, suas próprias dúvidas e amarguras. Eu observava Cristina ao longe, tão bela, tão radiante, uma presença de força e beleza, dominadora, espalhando o desejo pelos corações das pessoas por que passava. Porém, estava só. Trocava palavras com alguém, acendia um cigarro no isqueiro de outrem, dançava, bebia e estava só. Eu sabia que isso a atormentava, eu a conhecia de perto, mas ainda assim ela não conseguia escapar, como eu, daquele estranho círculo de prazer e dor, o jogo narcisista de se mostrar, se expor, a busca por algo fugidio e indefinível sem o qual a vida não faz o menor sentido. E o primeiro idiota que vier me dizer que esse "algo" é o amor vai tomar uma bordoada no meio da fuça. Na minha idade já não sobrou muita paciência para aturar tais bobagens.

Foi aí que notei que Cristina estava se demorando mais do que o habitual num papo com um certo sujeito. Como eu já disse ela nunca ficava mais do que alguns minutos falando com uma mesma pessoa. Fiquei imaginando se não iria rolar alguma coisa. Observei o cara mais atentamente. Na hora eu ainda não sabia, mas foi nesse momento que eu vi pela primeira vez aquele que, na falta de melhor denominação, chamei de A Bao A Qu.

III

Não vamos adiantar demais as coisas. Essa é uma regra da elaboração de narrativas que o tempo ainda não apagou de minha mente. Por ora basta dizer que não havia absolutamente nada fora do comum naquele cara, mas ao mesmo tempo havia. Será difícil explicar. Era um rapaz alto, não como um dos atletas da Educação Física, mas encorpado; cabelos escuros, rosto anguloso porém com traços agradáveis no conjunto, barba e bigode por fazer, olhos insinuantes. Não trazia nada nas mãos, o que não é comum, quase todos estão sempre segurando uma lata de cerveja ou um cigarro, mas de alguma forma ele parecia estar além desses vícios. Hesito em dizer que era belo, não porque não fosse: era. Era um homem extremamente belo; mas o adjetivo "beleza" talvez não se aplique muito bem a ele. Sabem... "beleza" pode levar a imaginar aqueles modelos que aparecem em comerciais de loção pós-barba, rostos másculos e corpos sensuais, porém transmitindo uma inquietante sensação de não-realidade. Entendem o que eu quero dizer? Um modelo como esse ou mesmo a garota das páginas centrais da Playboy, são indiscutivelmente belos mas é uma beleza perfeita demais. Beleza virtual, produzida, maquiada, montada. Só é real no vídeo ou nas páginas da revista ou até mesmo em desfiles de figurinos de moda, mas não existem no mundo real. A beleza do mundo real é de outro tipo. Uma beleza que vem não da perfeição mas da ausência desta. São as pequenas imperfeições num rosto e corpo esculturais que nos chamam a atenção, nos encantam, nos atraem. Quero, com isso, explicar que aquele rapaz não era uma manifestação física de um desses deuses gregos das revistas de moda. A absoluta beleza que aquele homem irradiava, seu fascínio e sensualidade praticamente à flor da pele, faziam-se sentir de modo tão contundente porque não tinha nada de irreal. De certo modo, ouso dizer que ele parecia ser até mais real do que as pessoas ao seu redor... mais real que Cristina, que parecia estar completamente fascinada. Mesmo de longe eu podia notar o brilho nos olhos dela, seu ar de encantamento, olhos que ela raramente desviava dos lábios do misterioso desconhecido que a abordara, a não ser para rápidas olhadelas em detalhes do corpo robusto e vestido com discreta elegância, apesar de pequenos toques de desleixo que pareciam torna-lo ainda mais convidativo aos olhos dela.

Isso me surpreendia muito, acreditem. Eu conhecia Cristina. Éramos amigos e eu sabia muito sobre a personalidade dela. Sabia que ela era tão fogosa quanto fugidia, tão insinuante quanto escorregadia. Numa festa, costumava flertar com uma dezena de homens diferentes mas, quase sempre, ia embora sem ficar com nenhum. Apreciava esse jogo de sedução e pistas falsas. Gostava de sentir-se desejada sem ter a menor obrigação de corresponder. Era tão bela, tão sensual, que podia dar-se ao luxo de escolher com critérios pessoais extremamente rigorosos e eram poucos os homens que realmente lhe interessavam. Seu maior prazer estava em acender o fogo dos pobres tolos que babavam por ela para depois vê-los derreter em meio à frustração de um sinal vermelho.

Mas agora era diferente. Ela parecia realmente encantada com o misterioso estranho. Seus rostos estavam cada vez mais próximos enquanto falavam. Aliás, enquanto ele falava. Cristina já não dizia mais nada, apenas ouvia atentamente as palavras sussurradas pelos lábios dele, audíveis apenas para ela. As pessoas que circulavam ao redor deles, as vezes esbarrando, as vezes tendo a indecência de passar entre os dois, ela mal parecia notá-las. Cristina estava fisgada. Logo estavam se beijando. O que viria a seguir era fácil de imaginar.

Normalmente isso me deixaria feliz. Como eu já disse, apesar da atração que sentia por ela, não havia nenhuma emoção envolvida além da amizade pura e simples, mas mesmo assim sentia-me perturbado. Sentia algo de muito errado no misterioso conquistador. Porém não tive muito tempo para pensar nisso pois o incessante movimento da festa acabou por criar outras situações que atraíram minha atenção por tempo suficiente para que os dois desaparecessem das minhas vistas. Não achei nada de estranho nisso. Na certa, estavam à sós em algum lugar mais reservado. Durante algum tempo não pensei mais neles.

IV

Circulei pela festa por algum tempo. É impressionante o fato de que a presença de dezenas de pessoas parecia tornar aquele elevado muito maior do que realmente era. Encontrei vários conhecidos como Hirata, Capivari, meu ex-professor Zé Flávio, Gaby, Regina, Patrícia, Luís, Sumaré, Valéria e vários outros mas não sentia vontade de conversar com nenhum deles. Já começava a me sentir deprimido quando vi Milena sozinha num canto. Fui até ela. Era sempre bom encontrá-la, em qualquer ocasião. Na época éramos muito próximos. Tínhamos uma espécie de laço empático que nos permitia saber quando o outro estava mal. Éramos muito parecidos, ambos sonhadores, ambos tristes, ambos incapazes de conviver com o mundo que nos cercava, ambos frutos de um passado muito semelhante, ambos extremamente egoístas.

- Olá, Chérie! O que está fazendo aí sozinha - falei enquanto a abraçava e beijava seu rosto. Ela sorriu um de seus típicos sorrisinhos marotos de moleca. As vezes ela não parecia ter mais de quinze anos, na verdade era um ano mais velha do que eu. Pude sentir que ela estava triste.

- Tudo bom com você, moço - disse ela segurando minha mão - Pois é... eu não aprendo, né? Vir pra festa segurando vela é querer acabar sozinha mesmo.

- Sozinha porque quer. Aposto que mil caras já devem ter paquerado você. O que está esperando?

- Você sabe o que, não é?

Sabia. Sabia tudo sobre os complicados relacionamentos de Milena. Era uma das coisas que nos tornava tão próximos e confidentes. Ambos éramos complicados demais com nossos respectivos relacionamentos. Nossas vidas amorosas eram um verdadeiro caos e a culpa só podia ser atribuída a nós mesmos.

- Por falar em velas... onde ela anda? - perguntei mantendo um sorriso falso nos lábios e desviando o olhar dos olhos dela.

- Ah... vamos! Desencana. Você sabe que não adianta.

- Você fala como se conseguisse, facilmente, "desencanar" quando quer - dei ênfase à palavra. Sempre detestei essa gíria.

- Ela está por aí. Mas não está sozinha. Nem preciso dizer isso pra você.

- É. Não precisa.

Olhei para ela. Ficamos nos encarando por minutos que pareciam intermináveis. Ela com seu sorrisinho maroto, eu com minha expressão sem vida, tentando parecer inatingível. Era nesses momentos que nos compreendíamos totalmente.

- Você tá bem? - perguntou ela, imitando voz de criança. Eu dei um sorriso sem graça e movi a cabeça de um lado para o outro, negativamente.

- Quer conversar? - não era necessária uma resposta. Atravessamos o espaço da festa e fomos nos sentar num canto sobre uma das bancadas montadas para servir de bar improvisado, onde agora Valéria e Makoto se ocupavam em vender bebida. Ficamos sentados um ao lado do outro, sem dizer nada por alguns momentos. Foi Milena que quebrou o silêncio:

- Você ainda gosta muito dela, né? Não superou de verdade.

Antes que eu pudesse responder, vimos Patrícia aproximar-se para nos cumprimentar. A bela loirinha estava mais encantadora do que nunca. Parecia feliz. Trocamos algumas palavras mas foi uma afirmação em particular que me chamou a atenção e acabou registrada em minha memória:

- ... eu nunca vi esse cara por aqui, achei que devia ser da cidade e imaginei se você conhecia. Eu paquerei descaradamente... ai meu Deus! Eu estou até sem graça.

- Como é que ele é? - perguntei.

- Alto... loiro... e com cara de sério. Me parecia alguém especial. Havia algo... sei lá... mágico.

Mágico. Essa afirmação vinda de Patrícia tinha algo de curioso. A pequena Tabatha* como seu pai costumava chamá-la. Patrícia era uma garota de muitos mistérios. Parte de sua vida era guardada a sete chaves apenas para si mesma e era muito difícil penetrar. Pude vislumbrar parte do mistério nas longas conversas que tinha com ela, em sua casa, quando me mostrava seus poemas (poemas que ela raramente mostrava a alguém) e tinha a impressão que havia muito mais magia na vida de Patrícia do que qualquer pessoa poderia imaginar, incluindo o namorado dela na época.

- Pelo que vejo, Patty - brinquei - o nobre Alex vai ser presenteado com um belo par de galhos essa noite?

- Não! Nada disso. Eu só falo, não faço nada - apanhou uma cerveja e foi embora. Não sem antes voltar-se sobre o ombro para dizer "Mas devia fazer!".

Por algum motivo lembrei-me do misterioso conquistador que domou Cristina e, por um momento, imaginei se não seria o mesmo homem. Então lembrei-me dos cabelos escuros e descartei a possibilidade.

Depois que ela se foi ficamos ali sentados, Milena e eu, sem dizer palavra. Eu sabia do que queria falar e ela sabia que eu precisava, mas não conseguia encontrar palavras que já não tivessem sido ditas antes. Minha vida sempre parecia um eterno retorno ao ponto de partida. Por fim, sem conseguir suportar mais tempo o silêncio, Milena começou:

- Sabe no que eu estava pensando hoje à tarde?

Fiz que não com a cabeça.

- Nas festas em que íamos no primeiro ano. Não parecia que havia algo de diferente no primeiro ano?

- Diferente? - perguntei apesar de já saber onde ela queria chegar.

- No primeiro ano a gente se reunia com todo o povo da classe antes de ir pra festa - continuou ela - Saíamos pelas ruas fazendo arruaça e acordando a vizinhança mas nem ligávamos. Alguma coisa parecia animar a gente naquela época. Alguma coisa que agora não sentimos mais...

- Antecipação - declarei secamente.

Milena me olhou, por um momento, depois voltou a ficar em silêncio. Havia um clima estranho no ar.

- É assim, Mi - continuei depois de algum tempo - no primeiro ano estamos todos encantados com a antecipação de novas descobertas. Tempo de faculdade, inúmeros amigos novos. As festas são o ponto de encontro. Cheias de novidades, novos sabores. Eu me lembro bem do nosso primeiro ano. Para cada festa, especialmente as Festas da 10, sempre havia uma prévia em alguma república onde todo mundo se encontrava para tomar a primeira dose da noite e começar a especular com quem iria "ficar". No fundo esse é o motivo que leva todo mundo a ir a uma festa: o desejo de "ficar" com alguém. Ninguém quer sair sozinho de uma festa. Que ironia...

- Ironia por que? - perguntou Milena, mesmo sabendo que eu diria de qualquer jeito.

- Porque uma festa é onde todos ficamos realmente sozinhos. Não existe lugar onde a sensação de solidão se faça mais presente do que uma festa. Mesmo quando se está beijando alguém, ainda assim ambos estão, no fundo, isolados em seus próprios mundos.

À nossa frente, a festa continuava, intocável, totalmente alheia a qualquer coisa que pudéssemos pensar ou dizer.

- É como aqueles dois - continuei, sem precisar dizer a quem estava me referindo pois não era necessário - estão juntos em algum lugar por aí, é claro, mas é só. Estarão totalmente isolados de todo o resto. As pessoas não darão muita atenção a eles pois ninguém está interessado em quem já está acompanhado.

- Eu sei - disse Milena - eu sinto isso também. Não gosto de pensar demais nisso. É um modo muito amargo de ver as coisas.

- Tem razão. Mas quanto mais o tempo passa mais difícil fica ver as coisas de outro modo. Já fui em tantas festas desde que entrei pra faculdade. São sempre todas iguais. Eu me lembro da primeira vez que fui numa festa. Eu sempre fui um cara muito tímido. Até antes da faculdade eu praticamente não tinha vida social. A faculdade, pra mim, não era apenas uma questão de aprender uma carreira e preparar o futuro mas sim uma maneira que eu encontrei de tentar mudar o meu modo de ser. Eu queria conhecer pessoas novas, pessoas diferentes, fazer amigos, viver novas experiências... eu queria mudar. Queria ser uma pessoa... diferente. Eu sentia que tinha desperdiçado toda a minha adolescência perdido num mundo onde só eu podia entrar, só eu tinha a chave... Eu queria aprender a viver de verdade.

- Mas não foi fácil me enturmar. Eu descobri da pior maneira possível que ninguém, ninguém está se importando com o que você faz ou pensa. Todos estão muito preocupados consigo mesmos para prestar atenção em você. Não estão interessados em seus problemas. Não percebem que você acha o mundo em que eles vivem fascinante e você queria descobrir como fazer parte dele. Você tem que descobrir sozinho porque ninguém vai te ajudar. Ninguém.

- Eu logo percebi que tinha que superar minha timidez para conseguir penetrar no outro mundo. Ninguém iria me notar perdido nas sombras e dizer "Ei! Quer vir com a gente?", então, ao ficar sabendo que haveria uma prévia para uma festa da 10 naquela velha rep' onde você morava com a Júlia eu resolvi convidar a mim mesmo para aparecer. Você se lembra?

Ela assentiu. Continuei:

- Lembro do espanto de todos ao me ver. Foi aí que descobri que o fato de ser... diferente... já havia me rendido a fama de "estranho", "outsider". É fácil confundir timidez com esnobismo. De qualquer modo fui muito bem recebido. Todos se mostraram muito amigáveis e calorosos, o que me fez pensar que finalmente tinha conseguido escapar das sombras nas quais vivia.

- A sensação de fazer parte de um grupo é maravilhosa. Ser aceito pelas pessoas. Acho que todo mundo quer ser aceito, em maior ou menor grau, mas para mim isso tinha uma importância incalculável. Eu me senti um verdadeiro membro da raça humana, como raramente me sentia.

- Mas não durou. É impossível descrever o que senti logo depois que chegamos à festa e eu comecei a perceber o que estava acontecendo. Até chegarmos à Cantina da 10 nós éramos um grupo, éramos os "bixos" da Geografia, éramos unidos e, o mais importante, eu fazia parte disso. Eu não era mais o outsider. Então nós chegamos na festa e tudo mudou. De repente eu me vi sozinho. Todo mundo desapareceu na massa de pessoas ali reunidas. Tornou-se parte dela. E eu, pela primeira vez pude sentir o que a festa realmente significava: uma busca incessante por prazer individual. Não importa que todas aquelas pessoas estejam juntas ali. Na verdade, cada uma delas está só. Cada uma preocupa-se apenas com si mesma, com seus próprios desejos, apetites e prazeres. Sempre buscando na bebida, nas drogas ou num parceiro um modo de satisfazer seus próprios desejos e necessidades.

- Para mim, que sempre fui terrivelmente solitário, aquilo foi um choque violento. Não consegui ficar lá. Fui embora. Hoje posso dizer que fugi. Meu primeiro contato com o outro mundo resultou em medo e frustração.

- Claro que voltei a frequentar festas depois disso. Pouco a pouco fui aprendendo os códigos e regras não declarados que devem ser respeitados por quem quiser fazer parte do grande esquema. Aos poucos fui aceito como parte da comunidade universitária. E, felizmente, consegui me enturmar o bastante para fazer amizades profundas. Hoje sei que muitas pessoas gostam de mim. Sei que sou importante pras pessoas certas. Já posso me dar ao luxo de selecionar as festas às quais compareço e até ficar meses sem ir a nenhuma sem perder meu lugar no "grande esquema das coisas". E, ultimamente, tenho feito valer esse meu direito. As únicas festas às quais ainda dou as caras são as Festas da 10. Já não tenho mais paciência... ou coragem... para encarar outras.

Voltamos a ficar em silêncio. Então Milena suspirou e começou:

- Já conversamos sobre tudo isso antes e você sabe que eu concordo com você. Eu sei como é essa sensação de solidão. Mas o que se há de fazer? As coisas são assim. O melhor é tentar se divertir assim mesmo, do que adianta ficar mal? Você parecia alegre quando estava ali no meio dançando...

- Eu só não estava pensando em nada na hora.

- É, mas... - interrompeu-se; pensou por uns instantes e depois continuou - Mas não é por isso que você está mal, não é? É por causa dela, não é? Achei que você já tinha desencanado a muito tempo...

- Não use essa palavra. Você sabe que eu não gosto.

- Tá bom! Mas, gostando ou não, você não pode ficar nessa a vida toda. Já faz mais de um ano que você sofre por causa dela.

- Não encontrei mais ninguém por quem valesse a pena sofrer - respondi com um de meus melhores sorrisos cínicos - Diabos...eu amo aquela infeliz de verdade, não é? Ainda não entendo por que terminamos. Bom, não por desejo meu, é claro.

- Eu não sei, ela não se abre comigo. Kelly é assim, sempre pronta a ouvir mas nunca a falar sobre os próprios sentimentos.

- Sei que ela me ama, Mi. À maneira dela. Já conversamos sobre nossos sentimentos inúmeras vezes. Eu a conheço tão profundamente que posso até adivinhar o que ela pensa. Ela é tudo que eu sempre sonhei. Até mesmo nossas diferenças parecem se encaixar de forma incrivelmente harmônica. Ela mesma já me disse tantas vezes que eu a completo e ela a mim. Mas mesmo assim se recusa a ficar comigo. Sempre batendo na tecla de que nos tornamos amigos demais para ficarmos juntos. Pra mim isso não é empecilho. Muito pelo contrário.

- Eu sei. Você já me falou muitas vezes disso...

- Eu sei, Mi. Desculpe por fazê-la ouvir mais uma vez. Mas as vezes eu preciso dar voz a isso.

V

Naquela época era realmente muito difícil pra mim deixar de pensar em Kelly. Nela e na piada ambulante que ela chamava de namorado. Mesmo hoje, tantas décadas depois, ainda não consigo entender como foi possível que uma garota tão fantástica pudesse se apaixonar por uma mala sem alça arrogante como o Marcelo. Parecia que tudo que havia de errado nela, em sua personalidade, havia se materializado na forma daquela relação absurda. A pessoa maravilhosa que ela era e por quem me apaixonei parecia diminuir e minguar sempre que eu pensava nela associada a um sujeito tão pequeno. Era como se ela passasse por uma transformação, como se todo o seu brilho desaparecesse, como se tudo que a tornava especial e fascinante aos meus olhos, tudo que a deixava acima do mar de mediocridade que é o mundo, estivesse sumindo. Ela tornava-se cada vez mais igual à massa de pessoas pequenas e insignificantes, como se o infeliz do Marcelo tivesse o poder de arrasta-la para baixo consigo, em direção ao abismo. Ela estava se transformando; e o que me deixava realmente desesperado era não poder fazer nada para impedir. A Kelly que eu amava (e que, a seu modo, me amava também) estava desaparecendo e isso me deixava louco.

Logo que o envolvimento dos dois começou eu decidi me afastar dela de uma vez por todas. Até então éramos como siameses, sempre grudados um no outro, mesmo meses depois de nosso namoro ter acabado. Mesmo não desejando-me mais como namorado, Kelly não conseguia suportar a ideia de se afastar completamente de mim. Ela sofreu tanto quanto eu (ou até mais) quando cortei relações com ela em nome de minha própria sanidade. Ainda hoje mal sei explicar o absurdo de nossa estranha relação. Não era sadio, aquela proximidade e convivência em meio aos escombros de um relacionamento mal resolvido. Sei apenas que nos amávamos de verdade, mas cada um de uma forma diferente e aí estava nosso inferno. Kelly queria ter as duas coisas: o namorado que conheceria o seu corpo e apenas uma pequena parcela de sua alma; e seu melhor amigo, aquele que conheceria cada faceta de seu espírito e a completaria e compreenderia totalmente; mas para ela ambos não poderiam ser uma pessoa só. E cabia à mim, ao que parece, o segundo papel. Esse era um aspecto egoísta de sua personalidade ao qual eu não podia me submeter. Ou a tinha por inteiro ou a tinha bem longe de mim. Ela demorou muito tempo para aceitar completamente essa verdade. Chegaria a ser cômico se não fosse tão trágico para nós, mas não foram poucas as vezes em que eu é que era obrigado a "dar o fora" quando na verdade ela é que não queria ter mais nada comigo! Ainda tenho guardados, em meio às minhas bugigangas, os bilhetes que ela me mandava pedindo uma reconciliação! Era, de fato, uma história de amor muito estranha, que gerou feridas cujas cicatrizes nunca desapareceram de todo.

Milena morava com Kelly. Por isso conhecia bem essa estranha história. Pelos dois lados. Porém se tivesse de tomar algum partido, seria o meu. O absurdo namoro com Marcelo acabou afastando-a não apenas de mim mas de todas as suas velhas amizades, o que gerou alguma mágoa não intencional por parte de Milena, que nunca conseguiu conhecer Kelly de verdade. Apenas o aspecto que ela aceitava mostrar aos outros. Todos temos nossas máscaras... e é difícil escolher diante de quem tira-las. Kelly escolheu a mim. Sempre imagino o quanto ela se arrependeu.

Milena continuava falando comigo, tentando dar um jeito de me animar, mas eu mal ouvia. Minha mente começou a vagar em meio aos incontáveis rostos que desfilavam à minha frente. Regina, Fabiene e um pessoal do segundo ano trocavam figurinhas no lado descoberto da cantina. João Paulo tentava, estupidamente, acompanhar os passos de Carol que dançava alegremente como moleca agora que o Hímen Blues voltava a assumir o som. Um pessoal da Computação, três caras, postavam-se carrancudos nos fundos, cada qual com sua respectiva lata de cerveja na mão, aguardando que alguma menina maluca da Geografia ou da Ecologia ficasse bêbada o bastante para dar bola pra eles, embora já estivessem conformados a não comer ninguém esta noite. Diferentes dos avantajados garotões de pouco cérebro e muita massa da Educação Física (meio deslocados naquele ambiente de blues e rock'n'roll), que pareciam não precisar fazer o menor esforço para atrair a atenção das garotas. Vi Clauciana, com uma blusinha pra lá de decotada, se insinuando para um barbudo que parecia ser da cidade. Perto dela Nando dava uns amassos em Juliana, sua namorada de quase três anos, não sem dar rápidas olhadelas, de quando em quando, para Renata que se mantinha ocupada trocando uns germes com o Bolinha do outro lado da cantina. Imaginei se ele estava lembrando da escapadela de um ano antes e perguntando-se se não deveria ter levado adiante. Sentado numa cadeira afastada dos demais, Animal, aparentemente bêbado demais para se levantar, balbuciava algumas frases desconexas para Ariclenes, que parecia mais malhado do que ele. Percebi, de longe, os olhos de Denise no momento em ela chegou a conclusão de que era hora de ir pra casa; sozinha; havia uma triste resignação naquele olhar, mas só pude ver de relance... logo ela não estava mais lá. Pensei novamente na ideia de um microcosmo, mas agora a ideia só servia pra deixar-me ainda mais deprimido. Perguntava-me: Será que isso é tudo que o mundo tem a oferecer? Foi então que a vi.

VI

Achei estranho não tê-la notado antes. Foi como se ela, de fato, tivesse aparecido do nada, como um boneco de mola saltando de sua caixa. Num momento havia apenas uma multidão de foliões movendo-se diante de mim, no outro... lá estava ela. Como poderei descreve-la? Era linda. Mas não foi isso que chamou minha atenção. Havia muitas garotas lindas naquela festa, mas ela... de algum modo parecia ser... mais real do que as outras. Mais real do que qualquer pessoa ali presente. Se você leu atentamente tudo o que escrevi até o momento já deve tê-la associado ao misterioso conquistador que papara Cristina. Pois é, foi exatamente isso o que pensei na hora. Ela chamava minha atenção porque me fazia lembrar dele. Como ele, ela não era um exemplo de beleza absoluta e irretocável, mas era exatamente isso que a tornava tão fascinante. Não... dizer "exatamente" não seria a correta expressão da verdade. Seria impossível definir o que tornava aquela mulher tão impressionante. Não era seu cabelo castanho claro, liso e macio como veludo, nem seu rosto levemente arredondado, de traços suaves e finos, nem os olhos azuis faiscantes ou o corpo magro e esbelto, não era nem mesmo o conjunto de todas essas características que criava tamanha harmonia de graça e leveza. Não. O que tornava aquela mulher tão esplêndida era o mesmo que tornava o misterioso conquistador tão esplêndido: o fato de que ambos pareciam muito mais reais do que todos a sua volta. Eles pareciam brilhar com uma intensidade muito mais vibrante, atraindo a atenção daqueles por quem passavam.

Eu não sabia se todos sentiam nela o mesmo que eu, mas isso não me interessava. Não conseguia tirar os olhos dela. Estava fascinado e... com medo. Sim, medo! Havia alguma coisa errada mas eu não sabia dizer o que.

Levantei-me, surpreendendo Milena que continuara a falar comigo até o momento. Pedi licença a ela, desajeitadamente, e caminhei até onde estava a moça. Como o rapaz de antes, ela também não trazia nada nas mãos, nem bebida e nem cigarro. Quando me aproximei ela voltou-se para mim e olhou-me direto nos olhos, de uma maneira muito pouco comum em festas. Nas festas temos a tendência a nunca fixar demais a atenção em um único ponto, como se estivéssemos sempre procurando alguma coisa além da pessoa que temos à nossa frente. Mas ela era diferente. Não desviava os olhos dos meus nem por um segundo. Parecia fascinada também, embora de maneira diferente.

De início eu não consegui encontrar nada para dizer. Tudo o que consegui foi ficar parado na frente dela como um imbecil mudo. Então ela falou:

- Oi! Como vai?

Até mesmo a voz tinha algo de especial, mas indefinível. Não era diferente das demais vozes femininas que eu já ouvira mas havia algo... alguma coisa no modo como soava que fazia com que parecesse... mais real. Mais real do que qualquer coisa que eu já ouvira. Não sei dizer quanto tempo passou antes que eu respondesse com uma outra pergunta:

- Quem é você?

Instantaneamente o sorriso dela desapareceu, sendo substituído por uma expressão de perplexidade. Continuava me encarando porém agora havia um ar interrogativo em seu olhar. Chegou mais perto e tocou em meu rosto. Seu toque era como veludo.

- Um nome é importante? - perguntou ela, voltando a sorrir; depois baixou a voz, aproximando os lábios dos meus, sussurrando em tom de confidência:

- Você me quer?

Inferno! Sim! Eu a queria. Seu corpo, seu rosto, sua voz, emanavam um ardor irresistível. E anormal! Eu a desejava com sentimentos que tinham algo de desespero... uma necessidade incontrolável... uma fome enlouquecedora. Eu lhes digo: não era um desejo normal. Eu não ousaria chamar o que senti de simples atração, paixão violenta, clamor do sexo... nem muito menos de amor, não era nada disso. Era uma necessidade muito mais primal, mais profunda, desesperada e faminta. Eu queria abraça-la, beija-la, trepar com ela ali mesmo na frente de todos, mas era ainda mais do que isso... eu queria misturar meu corpo com o dela, fundir nossas almas, tornar-me um com ela. Falando assim parece ridículo mas, acreditem, esses sentimentos tomaram-me completamente, eu não mais conseguia ver nada a não ser ela. A festa e todos nela deixaram de ser reais pra mim. A única coisa real era ela. Nem mesmo eu era real. Eu tinha que estar com ela para poder ser real. Para mim, naquele momento interminável, não havia nada de ridículo: era terrivelmente excitante... e assustador.

Os braços dela me envolveram, ao mesmo tempo eu que os meus a envolviam. Nos olhos dela eu podia ver o mesmo tipo de paixão desesperada que eu sentia, porém sem medo. Havia algo em seu olhar que dizia: "não receie entregar-se, pois isso eu também farei". Sim. Eu sabia que faria. Sabia que ela se entregaria completamente, de corpo e alma. Finalmente, nossos lábios encontraram-se.

Imediatamente fui tomado por um incomensurável emaranhado de sentimentos, imagens, sons, formas, cores e reflexos que rodopiavam por minha mente com a velocidade do pensamento. Naquele breve instante em que um beijo nos manteve unidos vi um universo de rostos desfilar diante de meus olhos fechados, rostos de amigos, de conhecidos, de pessoas que nunca vi e cuja existência ignorava... senti que conhecia intimamente todas as pessoas presentes naquela festa. Mergulhei em seus desejos mais secretos, seus sentimentos mais íntimos, suas fraquezas. Era maravilhoso. Era terrível. Esforço-me mais não consigo explicar devidamente essa experiência. Revi, num lampejo, tudo o que já tinha me acontecido e todas as vidas que de um modo ou de outro cruzaram-se com a minha. Senti o toque de mãos grosseiras cortando meus cabelos...era o dia do trote, o dia de minha matrícula na faculdade. Abri os olhos, em minha mente, e vi o azul dos céus de Ipeúna, sentindo o cheiro das árvores e aquela doce exaustão quando deitei-me nas rochas após explorar as grutas. Aplaudi, com entusiasmo, diante do encerramento da apresentação de "Muito Barulho por Nada", no velho teatro do SESI. Vi, novamente, as lágrimas de Milena enquanto lia o poema que fiz para ela, bem como as de Fernanda em meio ao desespero de sua própria solidão. Ouvi, reverente, Patrícia recitar seus poemas secretos, em noites mágicas perdidas no tempo. Pedalei velozmente minha Barraforte, tentando acompanhar o passo de Makoto, sereno em sua bike de marcha, numa tarde ensolarada de domingo no Horto Florestal. Numa estúpida fantasia de monge, num ainda mais estúpido Baile à Fantasia, sentado na calçada do lado de fora do salão superlotado, eu ouvia Kelly chorar baixinho ao meu lado e, naquele momento, eu compreendi que a amava. Senti os lábios dela tocarem os meus uma vez mais, sobrepondo-se aos lábios da estranha garota.

E foi tudo. Nossos lábios separaram-se. Minha cabeça ainda rodopiava naquele vendaval de imagens que pouco a pouco iam me deixando. Compreendam. O que me lembro e o que tentei descrever - com escasso sucesso - é apenas uma ínfima parte daquela experiência. A maior parte de tudo que vi e senti desapareceu de minha memória nos instantes seguintes. Apenas as sensações mais fortes e intensas permaneceram e foram elas que tentei transcrever. A garota sorria pra mim e sussurrava: "Venha comigo. Eu preciso de você". Mas eu mal conseguia ouvir. Meus olhos a fitavam mas eu não a via. Ao invés disso comecei a lembrar-me de Cristina. Cristina... Cristina... e então uma certeza ensandecida tomou conta de mim. A despeito da loucura de tal ideia, envolvi seu rosto com minhas mãos e disse:

- O sujeito que estava com Cristina... você é ele, não é?

Os olhos da garota arregalaram-se. Seus lábios tremeram e todo seu corpo pareceu, por um momento, estremecer como se fosse desmaterializar-se na minha frente. Então a expressão de surpresa desapareceu, sendo substituída por um ar de curiosidade. Seus olhos fitavam os meus como quem observa uma visão exótica e desconhecida. Por fim estendeu a mão e cobriu meus olhos com ela. Ouvi sua voz sussurrando bem próxima do meu ouvido: "O lugar secreto...".

Quando sua mão afastou-se do meu rosto sua expressão era séria e um pouco triste. Sorriu levemente com o canto dos lábios, num ar de cumplicidade que deixou-me confuso. Começou a afastar-se, sem desviar o olhar. Imediatamente segurei sua mão e tentei perguntar alguma coisa, mas eu não sabia o que... tudo o que havia na minha mente era uma enorme interrogação e aquela frase: "Lugar Secreto". O que significava? Quem era ela? Ela não podia partir sem me explicar!

Mas não consegui perguntar nada. Ela continuou se afastando até ficarmos com os braços estendidos um para o outro, de mãos dadas. Então, sua mão deslizou por entre meus dedos e ela deu-me as costas, caminhando por entre a multidão de foliões, mesclando-se e desaparecendo como se tivesse se incorporado a ela. Fiquei parado ali, no meio da festa, tentando avista-la novamente mas, de repente não havia mais sinal dela. Era como se nunca tivesse estado ali.

VII

A voz de Guber entoava o refrão de Roadhouse Blues, do Doors, e a massa de pessoas movia-se sem parar como se fosse formada por uma coisa só. Um único organismo vivo e pulsante, regozijando-se na noite. Sentia minha mente atordoada... é difícil explicar... como que amortecida. De repente eu tinha a impressão de que estava parado ali a horas... olhava ao meu redor e parecia que nada daquilo era real. Era como um sonho. Comecei a caminhar a esmo em meio a massa pulsante, esbarrando com inúmeras pessoas que eu mal podia reconhecer. Acho que cheguei a ver Milena conversando com alguém, mas não tenho certeza disso. Perguntava-me se ela tinha me visto beijando aquela bela desconhecida e o que teria achado disso. Por fim, vi-me sentado num canto, fora da área coberta da cantina, sozinho. Precisava de ar. Precisava voltar a pensar com clareza. Sentia-me triste. Não queria falar com ninguém.

De onde estava continuava observando as pessoas mas ainda não conseguia fixar a atenção em ninguém em especial. Continuava a ver a massa de pessoas como uma coisa una. Indivisível. Elas eram "A festa". E tinham uma voz.

Já parou para prestar atenção no murmúrio de centenas de vozes falando ao mesmo tempo? Num estádio de futebol, num auditório lotado, numa rua movimentada, num coquetel, num pátio de colégio, em qualquer lugar onde uma multidão heterogênea de pessoas esteja reunida, se você deixar de prestar atenção em uma voz em particular e ouvir o murmúrio das inúmeras vozes falando em conjunto, você sempre ouvirá a mesma voz... em qualquer lugar do mundo, qualquer língua que seja, o som do murmúrio ininteligível formado pela união de várias vozes falando ao mesmo tempo é sempre o mesmo. O mesmo tom, o mesmo timbre, a mesma voz. Sempre a mesma voz. A voz da multidão.

Era essa voz que eu ouvia ali sentado naquela noite, tantos anos atrás. A voz da festa, preenchendo minha mente, meus pensamentos. A voz do coletivo, formada por conversas maçantes, discussões acaloradas, cantadas baratas, declarações de amor, gritos frenéticos, sussurros maliciosos, balbuciares esdrúxulos, risos. Não era a primeira vez, e nem seria a última, em que eu viajava refletindo sobre coisas assim, mas naquele noite havia algo de diferente. A voz da multidão é sempre ininteligível mas, naquela noite, em alguns momentos, os sons inarticulados pareciam ganhar sentido e eu podia ouvir uma única frase, pronunciada por aquela voz bizarra: "Lugar Secreto".

Duas pessoas sentaram-se ao meu lado. Estava tão aéreo que, de início, não dei atenção, até que começaram a falar comigo. Era o Makoto e o Capivari, da Física. Capi falava comigo com seu habitual jeito apatetado. Alguma coisa a respeito do que eu estaria fazendo ali isolado de todo mundo. Normalmente eu acharia agradável bater um papo com o Capi, ele era sempre muito engraçado. Mas, como eu já disse, não queria falar com ninguém. Tudo que eu fiz foi limitar-me a responder com monossílabos até michar a conversa. De qualquer forma, foi bom por ter quebrado aquela espécie de transe em que eu me encontrava. Ao prestar atenção no Capi em particular, parei de ver a festa como uma única e monstruosa criatura e a voz voltou a ser o que sempre foi: sons inarticulados.

Ainda assim eu não estava a fim de papo. Levantei-me, com a desculpa de que iria ao mictório tirar água do joelho, e fui embora dali. Desci as escadas, atravessei o espaço até a cerca viva e dirigi-me à secretaria (os banheiros ficavam lá). Na verdade eu não queria ir ao banheiro. Só queria andar um pouco. Como sempre havia várias rodinhas espalhadas pelo pátio. Era onde ficava o pessoal que queria dar um tempo e curtir algo mais leve. Alguns casaizinhos se amassavam entre as folhagens, grupos de bêbados discutiam futebol, conquistadores profissionais usavam toda a sua lábia com menininhas que abririam as pernas com muito menos conversa.

Dirigi-me à entrada para a secretaria quando resolvi olhar para a direita e vi Cristina sentada na entrada lateral da biblioteca. Era um lugar escuro e solitário. Nessa rápida olhadela eu pude perceber de imediato duas coisas: ela estava sozinha... e estava chorando.

Não sei dizer o que deu em mim para inventar de me aproximar dela ao invés de deixa-la em paz já que, obviamente, ela não devia estar muito a fim de conversa. Mas eu estava curioso demais a respeito do sujeito que tinha estado com ela. Além disso, imaginei que talvez ela estivesse precisando de um ombro amigo.

De qualquer modo fui aproximando-me de mansinho até ela me notar. Estava chorando mesmo, a maquilagem toda borrada. Nunca tinha visto Cristina desse jeito. Ela era do tipo de amarrar bode, e até que não era incomum entrar em depressão, mas nunca tinha visto aquela garota destruída daquele jeito. E nunca mais vi de novo.

- Oi, Cris. Você tá legal? - pergunta estúpida. Era óbvio que não. Fiquei esperando ela dizer algo como: "Não é de sua conta" ou "Me deixa quieta aqui", mas não. Ela apenas me olhou com o ar suplicante de uma criança que se machucou e pergunta ao pai, em meio às lágrimas, por que é que dói tanto e "Por favor, faça parar".

- Eu... eu quero morrer. Você entende isso, não entende? Não há sentido! Não há sentido algum! Você entende, não é? Estamos todos sozinhos... não há nada além disso... Não há motivo para continuar... nenhum motivo para continuar. Como é que eu vou aguentar ter uma vida longa se não há motivo algum? Você entende?

Sim, eu entendia. Acho que todo mundo entende isso de uma forma ou de outra. A gente apenas finge que não para poder ir levando. Não há sentido e estamos todos sós. Dito assim soa tremendamente piegas, como novela mal escrita de um escritor de quinta categoria, mas a vida real dificilmente cria histórias criativas ou interessantes. O que me intrigava era por que Cristina tinha se deixado mergulhar naquele desespero depressivo em plena festa. Isso não era do estilo dela. Ela parecia ter perdido todo o seu glamour, estava apagada, obscurecida, até mesmo feia. Alguma coisa tinha provocado isso.

Um beijo, talvez?

- Cris, o cara que estava com você tem algo a ver com isso?

Ela não respondeu de imediato. Continuava com os olhos fixos em mim, soluçando sem parar, mas não estava me vendo de verdade. Estava perdida em seu próprio desespero, tentando recuperar o equilíbrio, debatendo-se na correnteza que a arrastava, tentando chegar à margem. Sussurrou algumas palavras inseguras que não consegui ouvir direito por causa dos últimos versos de Roadhouse Blues soando no ar, mas o que consegui traduzir pareceu-me: "Ele disse que me amava..."

Então, aparentemente, conseguiu segurar alguma raiz que boiava sobre a água e içou-se para a terra firme. Limpou as lágrimas e se levantou. Deu-me um obrigado meio sem jeito e falou alguma coisa sobre procurar sua carona para poder ir embora. Por fim, mais recomposta, despediu-se bruscamente e voltou para a festa.

Pensei, novamente, na garota que me beijara e imaginei como alguém como Cristina reagiria àquela experiência.

Talvez eu já soubesse.

VIII

Depois de ficar algum tempo sozinho, pensando, resolvi voltar para a festa (eu não estava mesmo precisando ir ao banheiro). Quando cheguei à escadaria vi Milena descendo em minha direção, toda sorrisos. Recuei até o bebedouro para esperar por ela. Ela chegou logo dizendo:

- Não adianta tentar disfarçar. Eu vi tudo e é bom você ir logo me contanto antes que eu morra de curiosidade.

- Tudo o que? Contando o que? - perguntei fazendo-me de sonso.

- Ah... não vem com onda pra cima de mim agora! Quem era aquela gatona? Vai, me conta tudo!

- Eu não sei quem ela é - e era verdade.

- Deixa disso! Entre nós não tem segredo, lembra?

- É sério. Eu não sei quem ela é. Nunca a vi antes.

- Mas... você foi chegando nela assim... do nada... e já estavam no maior agarramento.

- Pois é.

Ficamos em silêncio, nos encarando. Ela continuava toda sorrisos. Eu fiquei sério. Logo o sorriso michou. Milena perguntou em tom relutante:

- Foi legal?

Continuei quieto. Apenas sorri com o canto dos lábios.

- Acho que não foi, não é?

- Não muito - disse eu.

- Quer conversar sobre isso?

- Hoje não, meu amor. Minha cabeça está aérea demais. Mas certamente amanhã vou precisar de você pra desabafar.

Na verdade, no dia seguinte eu não toquei em uma palavra sequer com Milena e nem com ninguém desde então. Pelo menos até hoje, quando estou escrevendo isso.

- E você, está gostando da festa? - perguntei tentando mudar de assunto - Pintou alguma coisa?

- Você sabe que não. Não tem nada aqui pra mim... eu estou indo.

- Já, Mi? - eu estava mesmo chateado. Milena era uma das poucas pessoas cuja presença trazia um pouco de equilíbrio à minha vida. Só de estar perto dela já podia sentir os pensamentos ruins irem embora. Ela sempre fazia eu me sentir melhor sem precisar fazer nada pra isso. Apenas sendo ela mesma.

- É... já deu o que tinha que dar. Já passa das três.

- Não pensei que fosse tão tarde - menti. Eu sempre sentia cada minuto que se passava numa festa.

- Você vai ficar por aí?

- Vou dar mais um tempo por aqui... para ver o que acontece.

- Tá bom, então. A gente se vê amanhã. Passa em casa.

- Passo.

A gente se abraçou, ela me beijou no rosto. Antes que fosse embora de vez, perguntei:

- Kelly apareceu?

Ela fez um sorrisinho maroto pra mim e respondeu:

- Ela está aí... mas fica frio, tá.

- Eu sou frio - menti novamente.

IX

Chegara o momento do ápice da festa. Sempre acontecia por volta das três horas da manhã. Era o momento em que a festa atingia seu ponto máximo (em todos os sentidos que você puder imaginar) e, a partir daí, a qualquer momento, começaria a progressiva decadência que culmina nos escombros do amanhecer, quando tudo o que resta é uma melancólica coleção de bêbados, frustrados e perdidos, que acompanha o ritual de desmontagem do equipamento da banda, enquanto imploram por uma latinha de graça para terminarem a noite. Porém, enquanto a decadência não chega, o volume de pessoas amontoadas na cantina torna-se quase insustentável, embora os que estão ali no meio, normalmente, não se importem com isso.

Caminhei lentamente entre a massa, sem seguir nenhuma direção específica, praticamente deixando que a dinâmica de constante movimento da própria festa me conduzisse pra onde quer que fosse. Guber, já bastante "alto", resolveu liberar o velho rock nacional e começa a recitar os primeiros versos de "Aluga-se", do mestre Raul Seixas. A galera alucinada nem mesmo deve ter reparado na mudança de repertório. O povo da Ecologia, completamente chapado, dançava de pés descalços como uma tribo de índios em volta do xamã. Notei que havia bem menos pessoas conhecidas agora. Normal, o pessoal já começava a partir pouco a pouco. Vi Patrícia sentada sozinha num dos bancos que ficavam entre os arcos que dividiam as áreas coberta e descoberta do elevado. Parecia meio triste e meditativa. Decidi que não seria boa ideia incomoda-la. O tempo todo eu tentava encontrar algum sinal da garota misteriosa ou do sujeito que ficara com Cristina (podem me chamar de doido o quanto quiserem, mas eu estava tomado pela certeza absurda de que eram a mesma pessoa e nada, nem mesmo meu próprio bom senso, me tirava isso da cabeça). De qualquer modo, ambos pareciam ter desaparecido sem deixar vestígios.

O fluxo acabou conduzindo meus pés até o bar improvisado, sem que eu sequer percebesse. Alumínio e Lúcio estavam respectivamente vendendo fichas e servindo cervas. Comecei a me aproximar pra trocar uma ideia com eles quando vi Kelly sentada sobre uma das carteiras velhas que formavam o tosco balcão. Mas não foi vê-la assim repentinamente que me surpreendeu, fazendo-me até estacar de súbito. O que me surpreendeu mesmo foi constatar que ela estava sozinha. O infeliz do Marcelo não estava com ela.

Fiquei completamente apalermado. Não conseguia lembrar de nenhuma festa na qual Kelly não estivesse agarrada o tempo todo àquele cretino. Eu nunca me aproximava dela nas festas devido a isso. Preferia fingir que não a conhecia. Era melhor pra minha sanidade. Ao vê-la sozinha fiquei sem saber o que fazer. Por um tempo que me pareceu interminável (mas que não deve ter sido mais do que cinco segundos) fiquei estático tentando decidir entre sair fora de fininho fingindo não tê-la visto ou ir até ela e puxar conversa, até dar-me conta que ela estava olhando diretamente para mim e eu estava perto demais para poder sair fora sem parecer indelicado. Respirei fundo e aproximei-me mais.

- Oi, Kelly - foi a única coisa que me ocorreu dizer. Era sempre desconfortável falar com ela. Era como se nunca soubéssemos o que dizer um para o outro. Qualquer palavra, qualquer gesto poderia trazer de volta os sentimentos mal resolvidos do passado. Mas pensei: "Ora, dane-se! Essa noite já está mais do que esquisita mesmo".

- Oi - respondeu ela - e então, está gostando?

- Nada mal. Bem melhor do que a última festa que o CAEGE organizou. Olha só quanta gente - olhei ao redor, como que para confirmar o que dizia - Vai render um bom lucro para a Semana de Estudos desse ano.

- Eu acho que sim. Espero que sim.

Silêncio constrangedor. Era sempre assim. Algumas palavras iniciais e logo ficávamos sem saber o que dizer um para o outro, evitando permitir que nossos olhares se cruzassem. Teria sido uma boa deixa para eu dar uma desculpa qualquer e sair de perto mas... droga, ela estava tão linda. Seu cabelos soltos, seus olhos sinceros e brilhantes... Senti novamente aquele aperto no coração como já não sentia a muito tempo. Eu queria falar mais... eu queria saber porque o Marcelo não estava com ela... eu... nem sei bem o que eu queria.

- Senta aqui comigo - disse ela, finalmente - Vamos conversar um pouquinho.

Antes mesmo de pensar eu fiz o que ela pediu. Continuava perplexo. Normalmente ela também procurava evitar falar demais comigo.

- E aí, como vão as coisas? - perguntou ela.

- Como vão sempre, eu acho - respondi.

Silêncio novamente.

- Notou como faz muito tempo que a gente não senta pra conversar como antes? - disse ela, em tom pausado e cuidadoso.

- E não acha melhor assim.

- Como assim?

- Ora, não se faça de tonta, Kelly.

Ela abaixou a cabeça. Ela não era tonta.

Ninguém disse nada por mais algum tempo. Fiquei observando a multidão, ainda procurando a garota.

- Ela é bonita, não é? - suspirou Kelly.

- O que?

- Aquela moça.

- Moça? - senti minha face ruborizar, sem que houvesse motivo real para isso.

- Agora é você que está se fazendo de tonto - riu ela. Falava num tom propositadamente cordial, tentando demonstrar uma indiferença simpática, mas não conseguia disfarçar uma certa irritação.

- Você estava vendo? - perguntei, sorrindo com o canto dos lábios.

- Bom, vocês não fizeram muito segredo.

- É. Acho que não mesmo.

Silêncio.

- Não vai me dizer quem é ela? - perguntou Kelly.

- Por que quer saber?

- Eu sou curiosa.

- E eu sou discreto.

Mais silêncio. Senti que a irritação dela aumentava. Ela queria mesmo saber quem era a moça.

- Está com ciúme, por acaso, Kelly?

Ela voltou-se para mim e me fulminou com o olhar:

- Claro que não!

- Ainda bem - respondi, com um inevitável sorriso cínico - Seria o fim da picada depois de tudo o que já nos aconteceu.

Depois dessa eu sabia que a conversa acabaria. Não fazia diferença saber se ela sentia ou não ciúmes de mim, afinal. As coisas haviam tomado rumos irreversíveis e havia barreiras muito fortes entre nós que jamais permitiriam que voltássemos a ser íntimos como éramos até alguns meses antes. Não havia mais espaço para amor, ou mesmo simples amizade, entre nós. De minha parte a amizade e o amor estiveram sempre entrelaçados: desistir de um era desistir de tudo. Quanto a ela... quem sabe? Que diferença faz agora?

Por isso era tão estranho estar sentado ao lado dela naquela festa. Por um momento um lampejo de nosso antigo elo pareceu emergir, mas só por um momento. A conversa estava terminada e tudo que eu precisava era de uma desculpa para me despedir dela. Uma rápida olhadela para as escadarias lá fora foi o bastante para ver a "desculpa" se aproximando:

Marcelo. Sua forma volumosa vinha subindo a escadaria, com seu rosto já avermelhado pelo excesso de cerveja. Vocês não têm a menor ideia de quantas formas adoráveis eu já imaginara para matá-lo desde que se intrometeu pela primeira vez entre mim e Kelly. Meia dúzia delas passaram pela minha cabeça naquele instante. Por favor não cometam o erro de achar que eu apenas me limitava a imaginar e jamais colocaria algum plano nefasto em prática. Se fizerem isso estarão partindo de uma premissa errada ao meu respeito. O único motivo que me impediu de realmente fazê-lo foi nunca ter conseguido pensar numa forma que me desse a certeza absoluta de impunidade. Sem essa certeza não valia a pena o esforço, mesmo com uma margem de erro mínima.

Não sei o que ele andara fazendo ou por que não estava com ela o tempo todo como era de seu costume, mas também não tinha mais interesse em saber. Levantei-me e fui embora sem dizer uma palavra para ela. Não era mesmo necessário dizer nada. Sequer olhei para trás mas, de alguma forma, sei que os olhos dela continuaram a me seguir até eu sumir de vista na multidão.

X

Nem preciso dizer que àquela altura a festa praticamente acabou pra mim. Já devia ser quase quatro da manhã e a decadência já se fazia sentir de maneira tão intensa que era quase palpável. Não sei quanto tempo fiquei andando de um lado pro outro, subindo e descendo as escadarias, indo até a rua e voltando, movendo-me automaticamente com o único objetivo, inconsciente, de não ficar parado enquanto minha cabeça tentava processar o encontro docemente amargo de minutos antes. Mas é impossível, claro, pensar com clareza numa festa. O barulho, o movimento, há distrações demais para que seja possível se concentrar.

Até mesmo a garota misteriosa havia perdido a sua importância. Praticamente desaparecera de minha mente. Eu provavelmente teria ido embora se não a tivesse, repentinamente, reencontrado quando voltei-me em direção aos dançarinos junto a banda que agora escancarava um "Born to be Wild" meio desafinado. Ela dançava junto com os outros, atraindo olhares cobiçosos de inúmeros homens, além de uma mal disfarçada e irritadiça admiração por parte das mulheres. Quando a vi eu estava perto da escadaria, na parte descoberta do elevado. Aprecei-me por entre a multidão aglomerada entre nós, tentando alcança-la antes que sumisse de novo. Passei por Kelly que trocava germes com Marcelo encostados num dos arcos que levavam a parte coberta do elevado, mas mal dei-me conta disso. Estava a menos de um metro dela quando o grandalhão do Sumaré passou na minha frente, ocultando-a de minha vista por um instante. Quando ele saiu de minha frente ela tinha sumido.

Senti-me a um passo de um acesso de raiva. Ela não poderia ter sumido tão rápido. Mas o fato é que não havia o menor sinal dela em parte alguma que eu pudesse ver.

Acreditem. Depois dessa, mais do que qualquer coisa, eu queria sumir daquele lugar, ir embora pra minha casa, deitar na minha cama e só levantar lá pelas quatorze horas do dia seguinte... mas, alguma coisa me impedia de fazê-lo. Era uma sensação que não me era de todo estranha. Em muitas das festas nas quais eu já comparecera eu tive a sensação de não poder partir antes do fim porque eu poderia perder alguma coisa se o fizesse. Parece besteira, mas nós sempre tendemos a querer ficar até o fim para ver como a coisa vai acabar. Embora sempre acabe do mesmo jeito. É incrível! É como uma cola, que nos prende no mesmo lugar. Naquela noite a sensação de que eu iria perder algo muito importante se partisse era muito mais forte do que de costume. Eu logo soube que não conseguiria ir embora sem falar com aquela garota de novo. Eu não suportaria ficar sem saber a resposta para esse mistério. E, por mais que minha mente racional esbravejasse contra as possibilidades insanas que passavam a todo instante pela minha cabeça, mais eu era tomado pela absurda certeza de que o cara que ficara com Cristina, e a deixara naquele estado de crise existencial profunda, e a garota que eu procurava eram a mesma pessoa. E mais do que isso: quem ou o que quer que fosse, tinha a capacidade de simplesmente desaparecer como um fantasma.

Bem, eu sempre fui um cara muito fantasioso, sou o primeiro a admitir. Talvez eu tivesse me agarrado a essas especulações malucas numa tentativa desesperada de encontrar algum sentido em mais aquela noite perdida e vazia. Um mistério... um enigma genuíno, tem sabores e nuances que vão muito além do racional e da lógica... e eu adoro um belo mistério. Se as coisas não tivessem acontecido como aconteceram depois, aquela festa terminaria com um frustrante retorno para casa, como todas as outras.

Voltei à escadaria e montei sentinela. Sabia que todo mundo teria de passar por mim para ir embora. Mais cedo ou mais tarde a garota passaria também. E mesmo que não o fizesse, conforme o aglomerado de pessoas fosse diminuindo seria mais fácil procura-la. Cruzei os braços e encostei-me a uma das colunas que ladeavam a parte superior da escada. Desse ponto eu tinha uma boa visão de todo o elevado. Guber já dava sinais de cansaço, a qualquer momento anunciaria a saideira. Tudo que eu precisava fazer era esperar.

O fluxo de pessoas que desciam as escadas já era maior do que os que subiam quando algo me chamou a atenção. Perto do bar improvisado, uma moça conversava com um cara da Biologia. Uma moça que eu nunca tinha visto antes mas que me pareceu incrivelmente familiar. Seus cabelos eram negros e encaracolados, a pele suave era levemente amorenada, não tinha nada nas mãos, nem cigarro e nem bebida, seu olhar para o biólogo era de uma fascinação e curiosidade semelhantes aos de um cientista para com seu objeto de estudo. O cara parecia tremendamente inseguro diante dela, parecia falar com dificuldade como se não conseguisse pensar no que dizer, apalermado como um homem que se vê repentina e perdidamente apaixonado. E não era pra menos. Ela era mesmo fascinante. Mais do que isso: enfeitiçante. Era bela, mas não mais do que muitas outras garotas que ainda circulavam por ali, mas mesmo assim ela tinha algo de inconcebível, algo que ia além da simples beleza. Tudo nela parecia exalar sensualidade e vida... ela era... muito mais viva e... real... do que todos que a cercavam...

Não havia dúvidas. Era ela. A garota que me beijara. O cara com quem Cristina ficou. Era ela! ELA!

O choque deixou-me paralisado. Como poderia ser verdade? O que diabos estava acontecendo?

Sem nenhum motivo aparente ela desinteressou-se do biólogo, disse alguma coisa que deveria ser uma despedida cordial e desvencilhou-se do frustrado rapaz com a graça atrevida de quem se deixa conduzir apenas pelos próprios caprichos. Começou a caminhar em minha direção, sem preocupar-se em desviar das pessoas que lhe barravam o caminho. Ante sua aproximação todos, inconscientemente, abriam passagem, como por mágica. Precipitei-me em direção a ela mas esbarrei num gorducho da Computação e perdi brevemente o equilíbrio. No tempo que levei para me recompor ela desapareceu.

Fiquei parado, como um palhaço, no meio da festa tentando entender o que estava havendo. Mas dessa vez algo me ocorreu. Com uma urgência nascida do desespero comecei a perscrutar o rosto de todas as pessoas perto de mim. Um grupo de bêbados da física, uma rodinha de bem humorados arrumadinhos, casais se agarrando, solitários bebendo suas cervejas em silêncio, todo aquele emaranhado de tipos humanos. Notei, então, que tinha um sujeito me olhando. Um sujeito de cabelos ruivos e face encovada, com porte vistoso e bem vestido. Quando nossos olhos se encontraram não tive dúvidas de que era ele quem eu procurava. Como a garota que me beijara ele não trazia nada nas mãos, como o parceiro de Cristina ele emanava vida e beleza além de uma explicação convencional, como a garota morena de instantes antes ele era mais real do que todos os demais.

Quando ele percebeu que eu o tinha notado, começou a caminhar para a área coberta, em direção à banda, sem desviar os olhos dos meus. Seus cabelos vermelhos pareciam prestes a entrar em combustão espontânea de tão vivos. Ele não precisava olhar por onde andava pois as pessoas iam abrindo passagem como fiéis serviçais. Logo sumiu do meu campo de visão e embrenhou-se entre o aglomerado de dançarinos que pareciam ter decidido encerrar a noite em meio as êxtase selvagem do rock'n'roll embriagado.

Com passos rápidos, avancei e misturei-me à massa de corpos em movimento. O Hímen Blues tocava um alucinante Rolling Stones que dava a Guber a chance de mostrar seus dotes com a harmônica. Não encontrei nenhum sinal do ruivo. Desapareceu como se tivesse evaporado no ar. Mas, dessa vez, isso não me surpreendeu.

Uma vez mais fui tomado por aquela estranha sensação de irrealidade à qual me referi anteriormente. De repente era como se o tempo e tudo o mais ao meu redor se movesse mais lentamente, embora nada tivesse mudado de verdade. A banda, Guber, a música, as pessoas, o lugar, tudo parecia parte de um sonho, parte de uma coisa única e indefinível, algo maravilhoso e assustador... muito assustador. Senti-me entrando numa espécie de transe. Eu via as pessoas dançando bem junto a mim, mas pareciam distantes como estrelas perdidas, irreais... inatingíveis...

O pessoal da ecologia continuava a contorcer-se incansavelmente como membros de uma tribo perdida. Alguns rapazes da Física chacoalhavam as cabeças como desvairados. Um pouco atrás, Luciene, Ana Cláudia e Juliana mexiam os corpos sem muito entusiasmo, apenas tentando chamar a atenção para o fato de que ainda estavam sozinhas àquela altura do campeonato. Animal, revigorado, pulava de um lado pro outro como um gorila das montanhas. A alguns passos de mim, um rapaz de cabelos loiros compridos, usando camiseta sem gola e calças jeans, dançava envolventemente, de modo muito pessoal. Foi preciso apenas uma rápida olhadela para que eu compreendesse que o ruivo que eu seguira até ali... era ele.

O jovem movia-se num ritmo lento, quase como num ritual. O corpo levemente curvado para frente e para o lado, os braços abertos, as mãos dispostas como num sinal de adoração, os pés movendo-se em passos complexos e ritualísticos como numa dança sacerdotal em celebração a antigas e obscuras forças da natureza. Ele, de fato, parecia uma força da natureza, estranha, primordial, além de qualquer interpretação ou compreensão, porém, indiscutivelmente, belo.

Sem permitir que nenhum pensamento racional me dominasse, juntei-me a ele em sua dança que era como um convite. Rodopiávamos em torno um do outro e de nós mesmos, mal nos dando conta de nossa mútua presença. Tudo o mais tornara-se irreal e desprezível. Toda a realidade resumia-se a ele, com seus cachos dourados emoldurando o rosto iluminado. Sua face estava tomada por um êxtase inconcebível. Seus olhos pareciam fitar apenas o vazio ou, talvez, outros mundos e dimensões. Entretanto, as vezes olhava diretamente para mim com uma expressão indecifrável.

Deixei-me dominar pelo transe. Libertei o corpo aos caprichos da música e dos instintos que ditavam os movimentos seguindo princípios caóticos e tortuosos. Sentia-me como o fauno em seu êxtase sagrado pelos bosques ao som dos alucinados menestréis. Não podia mais ver nada nem ninguém ao meu redor... a não ser ele. Não sei quanto tempo permaneci nesse torpor e nem em qual intervalo voltava meus olhos para fitá-lo. Ele era a única coisa real para mim naquele momento, mas mesmo assim parecia... mal definido. Seus contornos, de quando em quando, tornavam-se pouco nítidos... Ainda assim, não fiquei surpreso ao perceber que aqueles cabelos louros não mais adornavam um rosto masculino. Agora era uma garota que dançava ao meu lado. Os cabelos ainda loiros, porém mais curtos, a pele muito branca, quase pálida, usando uma camiseta surrada, um short jeans desfiado e chinelos de dedo.

Seus rodopios tornavam-se, pouco a pouco, mais intensos. Os meus seguiam os dela como se nossas essências estivessem ligadas. A música cada vez mais arrebatadora, forçando nossos corpos além dos limites. Ela girou sobre si mesma e ergueu os braços acima da cabeça, contorcendo-se como uma sensual serpente, deixando suas pulseiras deslizarem livres pelos antebraços. Os cabelos, agora curtos e escuros, não se opuseram ao movimento, a camisa larga saiu de dentro da calça justa azul escura, revelando a barriga amorenada. Um novo rodopio e seus olhos negros fitaram-me intensamente. Era uma mulher estonteante - não mais uma garota, mas uma mulher, no auge de sua beleza e forma física. O som da harmônica voltou a dominar a cacofonia de sons quando notei que os gestos dela tornaram-se masculinizados demais. Talvez fosse lésbica, pensei. Mas não, que tolice, agora era um homem, forte e robusto, aparentando trinta e cinco anos de idade, o rosto sério marcado pelas rugas prematuras de uma vida intensa. Girei sobre mim mesmo, voltando os meus olhos para o alto, e quando os baixei ele era agora um rapaz de dezenove anos, de gestos afeminados, logo substituído por uma moça risonha, levemente acima do peso, usando mini saia e colete justo. A música não parava de tocar... o tempo cessara seus ciclos... o mundo se resumia apenas à dança interminável, ao caleidoscópio de sons e formas mutáveis, incessantes. Então a Voz, a Voz da multidão, falou comigo como tinha feito antes. Eu a ouvi dizer, nitidamente: "Por que você nos segue?"

Imediatamente parei de dançar. Fechei os olhos, sentindo um mau estar terrível. Minha cabeça girava como um pião. Andei apressado, como um bêbado, cambaleando, e me apoiei do lado de um dos arcos que levavam para a área descoberta. Respirava com dificuldade, achei que iria desmaiar. A Voz falou novamente, num tom que soava quase com cumplicidade: "O que você quer de nós?"

Eu não conseguia falar. Não conseguia abrir os olhos. Mesmo assim, respondi a pergunta com minha mente: "Quero fazer parte disso. Quero você. Quero ficar com você."

"Você já está conosco." respondeu a voz.

"Eu não entendo."

"Você já está conosco. O que mais você quer?"

"Sinto-me só."

"O que você quer?"

"Não quero ficar sozinho".

"O que você quer de nós?"

"Por favor, não me deixe sozinho".

"O que você quer de nós?"

"Por favor... por favor... por favor... por favor..."

Senti minhas pernas falharem sob meu corpo, ou talvez o chão estivesse sumindo sob os meus pés. De algum modo consegui encontrar um dos bancos que ficavam na área descoberta, entre os arcos. Deixei-me cair sobre ele e escondi o rosto com as mãos para que ninguém me visse chorando.

XI

Que pieguice, não é?

Ora, foda-se! Não estou nem aí para o que vocês pensam. Que diferença faz agora? Estou contanto exatamente o que aconteceu. Não há porque mentir. Não faria sentido esconder nada a essa altura do campeonato.

Levei um tempo considerável, mas consegui me recompor. Ainda assim, continuava encolhido, com as mãos no rosto, receando abrir os olhos e encarar os olhares maliciosos que, na certa, estariam voltados para mim. Então ouvi uma voz suave e familiar, muito próxima:

- Sei como está se sentindo.

Reconheci a voz imediatamente. Ao abrir os olhos, voltei-me para Patrícia, sentada ao meu lado no banco. Provavelmente devia estar ali o tempo todo.

- Ele o tocou também, não foi? - perguntou ela, sem demonstrar qualquer sinal de espanto ou estranhamento por ver-me com o rosto molhado de lágrimas. Pelo contrário, seu olhar transmitia-me uma sensação de empatia, como se ela compreendesse exatamente o que eu tinha passado e o modo como me afetara. Senti algo estranho. Era como se houvesse uma espécie de ligação entre nós.

Como se estivéssemos em sintonia.

Isso deixou-me ainda mais perturbado. Fiquei sem reação. Não consegui encontrar palavras para me comunicar com ela. Mas, pelo visto, não era necessário. A resposta que ela precisava devia estar escrita em meu rosto.

- Eu fiz mesmo, sabe - disse ela com o sorriso sem graça de quem confessa uma falta - eu pus um par de chifrinhos no Alex, como você disse que eu faria. Espero que ele nunca fique sabendo.

Eu continuei em silêncio. Fingindo para mim mesmo que não estava entendendo do que ela estava falando. Ela esperou pacientemente, sem tirar os olhos dos meus. Finalmente disse:

- Ora vamos. Eu sei que ele te tocou. Eu vi você seguindo-o por toda parte, durante a festa inteira.

- Ela... me tocou sim - consegui dizer, por fim, mas minha voz soou insegura e débil, até para mim. Patrícia sorriu e baixou os olhos:

- Ela... ele... que importa.

Engoli em seco. Sentia-me um pouco melhor. Já conseguia pensar com mais clareza. Inclinei-me ligeiramente na direção dela, perguntando:

- Você... você ficou com... ele... Patrícia?

Ela respirou profundamente antes de começar.

- Ele não era muito bonito, sabe. Pelo menos não era o tipo de homem que eu costumo considerar atraente. Mas tinha algo de encantador... difícil de definir... algo...

- Mágico? - completei ao lembrar-me de nosso breve papo de horas antes.

- Sim - sorriu ela, voltando a me fitar - essa palavra é mais adequada do que qualquer outra. Mágico. Ele era irresistível, entende o que quero dizer?

Fiz que sim com a cabeça.

- Tinha cabelos loiros - continuou ela - um rosto bem jovem. Tinha até bochechas rosadas que me faziam lembrar do Alex. A gente ficou junto num daqueles bancos discretos na área mais escura do jardim. Eu não queria que ninguém nos visse, nem preciso explicar porque, não é?

Ela parou de falar. Parecia estar recordando. Depois de alguns instantes recomeçou:

- Não sei dizer se foi bom ou ruim. Talvez os dois, ao mesmo tempo.

- "Era o melhor dos mundos... era o pior dos mundos... e eram todos de uma vez" - recitei, parafraseando Dickens.

- Tem razão - concordou ela, com uma expressão séria - O melhor e o pior dos mundos.

- Sim, mas eu não me referi exatamente a... ele. Eu usei essa citação várias vezes no passado. Sempre que Kelly me perguntava o que eu tinha achado da festa da noite anterior.

- Então - disse ela - você já deve ter chegado às mesmas conclusões que eu.

- Acho que sim.

Sim, eu compreendia. Finalmente eu compreendia. Compreendia sua solidão, sua instabilidade, seus caprichos, sua inocência, sua maldade. Eu compreendia perfeitamente o que ele era. Na verdade, era óbvio.

- Se é assim - continuou Patrícia - por que você o seguia? O que esperava descobrir?

Era verdade. O que?

- Eu... eu precisava saber mais sobre ele. Tinha tantas perguntas a fazer. Eu esperava... esperava que... ele pudesse me dar...respostas. Entende?

Não. Como ela poderia entender? Ela não era como eu. Éramos diferentes em muitas coisas. Eu sempre fui tão inseguro. Tinha tanto medo do isolamento, da solidão. Minhas amizades, meus relacionamentos, sempre tinham um quê de obsessão, de tentativas de encontrar o equilíbrio através de outras pessoas. Patrícia era diferente. Ela sabia que a solidão era inevitável. Sabia que, na verdade, todos estamos sempre sozinhos, desde que nascemos até o dia de nossas mortes. Estamos sempre sós, mesmo numa festa agitada como aquela... ou talvez, principalmente numa festa agitada como aquela.

Patrícia compreendia essa verdade. Via-a com naturalidade. Não temia a solidão. Não receava limitar-se ao seu próprio mundo pessoal como todos acabam sendo obrigados a fazer. Fazia da solidão uma aliada. Uma fonte, não de desespero, mas de autoequilíbrio, autoconhecimento. Quanto sentia-se angustiada, triste ou frustrada, trancava-se em seu quarto, as vezes por horas, refletindo, meditando, escrevendo poesias e pequenas histórias, descansando o corpo e a alma, buscando o autoequilíbrio para retornar ao convívio de outros seres humanos.

Eu a conhecia. Graças às nossas longas conversas, às poesias que trocávamos. Mas não completamente. Ninguém, eu suspeitava, conhecia Patrícia completamente. Ela não entregaria seu coração e sua alma às mãos de outra pessoa numa tentativa fútil de transferir para outros a tarefa de se autoafirmar, apenas por achar ter encontrado um amigo da mais absoluta confiança ou o maior amor de sua vida. Já eu... eu fazia isso constantemente.

- Eu tenho estado sentada aqui... desde que ele me deixou - disse ela - tenho estado pensando. Olhando o movimento... as pessoas. Voltei a vê-lo várias vezes, movendo-se entre as pessoas. Mas já não tinha cabelo loiro, nem bochechas rosadas. As vezes nem mesmo era um homem. Mas eu sempre o reconhecia, não importava que forma tivesse. Havia uma coisa que nunca mudava.

- Eu sei - interrompi - ele sempre parece mais real do que todos a sua volta.

Isso a surpreendeu muito. Voltou-se para mim com uma expressão de estranhamento.

- Não, é bem ao contrário. Ele é irreal. É como um fantasma. As vezes parece até estar flutuando no ar e não caminhando. Tenho quase certeza que nem mesmo projeta sombra, mas é difícil ter certeza aqui.

Olhei para ela mudo de espanto. Logo, sua expressão mudou para um sorriso de simpatia. Ela tocou em meu rosto, ainda meio úmido, e disse:

- Ele não poderia te dar resposta alguma, meu amigo. Ele não possui resposta alguma.

E foi tudo. Continuamos sentados ali, lado a lado, por mais algum tempo. Então ela se levantou, sem dizer mais nem uma palavra, e partiu. Foi para casa. Na semana seguinte, quando nos reencontramos, não voltamos mais a falar do assunto e foi assim até a última vez que a vi, como se um acordo não-verbal tivesse sido firmado entre nós. Faz anos que não a vejo pessoalmente, mas continuamos trocando correspondência. Sei que a vida dela, mais do que nunca, continua ligada a magia. Acho que vou mandar uma cópia desse conto para ela antes que tudo termine. Creio que devo isso a ela.

Naquela noite, a noite da última "Festa da 10", sentado naquele banco depois que Patrícia se foi, testemunhei o definhar da festa quando o relógio já se aproximava das cinco da manhã. O fluxo de pessoas decrescia mais e mais, a multidão de foliões antes tão viva e iluminada dava progressivamente lugar para um restolho de bêbados e frustrados que gastavam os últimos resquícios de dignidade implorando latinhas de cerveja de graça no bar improvisado para terminar a noite. De vez em quanto eu o via, o estranho de mil faces, sempre numa forma e num sexo diferente, caminhando a esmo pela festa, parecendo cada vez mais deslocado e desconfortável conforme o número de pessoas diminuía. De alguma forma sua aparência parecia ser sempre um reflexo ou um símbolo do próprio estado de desmoronamento em que a festa se encontrava. Ele não era mais tão radiante. Na verdade, agora parecia decadente. Chegava mesmo a cambalear como um bêbado, apesar de nunca tê-lo visto nem uma vez sequer com um copo na mão.

Por fim notei que ele havia desaparecido totalmente. A festa terminara. Guber e o pessoal do Hímen Blues estavam ocupados desmontando o equipamento. O bar já tinha sido desmontado e o pessoal do CAEGE, Kelly inclusive, contava o dinheiro na salinha do centrinho. Não havia mais sinal dele.

Engraçado. Até mesmo quando o vi pela última vez, quando ele tinha a aparência de uma garota vulgar e embriagada, ainda pareceu-me mais real do que qualquer coisa que eu já vira, apesar do que Patrícia dissera.

Mas eu sabia, é claro, que ela tinha razão. Ele não tinha respostas para mim.

Não existem respostas.

XII

Ainda sentado no mesmo lugar, vi as últimas pessoas indo embora. O Hímen Blues partiu primeiro. Guber chegou a trocar algumas palavras comigo, mesmo estando bem chumbado. Garanti que eles nunca tinham tocado melhor. Ele agradeceu e foi embora tranquilo. Alumínio foi logo depois. Estava cansado demais pra conversar. Ainda bem, eu não queria mesmo papo. Estava apenas aguardando.

O restante mal notou minha presença. Estavam ocupados dando uma geral na bagunça na sala do CAEGE, contando o dinheiro arrecadado e acertando os detalhes com a equipe de segurança que sempre era contratada para eventos como aquele. No lugar onde eu estava sentado, na parte descoberta do elevado, atrás de um dos arcos, eles não podiam me ver. Olhei para o relógio. Eram cinco e quinze da manhã. O Sol não tardaria a nascer.

Finalmente todas as luzes foram apagadas e o lugar mergulhou na escuridão, quebrada apenas pelo brilho distante das estrelas e por uma tímida luminosidade no leste que já anunciava o amanhecer. Valéria, Marcelo, Kelly e três dos gorilas da segurança dirigiram-se à escadaria, parecendo esgotados e deprimidos. Notei que Valéria carregava uma pequena caixa sob o braço. Provavelmente a grana da festa que seria investida na Semana de Estudos daquele ano. Quando Kelly me viu ela pareceu genuinamente surpresa.

- Você não vai embora não? - disse ela, num forçado tom de gracejo. Eu podia notar preocupação em seus olhos, apesar da penumbra. Eu devia estar parecendo um fantasma, meio oculto pelas sombras, sentado naquele canto esquecido.

- Ainda tenho coisas a fazer aqui - limitei-me a responder, tentando conter o riso por notar a expressão de desagrado de Marcelo. Ele nunca conseguia esconder o descontentamento sempre que Kelly demonstrava qualquer tipo de afeição por mim, por mais insignificante que fosse.

- Mas não tem mais nada aí - insistiu ela. Os demais já tinham descido as escadas e desaparecido. A irritação de Marcelo por ainda não terem feito o mesmo era quase palpável - Vai ficar aí sozinho?

- Eu estou - respondi, com um sorriso.

Ela fez menção de dizer mais alguma coisa, mas uma rápida olhadela para Marcelo a fez mudar de ideia. Kelly pronunciou um de seus típicos "Tá legal" que na prática queriam dizer que nada estava legal, e deu um tchau apressado. Os dois desceram as escadas e sumiram. Eu fiquei sozinho na escuridão.

O silêncio era tão estranho. Não fosse pelas latas amassadas espalhadas pelo chão seria difícil acreditar que aquele lugar solitário e silencioso tinha sido palco de uma festa pela qual centenas de pessoas passaram. O silêncio e o escuro formavam uma espécie de manto, recobrindo tudo, trazendo paz e equilíbrio onde antes as forças do caos imperavam. Nunca me senti tão sozinho. Mas a sensação não era ruim. Pelo contrário, eu me sentia em paz, sereno, calmo. Deixei meus pensamentos livres para seguirem os caminhos que mais lhes aprouvessem, sem interferir, deixando que as coisas simplesmente viessem até mim.

Pensei, então, na porta.

Como eu já disse antes, na parte coberta do elevado, no lado oposto ao da cantina, havia três portas. Uma era a porta da sala do Diretório Acadêmico. A segunda era da sala do CAEGE. A terceira porta era um mistério completo.

Em todos os anos de faculdade nunca ninguém soube me dizer o que havia atrás dessa porta. Nunca ninguém a tinha visto aberta. Estava sempre trancada e parecia estar assim a muitos anos. Ninguém dava muita atenção a ela. Alguns diziam que era uma espécie de depósito, outros que era um sanitário abandonado, outros faziam especulações das mais esdrúxulas. Na época em que eu ainda namorava Kelly eu brincava com ela, viajando na maionese a respeito do que diabos haveria atrás da porta misteriosa. Talvez a passagem para uma cripta subterrânea, eu dizia, ou para uma outra dimensão, ou para uma sala secreta onde o diretor torturava alunos rebeldes para dar vazão aos seus instintos sádicos. Mas, brincadeiras a parte, eu sempre tive muita curiosidade em saber o que havia atrás daquela porta. É quase certo que se algum maluco sugerisse arromba-la numa noite qualquer, eu o faria. Sem dúvida o faria. Mesmo que fosse para descobrir que não era nada mais senão um desinteressante sanitário abandonado.

Levantei-me, por fim, e caminhei até a tal porta. Meus passos eram decididos, porém lentos. Não havia razão para pressa. Deixei meus olhos acostumarem-se à escuridão e não fiquei nem um pouco surpreso ao ver que a porta misteriosa estava aberta. Como se nunca tivesse estado trancada.

Lembrei-me da Voz da Multidão repetindo, para mim, sem parar aquelas palavras: "Lugar Secreto". "Claro" pensei "Era tão óbvio, afinal de contas".

Cautelosamente, toquei na porta entreaberta, empurrando-a e produzindo um estridente ranger de dobradiças enferrujadas por anos de imobilidade. Não tinha muitas esperanças de ver alguma coisa lá dentro, naquela escuridão, mas surpreendi-me com uma tênue luminescência que parecia vir de baixo. Dei um passo para o interior do minúsculo cubículo cheirando a bolor e vi que havia uma abertura estreita no chão, que era de onde vinha o fraco bruxulear luminoso. Olhei para o interior da abertura e vi o topo de uma escada em espiral que desaparecia no subterrâneo.

Como a maioria dos alunos da UNESP, eu sabia que não havia porão na Cantina da 10. Pelo contrário, o interior do elevado era na verdade um grande reservatório de água do tipo antigo. Não havia espaço para a existência do que quer que fosse o lugar aonde aquelas escadas levavam. Isso era certo.

Mas que diabos! Elas estavam ali, na minha frente, não estavam? Então, que importância tinha, afinal?

Testei a resistência do primeiro degrau. Era firme e sólido. Era real. Uma vez certo disso, comecei a descida.

XIII

Ao descer aquelas escadas toscas, sentindo a madeira ranger sob os meus pés, não pude deixar de sentir uma sensação de opressão quase física. A sensação não me era de todo estranha: era similar ao mau estar que já me dominara tantas vezes antes em festas, não só na Cantina da 10 como em qualquer outro lugar. A diferença agora estava na intensidade. Ao adentrar aquele porão (ou seria cripta?!), tão secreto quanto solitário, escuro e fétido, fui dominado por uma angústia terrível, como se o peso de um mundo fosse despejado sobre minhas costas. Caminhei por aquele porão, tão amplo que seria necessário o tempo de uma vida para explora-lo por inteiro e, quase como por instinto, meus passos me guiaram até ele. Na penumbra das tênues lamparinas fixas nas paredes e colunas de pedra, ele era quase invisível. Jazia, sentado na poeira, encolhido e imóvel, abraçando as pernas contra o corpo numa posição fetal. Não tinha traços físicos ou características que o individualizassem: seu corpo era liso e amorfo, como um boneco de massa, sem feições, sem textura, sem cor, tão transparente que eu podia enxergar através dele. Não estava vivo, mas tampouco estava morto: tais conceitos humanos não se aplicavam a ele. Estava inanimado agora. Era até difícil acreditar que, a poucas horas atrás, na festa logo acima desse porão tétrico, essa mesma figura não só possuía forma, cor e vida, como também emanava um encanto quase irresistível. Dançava, sorria, amava, cada gesto seu carregado de intensa vivacidade, tão belo que seria capaz de seduzir a quem quer que desejasse, como de fato o fez. Agora que todos haviam partido, não era mais nada. Toda beleza, toda vida, se fora.

Aproximei-me dele, fascinado pelo próprio fato de tal criatura existir. E ante minha presença, repentinamente tomou cor, tomou forma, começou a respirar. Ergueu a cabeça e sorriu pra mim. Seu rosto... era o meu rosto!

Fechei os olhos e suspirei demonstrando todo o meu cansaço. Naquele momento a última peça do quebra cabeça encaixou-se e a compreensão me fez perceber que não havia mais nada a fazer ou dizer. Ao abrir os olhos, tudo o que fiz foi murmurar:

- A Bao A Qu.

XIV

Claro que esse talvez não fosse o nome mais adequado para batizar aquela estranha criatura. Mas esse nome é tão bom quanto qualquer outro. Existe uma lenda, registrada nas Mil e uma noites, que conta que para ver a paisagem mais extraordinária do mundo, é preciso atingir o último andar da Torre da Vitória, em Chitor, onde quer que seja isso. Para faze-lo, o visitante deve escalar uma escada em caracol que, desde o princípio dos tempos, é guardada pelo A Bao A Qu, uma criatura sensível aos valores das almas humanas. Vive em estado letárgico, no primeiro degrau, e só goza de vida consciente quando alguém sobe a escada. A vibração da pessoa que se aproxima lhe infunde vida e uma luz interior se insinua dentro dele. Quando alguém sobe a escada, o A Bao A Qu põe-se quase nos calcanhares do visitante e sobe agarrando-se à borda dos degraus curvos e gastos pelos pés de gerações de peregrinos. A cada degrau, sua forma se solidifica mais, sua cor intensifica, sua luz torna-se mais e mais brilhante. Porém, se aquele que sobe os degraus não for um ser espiritualmente evoluído, o A Bao A Qu fica como que paralisado antes de chegar ao topo, sua luz vacilando. Então desaba, rolando pelos degraus até chegar novamente ao primeiro, onde permanece à espera do próximo visitante*.

A criatura na minha frente não era, com certeza, o A Bao A Qu da lenda, mas era certo que não possuía vida própria. Vivia através da luz das inúmeras pessoas que passavam pela Cantina da 10 nos dias de festa. Por isso parecia tão vivo, tão radiante, por isso seu encanto era irresistível. Não importava qual forma tivesse, todas as suas formas tinham a mesma coisa em comum: eram uma combinação de elementos e características de todos as pessoas presentes na festa no momento. Conforme o fluxo de pessoas variava, sua aparência variava, assim como conforme os caprichos, os sentimentos, os desejos e emoções da coletividade formada por tantas almas diferentes. Não tinha desejos próprios. Desejava o que todos desejavam. Seus caprichos eram os caprichos da multidão. Toca-lo... era como tocar a todos. Ama-lo... era como negar sua própria individualidade... entregar seu coração e sua alma a uma fome solitária indescritível: A fome da Festa. Os desejos da Festa. O coração e a alma da própria Festa.

Eu olhava para aquele rosto sorridente que me encarava sob a luz das lamparinas e que não era, de fato, o meu, e percebia mais do que nunca como Patrícia estava certa. Não havia respostas. Falar com ele agora, que estávamos à sós, sem a multidão de foliões que formava a Festa, seria como conversar com um espelho. Seria fútil.

Vazio.

Não havia mais nada a fazer ali embaixo. Num movimento rápido, dei as costas ao A Bao A Qu e afastei-me rapidamente em direção as escadas. Não olhei para trás, pois sabia que não me seguiria. A luz de uma única pessoa não seria o suficiente para dar-lhe mobilidade. Quando subi as escadas eu sabia que ele ainda deveria estar lá, no mesmo lugar, sem forma, sem cor, sem vida, aguardando por uma próxima festa que acabou nunca acontecendo.

Lá fora, o Sol já estava nascendo. A aurora dourada enchendo o dia de promessas e esperanças, como sempre. Respirei o ar puro da manhã, procurando não pensar em nada a não ser na brisa fresca em meu rosto. A festa, com todo o seu barulho e movimento, parecia tão distante e onírica quanto a própria lenda do A Bao A Qu. O dia provavelmente seria esplêndido. Em manhãs como aquela é certamente muito bom estar vivo.

Minha velha Barraforte ainda estava encostada sob as árvores, aguardando-me fielmente desde que a deixara ali à noite passada. Destravei-a e pulei sobre ela sem pensar duas vezes, pedalando automaticamente até chegar em casa, onde dormi até, pelo menos, umas duas horas da tarde.

E não há mais nada a dizer, além disso.

(1997)

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