Puxou a cadeira e sentou-se. As pernas largadas, os pés plantados no
chão. O corpo escorregando pelo assento, em dissonância.
Não pediu, logo o garçom colocou à sua frente uísque
com gelo e uma garrafa de água mineral. Não levantou os olhos,
mas sabia que Ronaldo, o dono da boate, estaria controlando a quantidade de
bebida no copo. O trato era muita água, pouco álcool. Mulher com
bafo não está com nada. A casa é de bem, recebe homens
de nível.
Josias, o garçom, voltou ao balcão, encostando-se. Dispôs-se
a observá-la.
A pele de cor brasileira com olheiras escurecidas parecendo lagos roxos sob
os olhos não combinam com o vestido verde brilhante que lhe deixa metade
das coxas à mostra.
Do jeito que está sentada, se fizer a volta, pegando-a pela frente, Josias
enxergará o entrepernas. Diz um colega que ela não usa calças
e não se importa em mostrar tudo. É sacana a Marise, faz isso,
mas não dá para qualquer um. Só pagando. Para eles, colegas
de trabalho, não dá nem pagando. Por que mostra então?
A bolsinha de alça comprida foi aberta e um maço de cigarros longos
e finos apareceu. É uma bolsa dourada, de malha metálica, cabe
o cigarro, o isqueiro e a chave solta. Algumas camisinhas apertam-se no fundo.
As sandálias, também douradas, revelam as unhas dos artelhos coloridas
de vermelho escuro. Tem uma correntinha em volta do tornozelo. Josias fixa os
olhos na corrente reconhecendo que o enfeite é um tesão. Será
que gosta de masoquismo, essa daí? Sorri, antecipando em sonhos o que
jamais terá coragem de fazer.
Os cabelos crespos estão presos por um pente espanholado numa volta caprichosa
e a orelha exposta tem uma argola de falso ouro. É um mulherão
e que bunda tem! Josias coça os bagos disfarçadamente. Graças
a Deus não chegou nenhum cliente para as mesas que serve.
Marise acende o cigarro.
"Porra de noite, não estou nem um pouco a fim. Ronaldo desgraçado,
não dá folga e vem com história de descontar falta. Ainda
esfrego uma sífilis na cara dele de tanto usar a coisa."
Sopra a fumaça para o alto, como viu no filme "Gilda". Era
um filme muito velho que assistira por acaso na TV, num vício de ligá-la
mal entrasse no apartamento. Gostavam de passar esses filmes nas madrugadas.
Os insones assistiam qualquer coisa que assemelhasse companhia.
Rita Hayworth cantava languidamente e apaixonava todos os homens da casa noturna,
quando ela se dispunha a desligar o aparelho. Ligou-se na cena e foi até
o fim. Gilda era uma figura e tanto, caía como luva no tipo físico
dela.
No dia seguinte comprou pentes e passadores para prender um lado do cabelo,
cortou-os pouco abaixo dos ombros. Pouco a pouco, na medida da lembrança,
copiou os vestidos da personagem. Sabia que não eram muito modernos,
mas a sensualidade da figura seduzia. Seu trabalho também não
era muito moderno.
Levanta a mão e faz um sinal para que Josias se aproxime. Deixa a voz
soar alta quando pede outra dose, hoje pagará, está de folga,
resolve neste instante.
O garçom relanceou os olhos para o patrão, fazer o quê?
A diaba ainda passa a língua nos lábios vermelhos. Ronaldo afasta-se
de seu posto e vem em direção a eles, o pescoço impulsionando
a cabeça para frente como um aríete.
- O que está acontecendo aqui? Motim?
- Não Ro, - a voz de Marise é ondulante, os olhos se rasgam numa
demorada vistoria da abertura da calça do homem - estou nas regras. Hoje
sou cliente.
Ninguém resiste à Gilda.
Ronaldo passa a mão nos cabelos, relanceia os olhos pela casa vazia nessa
terça-feira de bosta e volta para seu lugar grunhindo :
- Está bem, melhor dinheiro de puta que dinheiro nenhum.
Josias enche o copo deixando o "choro" da bebida alongar. Marise sorri
e passa, de leve, a unha pelas costas da mão dele. A garrafa dá
uma pequena tremida e alguns pingos de uísque molham a mesa.
- Desculpe. Já limpo. - A voz do garçom é hesitante.
Marise sorri como uma lambida, sem revelar a constatação: Josias
é um bolha. Bonzinho bobão. Faz uma semana que começou
a trabalhar na casa, tem um ar perdido e um titubear ocupa a boca. A camisa
levemente encardida escorrega as mangas para fora do paletó escovado.
De cinco em cinco minutos, ajeita a gravata borboleta teimosa em voar de lado
no seu colarinho. Um perfeito panaca.
A música resvala nas cadeiras vazias. Um e outro cliente entra. Poucos
casais escondem-se nas mesas de canto. Duas moças chegam juntas e sentam-se
separadas.
Marise fecha a cara quando um sujeito grande fixa nela olhos de convite. Já
estipulou o feriado. Nem sabe como Ronaldo concordou tão fácil.
Toma três doses seguidas, até um torpor amortecer os lábios.
Agora vai devagar, completa o copo com água mineral.
Josias acompanha os gestos da mulher, de todas é a preferida. Ela transpira
certa ausência que dá vontade de preencher, parece obrigada a estar
ali. Vê quando se levanta um pouco vacilante e dirige-se ao banheiro carregando
a bolsinha dourada. Vai retocar o batom com certeza. Pena estar nos dias, não
adianta ficar na frente da cadeira, está de calcinha hoje. Melhor ficar
assim, de revés, pode vigiar seus movimentos e enxergar a bunda fugindo
da cadeira.
A porta do banheiro fecha-se atrás dela. Respira fundo. Fixa o espelho
que toma conta de toda a parede em cima da pia. Já foi casa fina esta,
até sair de moda.
Retoca o batom, empoa o rosto e espirra perfume doce embaixo do cabelo. Têm
guardadas, numa das gavetas do armário embaixo da pia, essas ferramentas.
As moças do lugar são proprietárias de gavetas. Ronaldo
faz questão da aparência: mercadoria empoeirada e desleixada não
vende bem.
Levanta o vestido, senta no vaso. Ri satisfeita. O barulho da urina cachoeirando.
Abre novamente a gaveta e tira um pequeno embrulho de papel branco, observa
com ar entendido o pó que contém. A pedra da pia serve. Enfileira
e aspira tapando uma das narinas. Fecha os olhos, volta a sorrir. A vida é
boa. Talvez saia dali e encontre um cara gostoso de levar para cama. Trepar
é o melhor da vida.
- Demora no banheiro. Será que passa mal? - Josias preocupa-se, ela parecia
tão solitária. Essas mulheres são infelizes. Quem pode
ser feliz nessa vida? Desgraçada falta de dinheiro, a gente vende a alma
por causa dele. Elas também.
Afinal Marise sai. Um sorriso parado, doído de se ver perturba o rosto.
Os pensamentos correm dentro de Josias. - Tirar a moça daqui... Quem
sabe um dia? Garanto que gostaria. - Um nojo, toma conta dele, o mesmo que sentia
quando pequeno e a mãe o levava para beijar o Senhor morto na sexta-feira
da paixão.
Ronaldo observa Marise voltando para mesa.
"A filha da puta já se chapou. Qualquer dia terei que carregar a
vaca para um hospital. Hoje não me meto. Está de folga. Ai que
tente fazer em dia de trabalho, ponho porta a fora."
Gosta da Marise, é chamativa, bonitona mesmo. Não é novinha,
não tem chiliques. Faz das suas sem escândalo. Entrou na profissão
com consciência, não choraminga fingindo que é obrigada.
Nunca se deitou com ele. Não faz mal, é até melhor. As
outras, enquanto não conseguem não sossegam, depois enchem o saco
imaginando que são patroas só porque deram o rabo.
Já é bem tarde. Marise vê Josias olhando para ela. Podia
levá-lo para casa, brincar um pouquinho. Chama-o com o dedo. Antes se
apruma na cadeira, deixando, no entanto, os ombros caírem e os olhos
se fecharem num traço melancólico.
Ele se aproxima. Ela está tão triste. Vida desgraçada!
- Josias, preciso ir, não me sinto bem. Será que podes me acompanhar?
O pedido pega-o de surpresa. Ele, o privilegiado? O peito enche-se de expectativa.
Passou a mão nos cabelos que caíam sobre a testa, alisou a boca,
pena ter raspado o bigode.
- Será uma honra, saio em meia hora. Podes contar comigo.
- Logo vi, Jô, logo vi. - A mão dela é macia, acarinha a
dele.
Ronaldo sacode a cabeça. Marise é danada, quem olha para ela agora
morre de pena. Mas ele sabe: vai brincar com o rapaz. Faz um sinal safado para
ela que responde num olhar de volteio.
O apartamento é um conjugado exíguo, mas está limpo. Um
sofá cama embaixo da janela, onde a cortina listada de azul e laranja
balança à brisa da madrugada. Uma pequena mesa. Um vaso de flores
artificiais centra-se nela. A cozinha é a pia com fogão de duas
bocas em cima. Sobre ele um armário de portas de vidro guarda louças
de desenhos azuis: dois ou três pratos, duas xícaras, alguns copos,
uma garrafa de uísque. Fora isso apenas a porta do banheiro.
Uma prateleira com os mais variados enfeites. Um surpreendente quadro a óleo:
o nu de uma negra de seios avantajados e boca à Di Cavalcanti.
Josias senta-se. Veste camiseta de propaganda e calça de brim que deixou
a cor nas muitas lavadas que sofreu.
- Toma café, Jô?
Ele adora essa mania dela de abreviar os nomes. Gostava de vê-la chamar
o patrão de Ro, nunca pensou que pudesse merecer essa consideração.
- Café seria bom. Responde indireto.
Ela desencava uma cafeteira elétrica e logo o cheiro do café passando
mistura-se ao perfume doce que impregna tudo
Tu és caprichosa, tua casa cheira bem.
Limpo toda semana e depois ponho perfume num tubo de desodorante e borrifo.
É do jeito que eu imaginava.
Marise sacode os ombros faceira. Se fosse diferente ele acabaria gostando. Ela
sabe disso. Estão sentados lado a lado, ele se apaixona aos poucos, ou
já chegou apaixonado? O leve cheiro de suor saindo dela dá vontade
de pegá-la no colo. Mergulhar a cabeça nos seus cabelos. Tinha
razão o Roberto Carlos em cantar os caracóis de seus cabelos.
Cantarola.
Marise revira os olhos colocando as mãos no coração e sacudindo
o corpo no compasso. Daqui a pouco ele atacará de bolero, aposto comigo
um brilho da pesada. Pensa começando a impacientar-se. O que mais incomoda
é ter perdido a vontade de trepar. O desgraçado parece que vai
quebrar-se.
Como é branco, chega a dar aflição. Do fundo das lembranças,
a figura de um cãozinho sarnento, volta. "Pobrezinho do Lelé,
está doente, ficar vivo é só para sofrer". Ouviu durante
alguns dias, depois o Lelé sumiu. De noite, um resto de conversa, entre
as tias:
- ... é de tanta pena que dá. Pobre Lelé.
Sabe, Marise, entendo que precises fazer essa vida. A sobrevivência está
barra. Pra mulher é mais difícil. Vou te salvar dessa miséria.
Não é por pena, gosto de ti de verdade.
Era só o que me faltava, ela pensa enquanto espanta a figura do cachorro.
Com olhos baixos, puxa a barra da saia em direção aos joelhos.
Joga longe as sandálias douradas. Os brincos já estão abandonados
sobre a mesinha.
- O doido é salvador dos pobres e oprimidos. - Dá uma fungada
e esfrega os olhos. Desacomoda-se, o sofá apequenou-se.
Josias ajoelha-se na frente da mulher. Pega suas mãos.
Por favor, não chores, não aguento te ver sofrer.
Por um instante, ela o vê. A testa lisa, desprevenida, os olhos redondos
de cachorrinho, as mãos que tremem e suam segurando as suas. Suam como
o focinho do Lelé quando lambia as mãos dela. O acariciava escondido
porque sarna pega em gente. Fragilidade também pega?
É verdade, Jô, dá pena mesmo. Um suspiro acompanha a afirmativa.
Josias sorri, ela se entrega. Qualquer um pode ver. É a noite mais importante
de sua vida.
Amanhã avisamos o Ronaldo que não irás mais.
Marise não pode acreditar no que está ouvindo. Será que
não percebe o brinquedo? Será que ainda existe brinquedo? Este
estupor que sente no peito é de mentira também?
Envolve a cabeça do rapaz. Ele deita em seu peito. A mulher sente-lhe
o latejar das têmporas. Josias a beija no colo, um beijo de lábios
fechados. A seguir levanta os olhos brilhantes de umidade.
Que posso fazer, pensa Marise, enchendo-se de quase remorso. Deito-me com ele?
Faço qualquer coisa para fechar esses olhos. Dói na gente uma
criatura assim desprevenida.
- Minha querida, te comprarei vestido de noiva e teremos lua-de-mel.
Marise pega seu rosto entre as mãos e beija-lhe a boca, a língua
desbravadora abrindo os dentes. A mão encaminha-se para o sexo que encontra
murcho.
Não é hora ainda, amor. Vamos casar, saberei te respeitar.
A voz de Josias é como um acalanto e fere. Ela se levanta, procura com
avidez o pó branco libertador, arruma uma carreira sobre o tampo da mesa.
Lá fora começa a amanhecer. A gosma cinzenta da manhã custa
a penetrar o breu da noite.
Aspira a cocaína. Mais uma dose que o momento exige.
Que estás fazendo, querida?
Me drogo, Jô. Não sabias?
Não te culpes, é a vida miserável. Disso também
te libertarei.
Tu não existes, Jô. Marise se lembra de filmes da madrugada, espichados
e melosos.
Existo pra ti.
Vem até a janela, olha o dia, a cidade, junto comigo. - Abre a cortina
e debruça-se no parapeito ajoelhada sobre o sofá. Ele a segue,
coloca o braço sobre seus ombros.
Que vês lá embaixo, Jô? - A voz dela está ansiosa.
Deseja que responda que vê uma cidade prestes a despertar enquanto quer
dormir, o sol machuca os olhos e a luz fatiga.
Vejo nosso futuro onde viveremos felizes. A voz cintila.
Isso não é possível. As pessoas são cruéis.
Tudo é cruel. Somos puros demais para elas. Melhor que casar, Jô,
que é uma situação que se acaba, é morrer juntos.
É o casamento eterno. Tropeça um pouco nas palavras, arrastando
o ridículo da situação.
Não fales assim! Juntos mudaremos tudo. Josias abraça-a com sofreguidão,
tapa-lhe os olhos numa tentativa de fazê-la enxergar o que ele vê.
Por favor, meu querido, ela beija-lhe os lábios tu disseste que me amas.
Farias qualquer coisa por mim?
Josias sacode afirmativamente a cabeça, acarinhando o rosto onde a maquiagem
já derreteu e pequenas rugas aparecem acusativas. O cabelo de Gilda revela-se
fosco e desbotado.
Vamos morrer juntos. Eu te suplico.
Ele estremece. Estou ouvindo direito? Ela realmente está dando sua vida
para mim?
Tu e eu?
Marise sacode a cabeça numa afirmação. Fica em pé
no sofá, ele a segue.
Espera, quero morrer bonita.
Vai para o banheiro e refaz a maquiagem. Ele espia, penteando o cabelo com as
mãos, esticando a camiseta. Ela pede licença, fecha a porta.
Ergue os olhos para um velho crucifixo escondido atrás da porta. Coisa
de ver em hora de aflição. O homem pregado nele desperta uma pena
danada. Será que foi de pena que fizeram esta ferida nas costelas? Devia
estar sofrendo muito, o pobrezinho. Cheira de novo. Sai revigorada.
Voltam para o sofá de mãos dadas. Sobem juntos, beijam-se e olham
a rua. O sol mostra-se numa bola vermelha. Prenúncio. As nuvens amortecendo
o alaranjado refletido no topo dos prédios, reverberando tons nos cabelos
de Marise. A madrugada cedeu espaço para a glória.
Ela sobe no peitoril da janela. Ele também.
Larga minha mão, Jô. Quero que nossas mãos se encontrem
em pleno voo e precisamos rezar para que nossas almas não se percam.
Eu preferiria que fôssemos de mãos dadas.
O tom é levemente choroso.
Estarei contigo. Não tenhas medo porque eu não tenho. Vai!
Os braços de Marise são de aço e o corpo magro dele não
demora a desequilibrar-se. Ela pode fixar os olhos de surpresa e aceitação
antes que o corpo dê uma volta sobre si mesmo e inicie a queda vertiginosa,
as mãos agarrando-se no ar, na luz já amarela do dia.
Marise desce da janela, acompanha o balé desordenado de Josias. Por fim
fecha os vidros e corre as cortinas. Prepara outra carreira de pó.
- Tanta pena que dá!
Aspira.