Foi apenas um filme, falava de morte e de vida, esta bruxa ou fada que nos
carrega pela mão nos fazendo rir ou chorar, brincar ou pecar, amar e
nem tanto. Isso tudo sem pedir licença e sem aviso prévio. Mas
foi lindo, suave e leve como não dá para imaginar num filme deste
teor.
Maria Clara saiu do cinema rindo sozinha, meio sem ver nada, ou quem sabe vendo
mais do que poderia um dia imaginar ver. Não se incomodou com o calor
sufocante da rua como não tinha se incomodado com o ar condicionado enregelante
do shopping.
Fora uma noite surpreendente, isto por que, por traumas passados odiava ir ao
cinema sozinha, aliás como odiava qualquer coisa sozinha e agora não
mais, nem se dera conta que fazia quase tudo acompanhada dela mesma e isso não
perturbava, pelo contrário, abria espaço para ser cada vez mais
ela mesma. Ninguém para implicar com restaurante onde comera degustando
cada pedaço do wraps acompanhado daquela fantástica coca zero
com gelo e limão. Caminhara por entre as lojas, shopping ela também
odiava, achando bom o colorido caótico das vitrines misturadas e sob
a luz branca e constante.
Fazia tempo que a leveza não a pegava assim desprevenida, deixando-a
sem nenhuma resistência para se sentir bem. Não se pusera a cantarolar
como é lugar comum nas novelas, tampouco endoidara os transeuntes com
sorrisos sem quê nem por que. Nem ficara boba cumprimentando as pessoas
e distribuindo amendoim. Quem a visse não desconfiaria de seu estado
de espírito. Continuava senhora pelo lado de fora, apenas perturbava
um pouco o vestido cheio de cores e a postura sem idade. Perturbava os bobos
da corte que anseiam agradar ao rei de plantão e estipulam comportamentos
adequados e outros fora de quadro, com isso enquadrando todo mundo num estereotipado
bem longe da realidade.
O filme despertara não sei o que, uma mágica esquecida que lhe
dava a certeza de poder tocar o pote no fim do arco-íris onde as moedas
de ouro nem de ouro eram, mas de sorrisos e carícias compridas como nunca
tivera. E assim acreditou que João ou José, ou o sem nome caminhava
ao seu encontro com chapéu de plumas.
Não se espantou ao ver o homem fazer mesura à sua frente e tirar
o chapéu emplumado num gesto mais cabível no reino da Dinamarca.
Vestia calças bufantes de veludo e a camisa branca tinha detalhes de
renda com uma vistosa gravata de laço em azul profundo. Retribuiu o cumprimento,
dobrando um pouco a perna e arrebanhado as saias de cetim numa proeza a lá
1500.
Logo se deram os braços e para escândalo geral dançaram
uma valsinha suave como a música de Chico Buarque, ou talvez não
fosse dele? Não sabe como as luzes diminuíram e um tom alilazado
cobriu de sensualidade o espaço em que estavam deixando os demais de
fora e gelados de bom comportamento.
Não pensou nem por um momento que fosse alucinação ou toque
de mágica, se deixou levar pelo desaviso, ou descabido como se tudo estivesse
dentro da maior normalidade e que Miguel era mesmo verdadeiro ao seu lado apesar
do cheiro de pizza que exalava como um bom e plausível homem do século
XXI. A peruca de cachos e bucles encobriam os cabelos levemente grisalhos apesar
do tempo que já andara por eles o que era absolutamente normal na corte
francesa de onde surgira. Inglês não era, não tinha aquele
nariz de quem sente mal odor em todas as coisas e tampouco norueguês ou
sueco por que a fala era em bom português brasileiro, marcada por algumas
gírias e alguns palavrões apropriados, nenhum deles dirigido a
ela. Para ela só tinha minha deusa, ou minha princesa e era assim mesmo
que se sentia, por menos não deixaria nesta hora de tão pouco
escândalo e tanta seda.
Saiu à rua rindo disso tudo e sem entender como aquele filme gostoso
que assistira apertada entre gente desconhecida e precisando cuidar para não
descansar o braço em cima de braço alheio, pusera este tique surreal
em seus olhos e uma fascinação dentro do peito.
Já era tarde e estava sem carro, emprestado para o filho, nem ligou de
esperar o ônibus e ouvir o reclame das moças do shopping cansadas
do trabalho e loucas para chegar em casa fugidas da matéria plástica
do shopping que aguentavam todos os dias com um sorriso também de plástico.
Até fumou um cigarro para encompridar a sensação de eminente
encontro com o príncipe encantado ou nem tanto que, com certeza, aconteceria
ali na esquina apesar do pipoqueiro não deixar muita margem a encontros
românticos em meio a cheiro de manteiga e chocolate quente de milho estourado.
Não lembrava o nome da Bela Adormecida pelo qual certamente mudaria o
seu, mas estava certa que alguma coisa bela acordara nela nesta noite que não
é de filme, mas feita da mais pura vontade.
Se deu conta de repente que ontem a noite era de lua cheia o que a pusera na
janela a espiar e para seu assombro que nunca via, uma estrela riscou o céu
e nem era estrela de verdade, mas um meteoro ou meteorito, o tamanho não
importava, só importava que fez aquele pedido bem do jeito que tudo acontecera
hoje no faz de conta de sua alma.