Adriano e Tamile
convivência inesquecível.
Mais 24 horas.
Têm noites que são mais noites, tenebrosamente escuras mesmo que
apareçam estrelas e luar.
Em certas partes da cidade as luzes não iluminam e o céu se enche
de nuvens densas, avermelhadas, num tom que poderíamos imaginar como
o da casa do demônio
Percebi depois que este estranho estado de espírito era premonição.
Eu montava cachorros-quentes para mim e meu amigo. Ambos falávamos pelos
cotovelos sobre "nossos meninos". Eram os internos de quem cuidávamos:
eu na clínica para dependentes, Mariano na fazenda de recuperação.
Trocávamos informações, descobertas, abordagens mais eficazes.
A campainha nos tirou do envolvente diálogo. Amávamos falar sobre
eles, como ajudá-los. Tínhamos sido ajudados e isso nos mobilizava
para repartir o caminho que nos levara a sanidade.
Abri a porta e Tamile caiu nos meus braços chorando compulsivamente.
Eu a conhecera internada. Quando entrei na clínica estava no fumódromo,
atirada numa cadeira. Seus vinte e poucos anos parecendo muito mais de trinta.
Desleixada e ausente. Conversamos um pouco, tentativa minha de contato, estabelecer
vínculos.
Percebi quando se endireitou, subiu os ombros, passou a mão nos cabelos.
O olhar grudado na porta por onde entrava Adriano. Eu já o tinha encontrado
em outras duas ou três internações. Tinha umas vinte na
bagagem. Usuário de crack. Aqui, limpo, era uma graça com seus
óculos de aro vermelho, cabelos espetados e o indefectível piercing
na língua que me dava uma aflição enorme. Ficava o tempo
todo mexendo na peça tida como um barato decorativo. E era grande, não
sei como aguentava a bolota dentro da boca. Um olho grego, aquele talismã
contra o azar, um círculo branco, azul e um ponto negro no centro.
Estavam de caso, ninguém precisava confirmar. Não vai dar certo,
pensei. Relação dentro de clínica é confusão
na certa e nunca é verdadeira. Os que ali estão nem se conhecem
de verdade, nunca viveram juntos lá fora, a grande ligação
é a droga. O resto é apenas um ponto de interrogação.
Também tive medo. Ela era usuária de cocaína, é
ruim, mas crack... Crack é o mal sob a forma de pedra e, podia por a
mão no fogo, Adriano a levaria para a pedra.
Avisei, informei. Cabeça de adicto é uma rocha, não entra
quase nada diante de seu desejo imperativo.
Abracei Tamile. Procurei seus olhos para ver a cocaína estampada. Estavam
de pupilas normais, reagindo bem à luz. O que houve? O que houve? Sentia
a aflição no tremer de seu corpo. Pedia ajuda entrecortada de
soluços.
Entramos. Sentei-a no sofá. Água. Calma. Aquelas coisas que se
faz quando não se tem mais o que fazer.
Afinal conseguiu me contar que estava vivendo com Adriano e que ele estava sumido
por cinco dias. Mergulhado na boca direto.
Meu coração deu uma cambalhota. Por ele e medo por ela.
- Tamile, tu estás na pedra?
Jurou que não. Juramento de adicto tem o peso de uma pluma. Não
vale nada quando na ativa.
- Estás limpa?
Concordou, mas a magreza revelava mais do que as palavras. Mariano não
nos interrompia e eu nem me lembrava dele. Entrou na conversa.
- Em que boca?
Apresentações e sociabilidades são secundárias nestes
momentos, apenas disse o nome e falei rápido sobre nossa parceria. Tamile
mal prestou atenção.
- Por favor, me levem lá. Preciso tirá-lo.
Não sabia o que significava ir numa boca e muito menos o que encontraria.
Sabia dos riscos, mas com Mariano...
Quando descemos do carro, eu vi a noite que pensei ser alucinação
minha. Quando se convive muito com dependente a gente acaba viajando um pouco.
Lá estava ela, encardida, feia, negra.
Havia meninos, gurizotes em seus indefiníveis anos adolescentes. Os olhos
maus, tão escuros quanto a noite que os escondia. Nos abordaram. Tamile
foi incisiva:
- Deixa comigo, sou conhecida aqui. Fiquem parados, só venham quando
eu chamar.
Medo terrível.
Percebia-se a arma, ou berro que eles traziam enfiado nas calças jeans
caídas nos ossos da bacia. Os adultos ficavam mais para dentro da ruela,
faziam de conta que era encontro de amigos, bate papo. Os meninos eram os seguranças
e muito mais ferozes. Peitavam a gente.
Mariano era um rapaz grande, encorpado. Pensei que era meu guarda costas e estaria
tudo certo. Rezei, ou pelo menos pensei em alguma coisa mais clara do que aquilo,
tinha que estar conosco.
Entramos na boca.
São corredores labirínticos, com casa, se é que se pode
chamar assim, nos apertando. As luzes da rua são esparsas mal amortecem
a escuridão.
Tamile batia em portas, perguntava por Adriano. Ninguém via há
dias. Sumido no inferno.
Ela implorou que fôssemos à outra boca. Pior, muito pior. Eu já
estava enfiada até o pescoço, não desistiria agora.
Desta vez Tamile não deixou que entrássemos, ficamos no carro,
não respeitariam desconhecidos mesmo estando com ela. Estava estampado
na nossa cara que éramos limpos. Nunca minha pele me foi tão cara.
Daríamos quinze minutos, Mariano e eu tínhamos combinado no medo
de que ela não resistisse à pressão e acabasse usando.
Voltou rebocando um Adriano que eu não conhecia. Amarelado, frouxo, uma
vida morta dentro dele apesar da atividade incessante.
No dia seguinte, depois de muita negociação, o internamos em outra
clínica por que a que eu trabalhava não o aceitava mais. Não
era a primeira a rejeitá-lo. Tirava lugar de outros que talvez tivessem
chance.
Em duas semanas ele se dava alta. Tamile confessava que tinha pulado para a
pedra. Internava-se.
Tempos depois, meu segurança me confessa que tivera tanto medo que desejara
segurar a minha mão. Eu caminhava tão firme e segura que ele conseguira
entrar na boca.
Boca, a porta de entrada do inferno.