(Para Carol que não é um carneiro e nem precisa ser.)
Nasci e vivi na cidade, sou bicho do asfalto. Só o conhecia através
de livros. Ele estava lá. Calmo, ruminante. Olhar lasso, de pálpebras
caídas.
Era um carneiro, podia ser ovelha, mas era da família. Tenho certeza.
Aquela lã enrodilhada... Era sim.
Fiquei estática por vários minutos olhando aquele quadrúpede
a poucos metros de minha janela remoendo e olhando fixamente nos meus olhos.
Eu fumava um cigarro e olhava para ele.
Eu estava lá.
Ele também.
Os carros e os transeuntes pareciam não percebê-lo. Dava uma estranha
sensação de fantasma, embora eu não acreditasse nisso.
Eu nunca vira aquele canteiro gramado na frente de meu prédio. Não
sabia se grama, ou mato, seja lá o que fosse, nascia de um dia para o
outro, talvez sim.
Aquela coisa coberta de lã de tom indefinido pela chuva e sol não
podia ser associada, de forma alguma, à blusa macia que me vestia. Roxa,
quente, com desenhos geométricos. Não havia nada no casaco pardacento
do carneiro, nem um traço sequer, nenhuma marca. Na blusa havia e em
mim. As minhas eram caóticas e se entrecruzavam, saltavam através
de minhas veias e latejavam no pescoço, me estrangulando nas noites onde
os carneiros não existiam mais.
Lembrei-me das noites de insônia na infância onde, sem outros artifícios,
eu contava carneirinhos para dormir. Depois virei a ovelha negra da família,
eu não ligava. As famílias gostam desses delicados apelidos quando
não nos submetemos. Eu não me submetia à hipocrisia dos
domingos passados em torno da TV que berrava a mais pura idiotice que o ser
humano é capaz de criar. Muito menos a um pai bêbado e incapaz
e uma mãe que se vangloriava de carregar a turma que parira nas costas.
Havia também uma coisa indefinida e constante, uma espécie de
guerra oculta entre eu e o mundo. Vagamente sabia que a guerra era eu. O mundo
merecia essa luta pelas barbaridades desconexas que cometia todos os dias em
favor de um sistema corrosivo.
Essas coisas todas, tinha certeza, o carneiro também sabia e pastava
no meio dos edifícios numa forma de imolada rebeldia. Se um carro passasse
sobre ele espalhando tripas e lã, não se incomodaria, sempre são
necessários os mártires para chocar. O carneiro chocava.
Ele destruía as ervas daninhas enquanto meus olhos soltavam chispas de
ódio e agressão. Eu fuzilo. Isso sou eu e nem me conheço
bem. De alguma forma o animal via o que eu não via. A coisa que eu era.
Ele olhava justamente para essa coisa. Fui dominada por um misto de sensações
entre nojo, surpresa e vergonha. Como se fosse surpreendida sem roupa.
O bicho, carneiro ou ovelha, sabia que ovelha negra é uma invenção
dos nossos pais como o bicho papão. Sei que me achava uma grandessíssima
humana idiota. Eu ma achava uma grandessíssima idiota humana? Não,
jamais pensaria isso de mim. Eu chocava e assim mostrava ao mundo que conhecia
sua desfaçatez.
Lembrei do Pequeno Príncipe e do carneiro que ele amava, nem grande demais,
nem pequeno demais, nem muito velho e nem muito fraco: um carneiro perfeito
e doce. Esse que me visitava não tinha essas características,
era grande, de cara agressiva, mesmo com aqueles olhos de ressaca, acho até
que por isso mesmo. Podia ver em suas olheiras a noite que passara tomando chá
de cogumelos alucinógenos e descobrira verdades absolutas dentro de uma
garrafa mágica de vodka. Lugares que eu conhecia bem e que me levaram
a ser quem sou: uma representante direta dos guardiões da liberdade.
Pelas minhas convicções e princípios inquestionáveis,
não me submeteria à carneirada humana hipócrita, apática.
Não, eu lutaria acordada pela fonte inesgotável de cocaína,
atravessaria os dias desperta e ativa. Eu sabia.
O carneiro, me fitando, era um dos meus e me fazia companhia, mas era desconfortável.
Aquele irracional sabia tudo melhor do que eu.
Fechei a janela, dane-se o carneiro, possivelmente ficará lá o
resto de sua vidinha imbecil, qualquer dia desses, será comido com apetite
e sua pele fofinha se transmutará em suéter e cachecol.
Preparo minha carreira e me deixo possuir pela certeza de que sou superior aos
animais de quatro patas e desdenho a sua pobre vida inútil de observador.
Fito meu autorretrato preso à parede por um prego um pouco grande demais.
O olhar vago e lasso, fortemente margeado por cajal é hipnótico
e o talo de grama na boca dá um toque campestre e ovino deliciosamente
chocante.