Au revoir les enfants (França, 1987).
Louis Malle
Em reverência
Gustav estava excitado com a perspectiva de um domingo menos sonolento que
os habituais. Preparavam-se para passear de carro. Novidade passear de carro?
Quando não se dirige e se vive com mulher e a sogra que também
não, é das boas.
Estava na Alemanha há apenas um ano e não visitara quase nada.
Sua mulher Karin e a sogra Bertha tinham combinado com o vizinho de saírem
a passear pelas redondezas da cidade. Talvez fizessem um pic-nic dando um ar
campestre ao passeio.
As mulheres se agitavam na cozinha decidindo se o "seu" Gunnar gostaria
da ideia. Vira o vizinho poucas vezes até agora. Era um homem
arredio e quieto, pouco saía no jardim e cumprimentava de cabeça
baixa. Gustav nunca conversara com ele.
- Que jeito tem o homem?
A moça sacudiu os ombros em resposta.
Uma voz, cheia de rascante alemão, falou por cima do muro:
- Bertha, vamos ao restaurante!
Gustav achou ótimo. Pici-nic é legal, mas têm as formigas,
as coceiras das urtigas. Tomara que decidam restaurante, pensara sorrindo. Agora
achava que o sorriso fora parado demais. Meio perdido como se sentia nesse mundo
tão diferente do Brasil e tão conhecido ao mesmo tempo, uma vez
nascido de pais alemães e em cidade de colonização germânica.
Karin deixou os braços caírem na frente do monte de sanduíches
encaminhados. Falou bem alto, mas era para si mesma:
- Velho chato, por que não decidiu antes? Por que não gosta de
pic nic se eu já estava me acostumando com a ideia?
O namorado balançou a cabeça em concordância. Era melhor
não mexer nos humores. Havia prenúncio de tempestade aguda de
mau humor no ar. Odiava mau humor! Bastava por vezes, não entender muito
bem o que acontecia. A cultura diferente, a forma como se tratavam era outra,
muito cordial, às vezes até engraçada e direta, porém
mais dura do que a brasileira.
- O "seu" Gunnar disse que sairemos às dez horas.
A voz da sogra era um trombone desafinado que o incomodava infinitamente até
porque nunca se calava. Ela pontuou a frase com um olhar flechada. Ele bem sabia
que na Alemanha, hora é hora e relógio não se usa só
porque a pulseira é bonitinha.
Estavam prontos e engomados às 9 horas e 55 minutos em frente ao portão.
A Bertha perguntando pela décima vez se ele tinha mesmo fechado a casa
toda. Tem vândalos soltos por aí. Um perigo.
Gustav lembrou-se do rapaz que encontrara outro dia no super mercado: corte
de cabelo muito curto quase raspado. O cara era surreal. Todo de preto, com
uns braços que deviam ter visto muita bola porque lembravam troncos.
O casaco trazia uns emblemas semelhantes a signos nazistas. Nem conhecia o sujeito,
mas devia regular de idade com a dele e isso parece ter provocado o direito
de fazer comentários. Ficou contando que vira uma menina linda, com umas
tatoo de suástica e outras cruzes maravilhosas. Totalmente doido. Totalmente
skinhead. Pelo menos era o que via nos noticiários. Devia ouvir rock
pesado e ser adorador da banda Skrewdriver.
Gustav se lembra de ter sentido um frio na espinha. Jamais se esqueceria de
fechar as portas e verificar muitas vezes. Ele mesmo tinha jeito de alemão,
mas não era, vá que o cara resolvesse que brasileiro não
era raça pura! Uau! Punk além da conta. Ao mesmo tempo se sentiu
ridículo, num domingo que prometia coisas boas estava só fazendo
associações malucas que nem ele entendia.
O Buick preto saiu da garagem faltando um minuto para as dez. Foi a primeira
vez que viu o seu Gunnar de perto. A visão trouxe bruxas lembranças
contadas ou adivinhadas na sua infância. E o carro parecia saído
do filme da Família Adams. Dizem que o carro revela seu dono. Era muito
esquisito um alemão com um carro americano tão peculiar. Gustav
mais uma vez deixou a imaginação solta. Teria sido rescaldo de...
De guerra?
Cumprimentou o casal gentilmente, o sujeito rosnou um olá e olhou para
ele como quem olha um ser inferior. É claro que sabia a procedência
de Gustav. Olhou por muito tempo, nem arrancava o buick. A figura era de um
alemão dos mais alemães. Cheira a uma coisa meio... Nazista. O
jeito que se penteia, o cabelo... Imediatamente se arrependeu do julgamento,
não costumava julgar as pessoas pela aparência, mas esse homem
despertara estranhas sensações. As associações descabidas
continuavam, sacudiu a cabeça a expulsá-las. Não adiantou,
continuou a avaliar o vizinho.
Era gordo, mais para obeso. Tinha um cheiro esquisito que ele sentia sentado
atrás do sujeito. Não exatamente de mofo, mais de uma coisa que
acontecera e não terminara ainda. Não ousou dizer de nazismo.
Melhor pensar em cebola, ou chucrute.
Não era careca total, mas penteava o cabelo com alguma meleca qualquer
que ficava todo grudado na cabeça. Vestia-se como se fosse trabalhar.
Nada de uma roupa descontraída para um passeio no campo. Seu Gunnar jamais
concordaria com um pic-nic. Absolutamente não combinava. Pic nic é
coisa de desvalido e, pelo menos pela pose, não era o que o homem gostaria
de parecer.
Gustav sentiu um estremecimento, era mesmo um dia de sensações
esquisitas.
Não podia ver-lhe os olhos por que estavam escondidos atrás de
óculos escuros que parecia bem velho. De 1940, será?
Falava inspirando ao mesmo tempo porque a respiração não
chegava para uma frase. Dava aflição. Talvez por isso falasse
muito pouco, numa voz acostumada a mandar. Não descrevia a beleza dos
lugares pelos quais passavam com a alegria de quem ama sua terra, mas como quem
diz que era a única perfeita do mundo. O resto era o resto.
A Alemanha é linda. Seus campos são verdes como encantados, os
vales são escuros como uma lenda germânica, onde seres míticos
se encontram para relembrar algum passado não muito remoto.
Era bom olhar através da janela, até porque isso impedia que fixasse
os olhos no pescoço do cara. Estava hipnotizado pelas dobras daquela
nuca e sentia medo disso. Parecia que o outro perceberia e lhe passaria uma
descompostura. Porque esse sentimento infantil? De ser ou estar criança?
Não tinha respostas hoje, apenas sensações.
As paradas eram ao mesmo tempo um alívio para sair do carro e um problema
porque tinha que aguentar o sujeito. A sensação de estranheza
crescendo. Não desciam do carro, apenas paravam. Ele louco por um pouco
de ar fresco, se sentia sufocar.
Gustav levou um susto quando seu Gunnar reclamou secamente que o ar condicionado
estava ligado como que ele abria o vidro? Sentiu-se como se o tivesse pego numa
falta imperdoável e pediu mil desculpas:
- Pardon, pardon...
Percebeu que para Karin e a mãe tudo era muito normal e estava certo.
Será que o doido era ele?
Seu Gunnar, de repente, se tornou falante. Uma história sem pé
nem cabeça de colégio interno, que isso era a formação
certa para garoto e grudou os olhos no espelho retrovisor, quase furando o rapaz.
Surreal. Começou a tossir numa falta de ar a esposa que era enfermeira,
estendia remédios.
Como falava aquele velho! Gustav deixou de ver a Alemanha.
Estava num colégio interno, muito grande e muito frio, a comida era pouca,
a água gelada e havia muitos meninos. Usavam uniformes, com as calças
curtas e casacos comportados.
Não entendia mais o alemão, que falava fluentemente desde criança.
Pensava em francês. Ouvia em francês.
Havia padres professores se esforçando muito para ensiná-los.
Um leigo no meio deles confundia um pouco, não saia nunca da escola,
sempre guardado, resguardado.
Os pais traziam os garotos e a maior parte deles sumia. Apenas as mães
vinham visitá-los de raro em raro. Ele e o irmão foram deixados
aí.
Aparentemente continuavam meninos e jogavam descuidados com a vida.
Trouxeram um garoto parecido com todos os outros que se confundiu todo ao dar
o nome. Gustav e ele ficaram muito amigos e sabiam que tinham um segredo implícito
jamais citado.
Ali tudo era um grande segredo. Todos sabiam que escondiam alguma coisa e que
deviam proteger uns aos outros. Ao Jean e ao Marc mais do que a todos. Por quê?
Não eram necessárias respostas, apenas certezas escondidas.
Tinham aulas de música, matemática, latim e grego. Brincavam com
peças rústicas e iam à missa. Muita missa. Apenas Jean
nunca ia. Escondia-se ou arrumava uma desculpa. Os olhos escuros baixos, encapuzados.
Certo dia, seu Gunnar apareceu e um tremor percorreu a todos. Estava de uniforme
alemão e todos, inclusive os padres, demonstraram grande respeito. Vinha
acompanhado de muitos soldados armados como se estes meninos em calças
curtas representassem uma grande ameaça.
Postou-se na frente da turma, mãos às costas, pés bem plantados
no chão, as pernas ligeiramente abertas. O olhar aterrorizante, ou aterrorizando.
Gustav olhou Jean que estava branco e de cabeça baixa. Ele era meio diferente
de nós, tinha estudado outras coisas, tocava piano maravilhosamente.
A pele muito clara de cabelos bem negros e encaracolados.
Os olhos de seu Gunnar passearam sobre todos e recaíram em Jean como
um tiro. Foi direto. Ele não disse nada, apenas começou a juntar
os cadernos e os lápis e levantou-se.
Olhou para mim e vi o desespero em seus olhos.
Estremeci. Estava passeando de carro na Alemanha no ano de 1999.