A Garganta da Serpente
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Barraco

(Vana Comissoli)

Às mulheres que amam demais e ficam cegas,
surdas e falantes.

Um belo apartamento.

As janelas xereteiam a rua, os espaços...

O mobiliário é adequado. Sobretudo nos detalhes: cálices de longas hastes apoiando bojos coloridos em carmim, lavrados em finos desenhos.

Um vaso sobre a mesa.

Uma almofada displicentemente jogada no sofá como se nada fosse, de tecido caro e fino. Lê-se no brilho a riqueza da joia.

Ela era a peça dissonante.

Ela que criara aquilo tudo era o contra senso. Descolorida, máscula, atirada dentro das roupas largas de forma inequivocamente lésbica.

Até hoje me surpreendo como tão belos seios conseguiram se entregar a Safo, mas não me surpreende Safo desejá-los. Eu quase não os tinha, miúda que era, mas minha feminilidade eram pequenos vulcões em meus poros.

É a velha historia: Deus dá dentes a quem não tem o que comer.

Que coisa mais besta.

Reuniam-se ali todas as tardes. Conversavam coisas banais como se o ar respirado naquele ambiente fosse igual à outra casa qualquer. No entanto, o cheiro ali era bem diferente.

As amigas chegavam numa combinação tácita e interna. Fêmeas algumas. A roda de conversa traduzia mensagens secretas que a intrusa não compreendia. Acertos aceites, coisas de mulheres sendo jogadas na roda do tira-bota e deixa o Zé Pereira que se vá... Ou coisas outras?

Amanda observava. Não pertencia aquele meio. Intrusa, não podia perceber o subliminar das frases... As entrelinhas.

Esforçava-se para disfarçar o espanto, Parecer e não ser, por que ter... Não tinha nada a ver com aquilo. Olhava os seios de Marlene não por que eles em si a fascinassem, mas por saber que já haviam sido entregues de forma absurda e total às mãos dos homens. Outros peitos sobre aqueles? Não tinha jeito de entender. E quando não entendia,,, O bochincho estava feito.

Ventoinha, biruta de aeroporto, girassol esse era seu olhar surpreso, magoado. Muito aberto. Estupefato.

As mulheres fêmeas tinham um jeito indefinido, andrógino, ou talvez fetiche.

As mulheres macho explodiam força e poder. Amanda na roda viva rodando era apenas uma mulher. Sem tirar, nem por.

Quando uma das amigas se levantou, todas levantaram. Pé de vento bateu. A pseudo normalidade, o parecer, voltou.

Todo mundo come, seja macho ou fêmea. Todo mundo bebe, homo ou hetero. E todos veem novela.

A luz da sala, quarto temporário, foi apagada logo após a janta. Dormir, voltar-se para dentro na tentativa de organizar as gavetas abertas com roupas emboladas querendo escapar.

Do quarto do casal as vozes saíam abafadas. Ser, ter, parecer. O que existiria ali?

A cabeça bombando elucubrações, às vezes fugindo certezas, criando espaços vazios para refugiar-se, respirar o comum.

Blim-blom!

Quem se encontrava mais perto da porta? Quem dormia na sala, é obvio.

A porta foi aberta com toda possível descontração burlesca. O normal alçou voo.

Era aparição, não podia ser real aquela mulher alta, esguia, o vestido negro, justo e longo tornando as pernas colunatas de igreja sustentando o corpo que se doaria a rituais dionisíacos.

Meu nome é Sedução, sussurravam languidamente os olhos alargados pela sombra dourada e o cajal profundo.

Ah! Detalhes... Coisas bobas diante de uma aparição. Quem saberá se o manto de Maria era de cânhamo ou seda? O importante é existir o manto e ser de Maria. A energia de Maria atravessando as pessoas, tocando, sendo em.

A aparição tocava e falava:

- Oi, Amanda, a Deslu está pronta?

Só conseguiu levantar os ombros e continuar espetequiada olhando. Olhar do sem fim.

Afinal conseguiu perguntar o nome e ouvir sua resposta surpreendente:

- É Mirinha. - caiu na risada. - O que foi? Vim aqui esta tarde, esqueceste?

Essa era a Mirinha que estivera com as outras? Sabia que era fêmea, mas não tanto assim.

- Estão deitadas. Verei...

Entrar no quarto foi outro tormento. Não sabia o que a esperava atrás da porta.

Estavam as duas abraçadas muito próximas. Próximas demais?

Deslú não sairia esta noite, estava de folga. Assuntos pendentes em casa. Enigmática resposta. Folga de quê se não trabalhava? Passava os dias, começados tardiamente a perambular pela casa e Marlene sumida no não sei onde.

Mirinha recebeu o retorno, beijou-a no rosto e se foi tão milagrosamente quanto apareceu. O beijo queimava. Mirinha... Menininha? Safadinha? Escamoteadinha? Quantos inhas esconderia? Inhas demais!

As duas crianças que trouxera, vindas de seu ventre fértil e feminino, dormiam tranquilas. Na infância tudo é normal. Não existem por quês para comportamentos e atitudes. Os que existem são muito mais tangíveis. Por que a formiga é preta? Por que o cachorro late? Por que o leite é branco? Por que minha irmã treme? Essa última era dela mesma e quem tremia também era ela.

No dia seguinte saíram as duas juntas, de mãos dadas. Amanda, com uma desculpa qualquer ficou em casa com os meninos. Remexeu gavetas, abriu caixinhas, encontrou o que queria e o que não que. Fotos de Deslú nua e sensual. Os peitos enormes e a cabeleira oxigenada inflando o papel. Fotos com homens, com mulheres. Com homens?Assim tão juntos? Assim tão... tão acintosamente despidos?

O segredo era tão simples em sua magnitude que demorou a enxergar. Deslú não trabalhava de dia por que trabalhava de noite. Nas boates. Nos cabarés. Linda e estonteantemente feminina.

Jogo de xadrez, de esconde-esconde, de puta que pariu, eu não aguento isso!

Vomitou as tripas, mas quando voltaram e mais tarde a reunião novamente se formou, Amanda sorria e tudo parecia normal.

A gente se acostuma e por amor aceita.

Amava a irmã com toda a força do coração.

O certo e o errado. O todo, ou o quase.

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