A Garganta da Serpente
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Anjos

(Rodrigo Emanoel Fernandes)

- Um brinde - disse Maurício ao levantar-se, erguendo o copo de champanhe acima da cabeça com a mão direita e colocando a esquerda sobre o coração, num gesto que seria imponente se não fosse tão ridículo - Um brinde a esse adorável casal de idiotas que somos nós.

Patrícia explodiu em gargalhadas, recostando-se na cadeira para recuperar o fôlego. Não sabia por que tinha achado aquela gracinha tão hilariante assim. Então se lembrou que já tinha tomado dois copos de champanhe. Mais um e iria começar a achar graça até do catálogo telefônico. Sempre fora fraquinha para beber.

Maurício deixou-se cair novamente na cadeira depois de tomar todo o conteúdo do copo numa golada só. Por um momento sentiu uma leve tontura. "Opa, opa!" pensou "Melhor parar por aqui".

- Acho que já estou começando a ficar de fogo - sorriu ele com um ar propositadamente apatetado.

- Ah... olha só - disse Patrícia - Uma das velas apagou.

Um filete de fumaça cinza azulada desprendia-se preguiçosamente do pavio de uma das três velas do candelabro de desenho antiquado, onde antes queimava uma chama tênue, porém constante. O jantar a luz de velas tinha sido ideia de Patrícia. Claro. A romântica Patrícia. E Maurício não pôde deixar de concordar que seria uma ótima maneira de passarem seu primeiro Natal juntos após o casamento. Muito melhor do que a tradicional e tediosa reunião com as famílias. Estavam casados a menos de dois meses e haviam acabado de se mudar para a tão sonhada casa própria. Ainda estavam longe daquela fase do casamento em que a perspectiva de passar até mesmo um fim de semana sozinhos em casa sem nada para fazer revelava-se uma perspectiva deprimente. Portanto, nada podia deixa-los mais felizes do que uma noite a sós, na casa nova, com um jantar a luz de velas, champanhe e uma cama arrumadinha e perfumada esperando por eles no quarto do andar de cima.

- Ora veja, apagou, não é? Por que será? - disse Maurício, ironicamente - Será que aquela vidraça quebrada ali não teria alguma coisa a ver com isso?

- Com certeza - disse Patrícia enquanto olhava para a janela da sala de jantar. Mais precisamente para um grande buraco irregular no vidro do lado direito, por onde entrava a leve brisa que apagara a vela e por onde, várias horas atrás, havia entrado uma bola de capotão surrada que agora se achava jogada num canto da despensa.

- Eu pego aquele moleque desgraçado - disse Maurício olhando a janela quebrada como quem encara um inimigo - Juro que pego pra torcer aquele pescoço até ele ficar roxo!

- Não fala assim - retrucou Patrícia, com um sorriso - Crianças são assim mesmo. Você também já foi uma...

- Ah... mas eu não era assim, não senhora! Você não viu, não estava aqui, senão você entenderia o que eu quero dizer. Eu nunca tinha visto tamanha falta de educação. Foi impressionante! Pra começar, a bola entrou por essa janela como uma bala de canhão. Com tanta força que ainda conseguiu acertar a parede oposta - apontou para a mancha redonda e marrom impressa na parede uns trinta centímetros à esquerda do televisor colorido ainda não totalmente pago - Quase me acertou, você devia estar aqui pra ver. E o pentelho ainda teve a audácia de pular o muro! Mal tive tempo de me recuperar do susto. Quando saí no quintal dei de cara com ele.

- Qual era a idade dele? - perguntou Patrícia com certo desagrado. Não sentia muita vontade de falar daquela bobagem justamente agora. Era o tipo de assunto que podia estragar todo o clima. Mas já conhecia Maurício o suficiente para saber que quando ele ficava com raiva de alguma coisa precisava por pra fora de qualquer maneira. E ele já tinha adiado esse assunto mais tempo do que Patrícia achava que ele seria capaz.

- Onze, dez, talvez até nove. Um pirralho. Tá certo, eu já fui criança e admito que não era nenhum santinho, minha mãe que o diga, mas eu tinha respeito pelos adultos. Ou, no mínimo, medo. Eu também quebrei uma janela uma vez, sabe? Lembro que quando ouvi o vidro quebrando eu gelei. Fiquei parado de boca aberta segurando o estilingue como um bobo... no meu caso não foi uma bola, foi uma pedrada, eu gostava de caçar passarinhos... mas o resultado foi o mesmo. O dono da casa apareceu cuspindo marimbondo! Aí eu saí correndo. Corri porque sabia que tinha dado uma mancada e fiquei morrendo de vergonha. Se meu pai ficasse sabendo me daria uma surra. E deu mesmo, quando soube.

- Que horror! - interrompeu Patrícia - Meus pais nunca relaram a mão em mim. Acho isso um costume horrível...

- Não... calma aí, eu também acho. Sei que bater não resolve nada, mas... Ah! No caso daquele moleque eu abriria uma exceção. Sabe, um belo couro de cinta, como dizia meu avô, não faria nada mal. Mesmo que não resolvesse nada, só a satisfação de deixar a bunda do moleque ardendo já me deixaria mais feliz.

- Maurício... que horrível - disse Patrícia em meio às gargalhadas - Que exagero!

- Exagero porque você não viu o que ele me falou depois de pular o muro. Ele perguntou da bola. Eu disse "Bola? E a minha janela como é que fica?" Ele deu de ombros assim como se não tivesse nada a ver com o pato. Perguntei quem era o pai dele e ele respondeu que não era da minha conta, imagine só! Perguntei quem ia pagar pela vidraça e sabe o que o pentelho me respondeu?

- Posso imaginar.

- Ele disse: "Foda-se a vidraça!".

- Sério! - exclamou Patrícia sem conseguir deixar de rir - Que absurdo! E você?

- Eu fiquei besta, ora essa! Primeiro fiquei totalmente abobado, depois me subiu uma raiva tão grande que só pude pensar em dizer: "Pois foda-se a bola também, seu bostinha!".

- E aí?

- Ele fez assim pra mim - disse Maurício mostrando a mão direita com o dedo médio levantado - Depois correu e voltou a pular o muro. Corri até o portão a tempo de vê-lo dando o fora rua abaixo junto com os outros moleques. E ainda me chamou de filho da puta.

- É... agora entendo por que ficou com tanta raiva. A molecada hoje está terrível. Não respeitam mais ninguém.

- Pois é como eu falei. Antigamente as crianças não eram assim. Credo! Isso parece papo de velho! Mas, sinceramente, às vezes eu fico assustado. O mundo tem ficado cada vez mais louco e parece que os pais não têm mais ideia de como criar os filhos. Não sabem quais valores devem passar adiante... É a crise geral de valores gerando seus frutos.

"Nada como uma garrafa de champanhe pra estimular um homem a filosofar" pensou Patrícia. Decididamente aquela não era a conversa certa para encerrar a noite. Decidiu dar um jeito de acabar com aquilo.

- Tenho certeza de que você seria um pai incrível - disse num meio sussurro enquanto estendia o braço e segurava a mão dele por sobre a mesa.

- Eu tentaria - ele respondeu com um sorriso - pode acreditar que eu tentaria.

Ele a fitou por um momento, deixando-se encantar pela radiância de seu sorriso. Deslizou os dedos pelos cabelos longos e castanhos dela e sussurrou, num misto de tristeza e profunda alegria: "Tem dias em que tenho medo do mundo lá fora, meu amor. É tudo tão louco que me assusta. Mas com você... eu me sinto bem. O mundo anda tão complicado..."

- "Vem cá, meu bem, que é bom lhe ver... o mundo anda tão complicado, que hoje eu quero fazer tudo por você..."

Mal Patrícia acabou de cantar e Maurício já a havia pegado no colo num movimento rápido e estabanado típico dele. Segurando-a nos braços começou a subir as escadas.

- Não, Maurício! Me põe no chão! Você enlouqueceu? Vai me derrubar e vamos descer rolando as escadas.

- Sem grilo, Jane! É só não espernear que Tarzan leva você sã e salva pra caminha.

Como, de fato, o fez.



O rádio relógio sobre a cômoda marcava três e trinta e cinco da madrugada quando Maurício acordou. O silêncio era total, quebrado apenas pela respiração regular de Patrícia adormecida ao seu lado. Lá fora, na rua tranquila e arborizada, as únicas luzes a brilhar eram provenientes dos postes de iluminação; estas, juntamente com a luminosidade pálida da lua cheia, produziam uma noite clara e agradável de verão. Nas casas vizinhas reinava o silêncio e as sombras. A maioria dos moradores havia aproveitado o feriado de Natal para viajar e reencontrar os familiares e os poucos que ficaram dormiam profundamente. Até os cães pareciam ter decidido guardar um respeitoso silêncio esta noite. Se em respeito ao Natal ou a qualquer outra coisa, quem sabe?

As imagens do sonho que o despertou ainda flutuavam semidispersas na mente de Maurício levando-o a uma estranha, porém não desagradável, melancolia. Tivera aquele tipo de sonho que costumamos ler descritos em poemas de gênios, sábios, loucos e bêbados. Poemas que lemos sem, na verdade, conseguir compreender. Sonhos estranhos e difusos, imagens que vêm e vão como num caleidoscópio, formando símbolos, visões, delírios e sombras. Agora, desperto, sentia dificuldade em compreender as imagens que seu subconsciente lhe trouxe, apesar da certeza de que as compreendia perfeitamente enquanto adormecido. Era um sonho nebuloso, quase delirante. As imagens sucediam-se num ritmo vertiginoso, algumas dando origem a formas e sons compreensíveis, outras não mais do que cores, luzes e formas abstratas. Rostos de conhecidos e desconhecidos surgiam e desapareciam: seu pai, sua primeira namorada, um colega de classe da segunda série, Patrícia, seu próprio rosto, às vezes como é agora, às vezes mais velho ou mais jovem. Sentiu como se flutuasse em meio a velhas lembranças, passadas e futuras, viu a árvore com balanço em que brincava no colégio, viu o pára-brisa estilhaçado do Passat que bateu contra um muro quando tinha 16 anos, viu seu rosto trinta anos mais velho refletido na vitrine de uma loja, viu o rosto de Patrícia enquanto faziam amor, os cabelos loiros emoldurando um rosto que parecia brilhar na penumbra do quarto, viu tudo isso e ainda mais...

Viu anjos. Anjos resplandecentes e pequeninos como crianças voando despreocupadamente em meio às nuvens. Como querubins de lojinhas de bugigangas new age. Agora que estava acordado, parecia-lhe uma imagem muito cafona, mas mesmo assim sabia o que devia simbolizar: seu desejo genuíno de ter um filho. Não falara à Patrícia da boca pra fora. Queria mesmo tentar. E seu filho não seria como aquele moleque da bola. De jeito nenhum, ele não iria deixar. Seu filho seria inocente e puro como os anjinhos barrocos de seu sonho. A ideia era tão docemente tola que ele quase riu, mas se conteve para não acordar Patrícia.

Sentou-se na cama. Sentia-se totalmente desperto agora. Um de seus maiores problemas era a insônia. Era comum acordar no meio da noite e não conseguir pegar mais no sono até o amanhecer. Ficar ali deitado era inútil, isso ele já sabia. Lembrou-se então do bolo de chocolate na geladeira que deveria ter sido a sobremesa do jantar de horas atrás mas que acabou sendo esquecido. Maurício sorriu, "e quem não esqueceria" pensou acariciando os cabelos de Patrícia.

Levantou-se, colocou uma bermuda e saiu do quarto. Enquanto descia a escada começou a sentir uma forte rajada de vento frio que lhe arrepiou a pele. Lembrou-se novamente do buraco na janela e, pela milésima vez, xingou o pequeno autor da proeza. Amanhã mesmo iria procurar um vidraceiro.

Desceu rapidamente, procurando não fazer barulho. Ao chegar à sala de jantar foi tomado por um choque repentino. A rajada de vento que sentira não vinha do buraco, mas sim da própria janela. A janela estava aberta. Escancarada. As cortinas balançando ao vento como num velho filme de horror.

Sentiu o sangue gelar nas veias. Tinha imaginado que algo assim poderia acontecer. O buraco no vidro era grande. Se alguém quisesse abrir a janela pelo lado de fora bastava enfiar o braço pelo buraco e alcançar o trinco. Nada mais fácil. Mas não acreditou realmente que isso aconteceria, afinal esse tipo de coisa só acontece com os outros, não é? Nunca com a gente.

Olhou, apreensivamente, em torno de si sem conseguir enxergar quase nada na penumbra da sala. A luz do luar não iluminava mais do que um metro à frente da janela, todo o restante da sala estava envolto nas sombras. Maurício apressou-se até o interruptor, que ficava ao lado da porta que dava para a cozinha, mas a lâmpada não acendeu.

"Não é possível!" pensou. A lâmpada era nova e funcionava perfeitamente até algumas horas atrás. Lembrou-se então do abajur que ficava na sala de estar, ao lado. Preparou-se então para atravessar a sala de jantar, contornando a mesa que ficava em seu centro, com toda a louça e talheres ainda esquecidos sobre ela, quando viu algo se mover no limiar de sua visão.

Seu corpo congelou-se como um animal apanhado numa armadilha. Seus olhos perscrutaram a escuridão enquanto sua mente tentava decidir se tinha mesmo visto algum movimento ou se fora apenas impressão. Moveu a cabeça lentamente, para um lado e para o outro, tentando identificar cada vulto que podia distinguir em meio às sombras. Aquele devia ser a poltrona. Aquele outro a outra poltrona. Entre as duas o vaso que pertenceu a sua avó. Ali no canto... o que era mesmo aquilo ali... parecia outro vaso...

Maurício engoliu em seco. Não conseguia distinguir o que era aquele vulto. Fixou os olhos nele, esforçando-se, tentando vencer as limitações da escuridão. Começou a se aproximar, forçando ainda mais a vista até que viu... realmente viu, não era imaginação... um par de pequenos olhos brilhantes encarando-o do canto da sala.

De repente, o vulto saiu correndo, fugindo de Maurício, emitindo um ruído agudo semelhante a um sibilar. O susto foi tão grande que Maurício quase gritou. Ficou imóvel, por um momento, sem saber o que devia fazer e, então, viu outras sombras ganharem vida diante de seus olhos e correrem em todas as direções. Para a cozinha, para a sala de estar, para...

... para as escadas!

Viu duas, ou talvez, três sombras subirem as escadas!

E Patrícia estava dormindo lá em cima!

Maurício lançou-se em direção as escadas, com o coração disparado, mas antes que pudesse dar dois passos ou gritar o nome dela uma das sombras jogou-se contra ele, atingindo-o em cheio na boca do estômago.

Maurício caiu sobre a mesa, que desabou no chão sob seu peso. A dor o fazia ver bolinhas coloridas flutuando diante do nariz. Encolheu-se no chão esperando a dor passar, torcendo para que o barulho de louça espatifando-se tivesse acordado Patrícia. Então uma verdadeira algazarra começou. Por toda parte o barulho de coisas se quebrando. Pratos sendo jogados no chão, a estante da sala de estar foi derrubada com um estrondo de porcelana espatifando-se. De repente, uma explosão luminosa e um chiado elétrico, seguido de cheiro de queimado: a televisão!

Maurício esforçava-se para se levantar quando algo o atingiu nas costas. Mal teve tempo de gritar e outro objeto atingiu sua perna esquerda. Dessa vez conseguiu perceber o que era. Um CD!

Repentinamente começou a ser atingido por CDs sendo arremessados de todos os lados, chocando-se com seu corpo com violência, arrancando sangue. Tentou proteger o rosto com os braços enquanto chorava de desespero. Estavam tentando mata-lo com seus CDs! Ao seu redor às vezes podia perceber pequenos vultos de olhos brilhantes que riam afetadamente e continuavam a ataca-lo. Em meio à dor, ouviu Patrícia gritar.

- Não!! - num súbito acesso de raiva, conseguiu superar a dor e correu para as escadas, subindo o mais rápido que pôde, deixando a chuva de CDs para trás. Chegou ao corredor do andar de cima, ainda mais escuro do que a sala de jantar. Pressionou um dos interruptores paralelos mas nada aconteceu.

A chave geral! Devia estar desligada! As sombras desligaram a chave geral!

Hesitou, por um instante. O bastante para que dois dos pequenos vultos passassem correndo por ele e desaparecessem no interior do quarto, fechando a porta atrás de si. Maurício tentou correr até lá mas, a meio caminho, algo saltou sobre suas costas, quase fazendo com que perdesse o equilíbrio, agarrou-se ao seu pescoço e começou a morder.

Maurício gritou, mais de medo do que propriamente de dor. Sentiu o sangue começar a escorrer por sua cabeça e pescoço. A coisa mordia sem parar. Mordia suas orelhas, sua nuca, seus ombros. Maurício rodopiava, tentando desesperadamente arrancar aquilo das suas costas, mas a coisa agarrava-se firmemente ao seu pescoço como se sua vida dependesse disso.

O desespero de Maurício aumentou quando outro se agarrou a sua perna direita e começou a morder-lhe o joelho.

Maurício trincava os dentes de dor. O joelho ferido parecia querer amolecer e derruba-lo no chão. Mas não podia cair! Se caísse, tinha certeza de que aquelas coisas o matariam. O comeriam vivo! Nunca tinha se sentido tão apavorado. O que estava acontecendo? O mundo parecia estar enlouquecendo. Nada fazia sentido.

A coisa nas suas costas começou a rir em seus ouvidos no intervalo entre as mordidas. O som das gargalhadas afetadas conseguiu enfurecer Maurício. A raiva superou o medo e a dor. Com o punho cerrado, Maurício atingiu a cabeça da coisa agarrada à sua perna com toda a força que conseguiu reunir. A coisa o largou, com um grito agudo, e desapareceu na escuridão.

Antes mesmo que Maurício pudesse recuperar o equilíbrio o outro atacante cravou os dentes profundamente em seu pescoço e começou a puxar. Maurício urrou de dor e lançou-se de costas contra a parede, prensando o inimigo. A manobra deu certo. Livre de seu atacante, Maurício correu até a porta do quarto e abriu-a com um chute.

O choque foi tão grande que Maurício ficou paralisado, sua mente incapaz de aceitar o que via. Patrícia estava largada sobre a cama, com as mãos e os pés amarrados juntos na frente do corpo com inúmeras tiras de esparadrapo, a boca amordaçada. Ela parecia um novilho laçado por um peão no pasto.

E, cercando-a por todos os lados, alguns até sobre a cama com ela, estavam os invasores. Pequenos, olhos brilhantes, sorrisos estampados nos lábios como impressões de diabólica crueldade. Maurício agora podia vê-los claramente, iluminados como estavam pelo luar que entrava pela janela logo atrás da cama. Maurício os via. Mas não conseguia acreditar. Não queria acreditar.

Então, o que estava mais próximo da cabeça de Patrícia estendeu a mão e agarrou os cabelos dela. Patrícia chorava, seus olhos fitavam Maurício num desespero crescente. O pequeno invasor segurou seus cabelos firmemente e, com a mão livre, ergueu um objeto dourado: o troféu de natação que Patrícia ganhara aos dezoito anos. O luar refletia no latão banhado a ouro. A mente aturdida de Maurício só entendeu o que ia acontecer quando já era tarde demais. O troféu baixou violentamente. O crânio de Patrícia rachou com um angustiante baque surdo. O sangue manchou o lençol onde ela e Maurício haviam se amado, poucas horas atrás.

Um grito de ódio incontido explodiu na garganta de Maurício. A fúria brilhou em seus olhos ao mesmo tempo em que as lágrimas brotaram. Com um ódio insano, não enxergando mais nada além do vermelho do sangue de Patrícia, Maurício saltou sobre os invasores que agora riam dele. Os que estavam na frente saíram do caminho agilmente enquanto os outros o agarravam e, usando o próprio impulso de Maurício contra ele, jogaram-no pela janela.

E foi o fim.

Maurício não sentia mais dores. Na verdade não conseguia sentir mais nada do corpo e não podia se mover. Deitado ali, sobre o concreto do chão do quintal, em meio ao próprio sangue e cacos de vidro, sentia a consciência pouco a pouco se desvanecer, a luz indo e voltando aos seus olhos abertos e vidrados. Não conseguia mais fecha-los. Da posição em que estava podia ver a porta da frente, o carro e a janela da sala de jantar, ainda escancarada. Não sabia ao certo a quanto tempo estava largado ali. Parecia que a anos, embora sua lógica lhe dizesse que não podia fazer mais do que alguns minutos. Afinal, ainda estava vivo. Ou não?

A escuridão voltou por um momento e, quando se foi, Maurício pôde ver as crianças. Uma a uma elas iam saindo da casa pelo mesmo lugar por onde entraram: a janela da sala de jantar. Maurício as contou: sete meninos. Só isso? Lá dentro pareciam um exército! O maior aparentava ter doze anos, não mais do que isso. O menorzinho, um garotinho loiro de pele tão branca que parecia de louça, aparentava ter quatro ou cinco.

A visão de Maurício falhou novamente. Quando voltou eles estavam ao seu redor, observando-o com astuto interesse, procurando sinais de vida. A julgar pelos sorrisos e olhares que trocavam, não encontraram sinal algum.

"Será que estou morto?" pensou. Que diferença isso fazia agora? Olhava atentamente para as crianças e não conseguia notar nada de errado com elas. Pareciam normais. Pareciam com qualquer criança da face da Terra. A não ser pelos olhos. Havia um brilho em seus olhos. Um brilho que não deveria existir nos olhos de uma criança. Um brilho cruel, malicioso, um brilho que transmitia tudo, menos inocência.

Reconheceu o menino que quebrara a vidraça. Seus olhos frios encaravam o rosto de Maurício. Segurava a bola de capotão surrada debaixo do braço com firmeza e um certo ar de triunfo. Ele foi o primeiro a quebrar o silêncio:

- Isso é pra aprender a deixar de ser cuzão, seu viado - disse ele inclinando-se sobre Maurício para lhe cuspir no rosto.

O cuspe escorreu sobre o olho aberto de Maurício. Ainda assim não conseguiu piscar. As crianças riram.

- Foi fera, num foi? - disse uma delas.
- Foi cool! - respondeu outra.
- A mina era gostosa, véio! Parecia meio magrela, mas pelada ficou melhor.
- Só...
- O filho da puta me machucou. Quis me achatar na parede.
- Ah... vai chorar, seu fresco?
- Qual é? Vai encarar!

- Deu pra ver os miolo dela, cara! Foi animal!

- Ô galera, melhor a gente se mandar antes que apareça alguém. A bicha berrou pra caramba.

- É, vamos embora.

- Se meu pai descobrir que eu pulei a janela eu apanho de cinta.

E eles se vão. Desaparecendo na noite como se as sombras os tragassem e acolhessem em seu seio frio. Maurício continuou ali deitado, em meio ao sangue e a sujeira, a luz indo e voltando aos seus olhos vidrados. De repente percebeu que o menininho loiro ainda estava ali, tinha ficado pra trás. Chegando bem perto, o menino agachou-se e ficou algum tempo olhando para o rosto de Maurício com os olhinhos cheios da mais pura curiosidade infantil. Depois se levantou e, chegando mais perto, abaixou o short e urinou tranquilamente sobre a cabeça de Maurício. Então, rindo alegremente, correu atrás dos mais velhos antes que sumissem de vista. Afinal, não sabia voltar para casa sozinho.

(1987/1999)

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