A Garganta da Serpente
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Conto em Três Cenas

(Vera Abi Saber)

Cena 1 - Tomada aérea

O carro pequeno desliza pela estrada. Segue veloz como um ponto móvel na paisagem. Do lado direito, montanhas e campos se revezam. Do lado esquerdo, até aonde a vista enxerga, somente campos verdes. No horizonte, um resto de sol vermelho e intenso teima em permanecer mais um pouco e dá a impressão de um rasgo no céu que se esforça para escurecer.

As estrelas vão se chegando, a paisagem muda de tom. Apaga-se.

A cena vista de longe parece uma pintura - um risco cruzando a tela rumo ao infinito.



Cena 2 - Dentro do carro

Quatro ocupantes. Cansados. O zumbido do motor, o som monótono dos pneus rodando no asfalto e o contorno vago das árvores à beira da estrada trazem para dentro do carro uma sensação bruta de torpor. Real e irreal se confundem. O silêncio é compacto. Pesado. Exausto; só quebrado vez por outra pela respiração cadenciada dos ocupantes. Aos poucos o resto de claridade acaba cedendo e a escuridão invade tudo. Interior e exterior se misturam. Noite sem luar. Densa. O barulho do motor inebria, hipnotiza. Visto de dentro do carro o clarão do farol é como um facho de laser que perfura a noite. Vara a escuridão. Força a passagem; mas é quase que imediatamente tragado pelo negrume. Não há neblina ou qualquer coisa que atrapalhe a visão. Apenas a negrura concreta na noite envolvente.



Cena 3 - O acontecimento

O carro, implacável, segue pela estrada riscando a paisagem. A viagem prossegue. Num momento qualquer, como que brotando do asfalto, surge um vulto assustado que encara o carro de frente. Seus olhos refletem o brilho frio dos faróis. Pavor dentro e fora do carro. Choque violento. Sensação do impacto ferindo a carne. Um grito fica contido nas gargantas adormecidas. Alguns murmúrios. Nenhum comentário. O carro todo treme como se estivesse com os nervos à flor da pele. Dança uma dança louca. Parece que se rebela, não quer seguir em frente. Geme também. Com habilidade o motorista domina a máquina, mas o baque fica cravado em cada um dos passageiros. Indecisão. O carro ainda vacila por mais um instante depois segue em frente. Noite escura. Muito escura. Pelo vidro traseiro ainda se pode ver a sombra estendida na estrada sendo engolida pela escuridão. Um cachorro... Ou quem sabe um bezerro... Ou... Talvez... Tudo tão rápido. A cena, como se fosse um quadro fixado no espaço, vai se distanciando. O carro segue cortando a noite. Continua veloz. Os faróis ferindo a escuridão. A imagem desaparece absorvida pelas trevas. Extingue-se.

No interior do carro - silêncio. Nas gargantas ainda o grito, travado, impotente, de espanto e dor.

Lá fora - a noite de verão. Quente. Escura. Insondável.

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