Quando desceu a Ponte Buarque de Macedo, Samuel viu-se acompanhado por sua
própria imagem descendo a ponte como uma sombra. Ele vinha limpo, barbeado,
mas sua sombra era a de um indivíduo em desalinho, com barba por fazer,
de olhos grados, cauteloso, como um ser que sai da toca à luz do dia.
Ele, a sua imagem, acompanhava-o às suas costas. Samuel o pressentia.
Com ele, como ele, havia deixado a Rio Branco e se dirigia à Praça
da República. O que a princípio era menos que um cisco no ar se
transformou em passos atrás, sem ruído, tomou corpo sem profundidade
de carne ou pedra, vestiu-se num ser à sua semelhança. "Por
que me sinto tão perto da morte? Posso tocá-la". Com efeito,
como um menino que queria fazer do intangível o concreto, e realizar
a passagem para o visível, para o sólido, daquilo que é
sentido, tocando-o, Samuel passou a mão nas costas, à maneira
de quem dando a entender que espanta pombas brancas deseja de fato estreitá-las,
para conter nas mãos o seu voo arisco. Frustrante: nem pombas nem
a própria imagem, de concreto só a brisa do rio, que correu no
suor de suas mãos. Olhou pelos cantos dos olhos: só uma sombra,
escura, que sabia ser a sua, movia-se em diagonal. O pensamento, no entanto,
insistia: "eu posso tocá-la". A morte assim, podendo ser tocada,
e isto queria dizer, ser tocada à vista daquele amadíssimo rio,
iluminado de leite nas nuvens prenhes de luz, quando ele descia rumo às
gordíssimas árvores da praça, de galhos e caules abertos
como generosos úberes, essa morte substanciada nesse conjunto perdia
os dentes e os buracos de sua caveira, despindo-se do horror. Era mãe.
Era voltar a nascer, sentir o leite animal genuíno da gênese da
própria carne, beber o leite mesmo do coração em uma conhecida
carne e em sua doçura. A morte assim era um nascer antes da dor, um carinho
único, máximo e irrepetível: era estar puro e ter os sentidos
desarmados, virgem para a total experiência na idade adulta. "Eu
sei, eu posso tocá-la".
O que aconteceu então, quando Samuel viu o outro Samuel passar ao lado,
e caminhar resoluto à frente até a praça, não guarda
lógica nem correspondência linear entre o espaço físico
que seus passos venceram e a vida que viveu, em 5 minutos. O seu espaço
último distendeu-se, a experiência que lhe entrava pelos olhos
foi além da praça. "Estou caminhando para a morte. É
isso". Então ele se viu quando era um menininho nu, moreno, na ladeira
em Beberibe. Ele ensaiava os primeiros passos, levantava, caía, sobre
o piso de barro de sua casa. A mãe lhe dizia, "tem-tem", e
vinha uma chuva de aguaceiro muito forte, descendo grossa pela calha, e o frio
que sentia no corpo encharcado, correndo pela rua, era o mesmo frio e alegria
que o seu corpo guarda agora. Então, quando ele era esse menino, havia
um depois, estações, um suceder de horas e acontecimentos que
ele não sabia como, enquanto neste último instante ele sabia como,
tinha visto e vivido os acontecimentos, sabia mais, que o depois não
estava longe, era logo, pois agora o tempo não se distendia como antes,
como trilhos de ferrovia, o tempo, vendo o seu término, aprofundava-se,
porque em vez de ir adiante, numa extensão, o tempo descia, cavando-se,
intenso, não querendo saber que flor vai dar o botão, mas correndo
botão adentro.
Isto, de não mais querer saber que flor vai dar o botão, sabemo-lo
nós, fora de Samuel, não era um sintoma de impaciência,
ou desprezo pela cor e floração das pétalas que viriam
com a força e a necessidade inexorável da estação.
Era, digamos, um déjà vu, supondo isto possível num indivíduo
ele próprio botão, pois era como se ele soubesse há muito
a corola que sairia a desabrochar, e, por estar cansado da extensão que
não percebe o instante, extensão que é sempre um suceder,
uma ânsia e preocupação do que virá, ele desse as
costas para o depois, a fim de melhor fruir o presente em toda a sua plenitude.
Um congelamento do fugaz, poderia ser dito, por quem acostumado ao tempo que
passa. Mas isso é impróprio. Ele não mumificava, ou imobilizava
o tempo, que em si mesmo é movimento, irrefreável. Sabendo embora
da impropriedade, mais próximo do narrar a sua experiência seria
dizer que ele hibernava o transitório, se por hibernação
queremos dizer que ele rasgou o tempo que se vai, descendo nele, em vez de ser
levado e transformado pelo tempo. Uma hibernação vivíssima
em sonho, de tal maneira que tendo a retina fixa para os minutos que voam, ele
caísse num túnel vertical, um caule, que se espraia e se enraíza
sob a superfície, onde o minuto dos seus passos tivesse a correspondência
de passados anos, sem número e sem extensão, selecionados pelo
gosto que lhe ficou do essencial nos seus incompletos 22 anos. Ainda assim é
dizer pouco. O que foi essencial crescia, envolvia-o, pois um só fato
essencial era porta aberta onde ele adentrava outros reinos, revelação
mais funda do que antes ele não percebera.
E aqui vai o descompasso entre o escrever e o viver, que precede e ultrapassa
a reflexão sobre. Pois enquanto Samuel ia de mergulho e rompimento de
portas sucessivas, ele ia simultâneo a outras portas em outros planos,
que o remetiam a passagens mais internas, que por sua vez, em seus corredores,
comunicavam-se com as portas originais e sua sucessão. Originais ...
como ter certeza que a porta que se abria era a origem, ou apenas umbral de
uma sucessão deslocada? Sucessão ... como dizer que as portinhas
b1, b2, guardavam com a porta b uma linhagem, uma regra interna, ou, mesmo,
sequer alguma ordem? Poderia ser dito, ordem possuíam, pois a porta b2
veio à sua mente depois da b1. Mas nisso mesmo não havia certeza.
Pois a b2, e isso é típico da manha e argúcia do espírito,
poderia apenas ser uma b3 sob disfarce, com medo de se apresentar na sua identidade.
Mais: vale a sucessão, ou b2 que vindo com tamanha força apaga
o b1, reduzindo-o ao esquecimento de sombra no vale das sombras? E aqui vai
o descompasso entre o viver e o escrever, descompasso, digamo-lo assim, para
restar uma posição honrosa para o escrever. Pois enquanto Samuel
ia na experiência total dos seus últimos 5 minutos, para narrá-lo
temos que desmontar o que em si é orgânico, unilateral - temos
que fazer um esgarçamento de corte a bisturi em cérebro vivo.
Pois só deveríamos desmontar o que em si é montável.
Como é possível seccionar-se um homem, órgão a órgão,
(quadro a quadro, vida a vida, ordenados em fila) para depois reconstituí-lo
por costuras (em narração), devolvendo-o íntegro? Então
valhamo-nos dos cacos de expressão, onde sopramos.
Uma réstia de sol descia pela fresta da janela, que ele sabia ser da
sua casa. Esta réstia, mais patente, verdadeira, se assemelhava à
que a copa da árvore filtrava, na Praça da República. Diferente
desta, que os seus olhos acusavam no espaço fixo, enrijecido, de 1 minuto,
pairando no chão da praça, a réstia de sua casa tinha corpúsculos
dourados em profusão, em movimento sem regra e sem lei, sem no entanto
constituir o caos, porque Samuel os compreendia, e tão bem que lhes poderia
dizer onde estariam no espaço seguinte. Isto, esta direção
que ele dava aos corpúsculos, era um ato de vontade ou de sua lembrança?
A isto, a sua onisciência calava, para quê responder o inútil?,
porque o corpúsculo era um tapete que o levava num escuro, azulado, guardando-o
tão pequeno quanto, para melhor observar o que na sua estatura normal
lhe era vedado. Ele via cada vez mais, não objetos, mas realidades humanas
esquecidas, frescas, sim, fresquíssimas e vivíssimas, ele as via
com uma familiaridade de prazer crescente, tenso, prazer que circulava e circulava
a explosão do gozo, cujo maior gozo era não atingir o ápice,
isto ele sentia, ainda que se rebelasse a seu conhecimento. Simultâneo
- como dizer simultâneo? é próprio, cabe?, uma vez que portas-realidades
se abriam acima, abaixo, (e como dizer acima, abaixo? cabe?) ao lado, (existia
mesmo ao lado?) - o fato é que ele estava não só nos tapetes-corpúsculos,
ele estava também em realidades abrasantes de sol, ofuscantes, convivendo
orgânicas e unidas no azul escuro da noite onde ele voou. E, embora redescobrisse
cenários e gente tão familiares, pelo frescor do redescobrir,
que era uma descoberta em razão desse frescor, ele estranhava o mais
comezinho fato que antes ele pensava ter o conhecimento. "Mãe, o
que é o contrário do beijo? qual o oposto do vermelho?" -
Pois a realidade não se nutre e é nos seus contrários?,
uma voz adulta lhe sussurrava, e a essa voz, com a mão que espantava
pombas brancas, ele fazia desaparecer. Ele não tinha tempo. E isso era
o mesmo que dizer, ele tinta todo o tempo de sua vida, um tempo que nunca tivera
antes, para descer mais na realidade do azul-escuro. "Mãe, por que
nunca me fizeste uma camisa desta cor, assim, azul-escura?" Ao dirigir
essa pergunta à gorda senhora que costurava, no azul-celeste da manhã,
ele quis abrir os braços, para cima, e isso tinha graça, ele quis
abrir os braços na entonação do "Pai, por que me abandonaste?"
do Cristo na cruz, como se ele estivesse cercado, por carros e indivíduos
de pistola e metralhadora. Cercado, ele, que engraçado, logo agora que
o outro Samuel vinha rindo, de frente para ele, e esse Samuel ele compreendia,
e como, era um homem cônscio de sua consciência, o melhor Samuel
que ele, o Samuel cercado, poderia ser.
- Alto! Braços para cima. Se se mexer se fode!
Isso, os seus ouvidos mais factuais ouviram. Samuel, o liberto, corria, dando
voltas sorrindo com desdém ao cerco do outro Samuel, que a miséria
queria prender. Dois minutos e trinta burros segundos tinham passado. Foi então
que Samuel compreendeu que mais vale na vida o que não tem valor. Isso
ele soube, compreendeu, tateou, pegou, amassou no ar com os dedos de sua mão
úmida.
- Porra! - ele gritou, com os braços erguidos. - Por que nunca me disseram
isso antes?
Então ele compreendeu que o bolo de feijão dado e feito por sua
mãe, com farinha pesada e composta no afeto, era um valor que rajadas
de balas não sacodem. Então ele soube, por aquele bolo de feijão,
que dona Maria era um valor mais alto, que apostilas e livros não lhe
disseram. Então ele soube, por sua mãe, que a réstia de
sol era fundamental, única, inexcedível. Então ele soube
que as poucas alegrias que um dia ele dera àquela senhora gorda eram
o melhor prêmio, eram o seu maior galardão, a sua ordem ilustre
da jarreteira. Então ele redesenhou um avião em papel usado em
padaria e o mostrou à costureira e a viu pegar aquela obra com um orgulho
mais fundo que o escultor do Moisés não conseguiu romper de suas
entranhas. E ele ousou ver aquelas pernas rombudas de varizes. Beijou-as nos
pontos mais nodosos. Então ele sentiu o gosto e a textura do chá
de capim-santo que recebeu na boca nos dias em que teve febre. Pois o mundo,
e o valor do mundo, lhe veio todo no sentido único do gosto. O tato,
a visão, o cheiro, o que ele ouvia, o imaginado, o lembrado, o apenas
entrevisto na vizinhança do sentido, passavam pelo crisol do gosto. O
sabor essencial do ovo cozido, água e sal somente. Então ele viu
que esse gosto na sua vida havia sido corrompido. As receitas para a adição
de molhos e temperos, o concerto sinfônico, as fórmulas da mais-valia,
nada disso tinha mais valor que o ovo com sal e as veias a arrebentar da mulher
gorda na ladeira. Então ele a viu costurando sua camisa azul escura,
da mesma cor do espaço noturno onde ele viajava, montado num corpúsculo
que vinha a ser o dorso de sua mãe gorda. Que concentração
e apuro ela punha na máquina, alinhavando, acariciando as costuras, bicuda,
compondo a camisa da cor que ela nunca lhe dera! Aquele bico, aquelas bochechas
infladas ele conhecia: ela estava zangada, aborrecida. Então, correndo
suas varizes, beijando-a, e com as lágrimas a lhe correrem no rosto,
em razão de todo o passado de estupidez, ele que certa vez quis fazer
daquela natureza a repetição da Mãe revolucionária,
ele que a censurava, que tinha repugnância do seu desconhecimento das
tarefas necessárias para a construção do socialismo, ele
se disse num jorro, "Estúpido! mil vezes estúpido! - Hei,
é isso o inferno? Ter sido tão estúpido, é isso
o inferno? Saber o erro máximo que se deu e sabê-lo definitivamente
sem remédio... Isso é o inferno! Para e por todos os séculos
estúpido", então mais uma vez Samuel correu-a, afogou-a de
beijos, e os beijos tinham o calor de suas lágrimas no rosto na praça,
porque só então ele a compreendia: Dona Maria era uma senhora
digna, corajosa, agindo como era possível ser naquele meio e naquele
tempo. "Estúpido", e mais Samuel a beijava, ao saber que a
gorda estava costurando a sua mortalha com a determinação de quem
faz o enxoval do último homem de sua vida. Então ele, repositório
daquele amor, daquela despedida, soube o que era o contrário do beijo
- era o que ele havia feito, quando dera as costas à Dona Maria. Então
ele ergueu mais alto os braços e gritou:
- Viva dona Maria!
- Cala a boca, filho da puta.
- Respeitem a minha mãe, fascistas!
Então Samuel, embora sabendo que o tempo lhe era adverso, não
porque 4 minutos de sua última vida corriam no passado, mas porque não
havia tempo entre o espaço do seu braço e a arma nas costas, pois
tinha à sua frente animais com sede e engatilhados, embora tendo essa
clara consciência, Samuel soube que mais vale na vida a afirmação
do beijo. E soube, ah como soube, na força com que sonhou em pegar na
arma, com o peito ardendo ele soube que o amor é revolucionário.
A mão que se dirigiu à arma teve a serena convicção
de que o mundo só vale a pena se nele couber o amor que beija as pernas
estragadas. Que o respeito ao que se ama é o ponto do ponto do ponto.
Tentando-se ir além não se consegue ir mais alto. Então
ele soube que não se morre pela revolução com o cérebro.
O cérebro é canalha, poltrão. Engoliria, amargo, mas engoliria
o insulto às mulheres que sozinhas, sem marido, doam-se até a
própria destruição por seus filhos. Puta ... ah se aquela
mulher fosse puta, certamente não teria as pernas arruinadas.
- Calado, filho da puta!
- Respeitem uma mulher do povo. Fascistas! Fascistas!
Samuel gritou fascistas, fascistas, como balas, eram suas últimas balas,
que a arma não pôde sacar. Recebeu um balaço no ombro que
quase o arranca.
- Peguem ele vivo! - ouviu. Mas era tarde. Atarantados, os bravos atiravam
em todas as direções. Ele, o Samuel cercado, quis correr para
o rio, quis, gostaria. O seu outro, o liberto, conseguiu. Estava debruçado
no parapeito da ponte. Olhava o céu, que desce e se abraça com
o rio no espaço aberto, largo, fluindo manso do Apolo à Ponte
de Limoeiro.
- Vem ver que dia, Samuel. Vem.
Ao ouvir essa voz cálida, conclamante, ele também ouvia, num
contraste soturno, mais próximo, saindo dele mesmo: "como é
que se morre num dia assim?"
- O rio fala, Samuel. Recife grande e solidária - o outro lhe anunciava,
qual marujo na gávea. E este outro, de fato, subia, deslocando-se para
o azul. Já então, o "Recife grande, solidária"
chegava-lhe grave, caudaloso, como se falado por voz rouca, que se embaraça
em golfos de sangue. "Como é que se morre num dia assim?" unia-se
ao grave, agora sem controle, cantando junto numa só voz, à capela,
para daí passar a um só cantor, aliás, Samuel descobriu,
numa só cantora, em véus diáfanos, curioso, véus
que deixavam ver um corpo de fêmea sem sensualidade, pois o corpo, a jovem,
eram referência muda para a sua voz, dir-se-ia melhor, para a sua canção,
em melodia longa que cantada num ponto se estendia a outro ponto, como se fosse
uma sucessão de despedidas, um afastar-se cada vez mais para longe. Samuel
estava por terra então. Seu corpo aninhava-se num leito de flores caídas.
Estava a um espaço menor que o seu último minuto.
- Engraçado - disseram os policiais. O engraçado que achavam,
nos seus risos nervosos, é que ao meterem fuzilaria cerrada em Samuel,
ele parecia um boneco em convulsão, vivo e dançando. O terrorista
virou um corpo atravessado por descarga elétrica pelo tronco. Que dança
engraçada. Porra, bala de 45 tem força. E o bandido insistia em
ficar em pé, como se estivesse sapateando, ao ritmo do peito acompanhando-se
na cabeça. Aquela dança nem parecia consequência do
impacto das balas. Pois, apavorados, tinham enchido de buracos as árvores
da praça. Perderam tiros, e o indivíduo na dança. Agora
mesmo, ele estava no chão, estrebuchando. Corpo emporcalhado de sangue.
Foram devagar para cima, até sentirem um fedor de merda e de carne no
açougue. Cautelosos.
- Cuidado, comunista tem manha.
- O bandido tá rindo ...
De fato, o rosto de Samuel sorria. Seus lábios finos e morenos iam aos
cantos, compondo uma expressão de paz com os seus olhos vítreos.
- Terrorista filho da puta!
Os olhos vítreos iluminaram-se. Um baque repentino, brutal, recebeu
no crânio. E até mesmo isso teve um gosto, ainda que sua massa
encefálica desabrochasse, flor legítima da praça. No dado
factual, ele sentiu bocados de sal no mel. Esse gosto veio na dor que não
concluiu o seu fim. Os seus olhos, ele viu, embutiram-se em cavernas. Mas isso
não era o concreto. O clarão, que assaltou a janela da catedral
onde a voz cantava, se deu antes, durante ou depois do esgarçamento do
tecido no crânio?
- Caga pela cabeça, miserável - isso ainda ele ouviu, longínquo,
voz áspera saída de um anão endiabrado, pulando na frente
de um aglomerado, distante. Pois Samuel já não mais era, na praça.
O outro em que ele se havia tornado alçou voo. Nem mais um só
som de rajada o atingiria, porque mais alto se fez o canto do bem-te-vi. E como
isso era conhecido! Como lhe eram familiares, íntimos, plasmadores de
sua identidade, esse canto e esse voo. Isto se deu antes, durante ou depois
do clarão do tiro? Em que ponto preciso Samuel cruzou o seu infinitésimo
instante de vida? Porque o clarão se estendeu na lembrança, breve,
brevíssima, mas lembrança. O espaço que vai, tão
curto, entre o clarão e a bala rasgando o cérebro, mistura-se
pelo impacto de luz na moça que cantava com a mudança brusca de
cenário, onde Samuel se viu de repente num enleio de cipós na
lama, de onde ele sumiu, voou. Quando ele viu o outro Samuel voando, isso também
se esgarçou, virou pó, ele era os granulozinhos de pó,
da réstia de luz em sua casa na ladeira, e a moça o soprava na
palma da mão. Então se fizeram trevas? Difícil. A passagem
da vida para a morte, supondo existir uma passagem, não foi uma sucessão
de fotogramas com um The End por último. Samuel foi retirado do espetáculo
antes do ato final.
- Mortinho da Silva - um policial o revirou com o pé.