Miro desceu do ônibus na Zeferino Agra, próximo à Igreja
de Santo Antônio. Veio voltando sem pressa, como se nada mais no mundo
houvesse a fazer a não ser passear e fruir o tempo. O ponto estava marcado
para as 17 horas em frente ao Colégio Alfredo Freyre, e, coisa boa, o
seu relógio marcava 16 e 45. Agradável, essa margem. Até
15 minutos tinha o mundo a seu dispor. Passou em frente à Igreja Batista,
sorriu. Ele também um dia houvera sido batista, um menino "embaixador
do rei". Coisa tola, mais boba, ele sorriu, ao lembrar as suas pernas longas
e descarnadas, saídas em calças curtas, recitando salmos de Davi.
O engraçado era o orgulho com que se mostrava, como um possesso, ao recitar
"Junto dos rios da Babilônia, ali nos assentamos a chorar, lembrando-nos
de Sião... Se eu me esquecer de ti, Jerusalém, ao esquecimento
seja entregue a minha direita!" Ele menino entoava os versículos
pelo ritmo, no que não estava de todo errado, mas pelo entusiasmo da
récita os adultos tomavam-no como uma expressão de sentimento,
de ardor. Então ele era saudado como um prodígio, precoce, ele,
um moleque sabiá. Era engraçado. Aquilo lhe chegava como um fato
histórico, tão distante estava do que era agora, aos 22 anos.
Tão engraçado quanto um Me to be, Tu to be, para um cidadão
que lê Shakespeare. Mas nem tanto, considerou. As transformações
que se operaram em meu ser, ele se disse, como toda transformação,
continuou, não ocorreram como o piparote com que Deus pôs a terra
em movimento. O nada, o que em absoluto nada é, não se transforma
no ser. Absurdo, arbitrário, ele se disse, o ser provir do nada. "Eu
sempre discuti isso com João. (Vou pro ponto com João). Absurdo.
Uma semelhante criação não precisa do mundo material. Ela
se satisfaz com o próprio ser. Os teólogos fariam melhor se dissessem
que o ser provém direto da criação, sem porto de escala".
E ao pensar assim, Miro imaginava dedos grandes de mãos grandes gerando
campos elétricos sobre o vácuo. "Pra quê o mundo material?
Pra quê esses pousos no mundo material? A natureza material do homem seria
uma ilusão". E Miro sorriu: "logo, o mundo material não
existe". Atravessou a rua, e, distraído, quase era atropelado por
um ônibus. "Taí, eu já ia voltando direto pro reino
da criação. Porque se descuidou no caminho, Candide perdeu o navio
na baía".
Atinge a esquina da Rua Major Pajuaba, pára. "Que rua absurda,
por que os teólogos não dizem? rua de terra, e casas agarradas
em vila, de um lado e de outro. A criação precisava desse absurdo?"
E retoma o andar. Ou melhor, apruma-se direito, volta-se para a frente, mas
seus passos tateiam, como se distendessem centímetros em milímetros,
para que, caminhando em menores unidades de comprimento, o seu pensamento ganhasse
tempo para se mover. "Sim. Aquilo que eu fazia não era uma simples
exibição de papagaio. O ritmo que me encantava já era um
germe do que na época eu alcançava. 'Sôbolos rios que vão
por Babilônia me achei, onde sentado chorei as lembranças de Sião
e quanto nela passei...'. Entende? aquilo preparava Camões para o meu
ser. 'E o que tomei por vício me faz grau para a virtude'. Isso. Hoje
Camões me fere. Como o compreendo! 'Que, se o fino pensamento só
na tristeza consiste, não tenho medo ao tormento: que morrer de puro
triste, que maior contentamento?' Lindo, isso. Eu passaria a vida toda e todo
o resto dos meus dias a lembrá-lo". Seus olhos marejam. "Mas
o ponto com João. Estou indo". E sem querer, ainda que a rua seja
plana, sente-se entrar num declínio. Apruma o porte. "Como era bom
que eu pudesse voltar atrás. Passaria o resto do meu dia a refazer Camões
dentro de mim. Porra, por que não dispomos de tempo para o nosso próprio
tempo íntimo? Por que o feroz relógio me chama e se impõe?
Açoita-me com os seus ponteiros, implacável. Por que essa ditadura
das coisas práticas, e a sua hora? Roubo o tempo como um criminoso, e
este é um crime vão, porque dele jamais disponho". Isso o
angustia. E essa angústia mais o robustece. Ela é o seu lugar.
"Julga-me a gente toda por perdido...Como é? Porra, como isso é
belo: 'Julga-me a gente toda por perdido...', assim: 'Julga-me a gente toda
por perdido, vendo-me tão entregue a meu cuidado, andar sempre dos homens
apartado, e dos tratos humanos esquecido. Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
e quase que sobre ele ando dobrado, tenho por baixo, rústico, enganado
quem não é com meu mal engrandecido'. Lindo. Assim é a
minha alma". E sente-se bem dessa maneira, assim como um indivíduo
febril sob os lençóis ama o mal de sua febre. Passa pela esquina
da Rua Ubirici. Agasalhado em si mesmo, Miro ergue a cabeça. "Sou
um poeta. Este é o meu ser", ele se diz. A coragem estava acesa.
Miro, como tantos militantes jovens, sofria o impasse de, não achando
o seu lugar na sociedade estabelecida, sentir-se ao mesmo tempo impedido de
abraçar um rumo à margem das convenções. Era como
se o investimento no próprio ser fosse uma opção egoísta,
tomada contra o povo, que de resto vivia sem opção. Na nova ordem
social a expressão do espírito seria coletiva, e isto queria dizer,
em português claro, que os pedreiros seriam também violinistas,
que os chefes de brigadas de assalto, militares, seriam também pintores,
ou filósofos. Se isto assim não era dito, pelo menos assim era
exigido: o exercício do espírito colava-se às atividades
práticas como um adorno. Coronha de fuzil cravejada com versos. As tarefas
da revolução estavam já postas em nível mais alto,
em sólida hierarquia. Miro, para não ser tomado como um poeta,
um inútil, procurava enrijecer os músculos, aprender judô,
dar golpes, defender-se, avançar para o ataque, e, como era natural,
aprender a atirar com o 38. Numa palavra, militarizar-se, para assim
melhor exercer as suas convicções. Conseguira-o, a seu modo. Porque
o que se busca resolver formalmente no intelecto, não se resolve tão
perfeito no corpo, no dia a dia. No seu natural desajeitado, de costas curvas,
descidas sobre as magras pernas deambulatórias, as lições
de ataque e defesa deram-lhe um tapa na espinha, verticalizara-o, as plantas
e os calcanhares ajeitaram-se melhor ao solo, mas o resultado disso foi um andar
de robô que perdeu o seu comando. Ou para ser mais complacente: do seu
natural andar ele fez um caminhar que imita uma conexão de molas tensas.
À expressão dura que ele julgava pôr no olhar, quando se
dirigia a cumprir mais uma tarefa, vendo-se de boné indo para a luta,
apenas ficava o ar de um padre, um religioso, que de boné vai à
missão entre os gentios. E que ele não sustentava, esse bélico
religioso, pelo tempo que julgava sustentar. Agora mesmo esquecia-se do porte
marcial, e esse esquecimento era o seu fortalecer-se, porque voltava ao seu
ser. Estava rijo, forte, pleno, em músculos ausentes dos reflexos do
judô. "Por perdido me toma toda a gente. Por andar assim dobrado
me julga perdido toda a gente, quando tenho por perdido quem não é
desse mal engrandecido. Sou um poeta. Por que não? Este é o meu
tempo, estou no vigor do meu tempo". E seu andar voltava para o natural,
abraçado ao volume da lírica.
"Tenho um ponto com João. Nisso eu tenho que me concentrar. Ponto
com João... Do Alfredo Freyre ganhamos o baixinho Vandilson. Já
é um bom núcleo para um grupo de estudos". Essas coisas ele
se dizia, mas o seu pensamento não estava nelas. Por mais que tentasse
empunhar dados objetivos, o seu desejo - e o desejo não é um pensamento
forte e irresistível? - puxava-o a um caminho ao largo dos frágeis
dados, a tarefa que era necessário fazer, daquela tarde. "Fogo que
arde sem se ver. Ferida que dói e não se sente. É um contentamento
descontente, é dor que desatina sem doer. Meu Deus, meu Deus, por que
essa vontade de chorar? Por que esse choro sem móvel que eu veja, por
quê?" E isto Miro se diz, em voz alta: "Que fantasia é
esta, que presente cada hora ante meus olhos me mostrais?" Então
ele pára, e senta-se no meio-fio da calçada, na esquina da Rua
João Xavier Pedrosa. Acomoda a pasta e se diz, como numa oração
ritual, como um cego pedinte: "Junto de um seco, fero e estéril
monte, inútil e despido, calvo, informe, da natureza em tudo aborrecido,
onde nem ave voa ou fera dorme..." . E mais baixinho: "Aqui estou
eu, meu Deus, e bem sei que Tu me abandonaste. Eu sinto. Responde-me só
isto: por que esse repentino vazio e furor sem nexo no meu peito? Eu não
vou chorar, podes estar certo". E rápido, sôfrego: "Era
bom um papel. Eu preciso de um papel". E como se ouvisse alguém
objetando-lhe, "Precisas é de saber atirar", responde: - "E
de um papel, que é que tem?" E quase gritando: - " Eu sou um
poeta. Eu sou um poeta. Quer ver?" Fecha os olhos e canta, como se ele
próprio se ninasse: "Tudo condenado a nascer, e essa urgência
de terminar o que será realizado de qualquer maneira a seu tempo. Por
que levaria adiante este poema ameaçado? Por que levarei esta vida tão
ameaçada também? O poema ataca de noite os seres desarmados. Com
requintes de perversidade ele se aproveita. Vem equipado, traz nos ombros os
instrumentos da tortura, as palavras que não desistem de entrar à
força no meu sonho" . Abre os olhos. "Tudo condenado a
nascer e eu não quero morrer. Eu não quero morrer no instante
mesmo do meu nascimento". E com lágrimas íntimas, sufocadas:
"eu não quero ser um feto crescido, um feto com consciência,
assaltado e morto no seu florescimento". Ergue-se: "Tudo está
condenado a nascer, percebe? Nascer é uma ordem. O venerável e
o prosaico. O eterno e o transitório. O enterro e o berço. O velho
e o jovem, tudo é rebento. O mundo padece de nascer, como a necessidade
da novilha no momento do amor". E com raiva, e revolta, põe-se de
novo a andar, em reta, lento, esquecido de si, dir-se-ia, quando na verdade
se faz mais presente, com a força da sua lucidez e do seu sentimento:
"Logo agora, porra? Tem nada que me bater à porta, agora? Eu não
quero morrer no vigor dos meus anos. É injusto! Logo agora quando vou
rebentar no meu nascimento?! Eu estou condenado a viver, minha vida não
pode assim ser cortada". Miro se observa com cautela, como se ele estivesse
numa janela, olhando para os lados, espionando-se. "Terás tempo,
rapaz?". Suspira. "Terei tempo? A morte não deve surgir antes
de minha vida acabar, antes que eu encontre a minha vida precisa, para a sua
resolução em paz. A cama feita, a mesa posta, ainda não
tenho. Terei tempo? Deus, se tu existes, filho da puta, saibas que eu ainda
não tive a resposta, faltam-me os braços para melhor agarrar a
minha esperança. Será que a infâmia ataca de noite essa
falta de amor que me toma, será que a covardia ataca essa pureza de terra
virgem viçando em meu peito? Será que a decência do meu
projeto será apunhalado pelas costas? Terei tempo de me virar e refrear
a mão canalha?
- Os filamentos da desordem emaranham minha esperança e misturam todas
as partes de meus poemas desfeitos. São ossos. Tremo. Por que essa tremedeira
me assalta? Eu sei. Filhos da puta, eu quero um tempo para a minha humanidade.
Tudo o que eu quero é um tempo para o meu destino, e ele não pode
dessa maneira ser cortado. Eu não vou cair. Eu não posso cair.
Eu não devo cair. Não!" A Rua Zeferino Agra às 5 da
tarde faz frio, ainda que esteja tão bem iluminada pelo sol da tarde,
porque Miro treme. "Não, isso é um horror. Não pode
haver maior desprezo de Deus, não pode haver maior absurdo para o mundo,
não pode haver maior atestado de que estamos entregues à própria
sorte... Não pode maior prova de que nascemos e vivemos ao azar, ao acaso,
sem rumo e sem razão, do que morrer no instante do nascimento. Isso é
impossível. Isso é absurdo, Miro. Cair, morrer, agora?! Porra,
então esse arrepio em meu braço é inútil? É
vão esse fluido d'alma correndo os fios do meu braço? Esse calor,
esse fogo de humanidade pulsando é feito sangue de porco latejando? Isso
é o horror, não pode ser".
Miro estava, sentia-se, transportado num carro descendo a montanha-russa, que
era a introdução para o trem-fantasma, inclinando-se para esse
mundo primitivo da infância. Sentia isso até com uma certa saudade.
Porque o horror que ele via agora era mais que o medo do que virá, do
tempo da infância. O que ele sentia agora era uma condenação
da sua espécie. O horror na infância era mais razoável,
que saudade! Mas esse horror, aos 22 anos, quando ele sente e ama e faz poema,
quando a sua consciência descobre-se, nasce, e sente a ordem de que tudo
está condenado a nascer, essa felicidade do que poderia vir do seu ser
total, esse amar-se na sua febre, porque descobre que o seu viver de antes não
era, agora, quando se diz, "Como se tivesse a velocidade vazia de um cometa
despovoado eu não posso despedaçar-me. À minha cesta de
papéis chegam os convites de minha morte", esse horror é
maior. Dedos confrangidos de frio, como a dor rasgando as mãos numa queda,
de um corpo minando sangue pelas unhas. "Então esse arrepio no braço
é vão? Que é isso?! Então tanto faz chorar, sofrer
ou ser canalha? Tanto faz ser homem ou ser um abutre? Então tanto faz
matar quanto fazer nascer a pétala? Então tanto faz pisar quanto
plantar a flor? Ó filho da puta, eu quero qualquer coisa que demore a
crescer, mas cresça por dentro, como as criaturas do meu reino desencantado.
Quero tempo, exijo tempo! Ó filho da puta...". E Miro sabe que chamar
Deus de filho da puta ainda é um diálogo de quem busca a razão.
"Ó filho da puta, manda que teus anjos afastem do tempo e de nossas
cabeças a nuvem mórbida que apressa o trigo, que, assim apressado,
murcha e fenece bem amargo". E se encosta ao muro da casa 333, próximo
à Rua do Bom Conselho. "Tudo que levamos a sério torna-se
amargo. Minha angústia ruge em torno. Ainda assim é necessário
prosseguir. O ponto". E retoma cabisbaixo o seu andar.
Àquela altura, às 5 da tarde, Miro estava sendo esperado. Haviam
ido apanhá-lo, no Curso Pernambucano, um dia antes. Por sorte, uma sorte
parca, há um dia atrás ele faltara. O diretor do curso fez a recepção
a seus caçadores, e, apavorado, foi bem prestativo.
- Pois não, pois não... Aqui está a sua ficha de empregado.
É este. Ele está desse jeito. É um rapaz alto e magro.
Isso. Mas tão calmo, eu não sabia...
- É um terrorista, o senhor está entendendo?
- Sim, estou, com certeza. Podem levar a ficha. Aqui no meu curso não
faz falta. Um terrorista!...
- Bico fechado. Ninguém esteve aqui procurando quem quer que seja.
- Está certo. Se ele aparecer, eu aviso os senhores. Contem comigo,
não tenham nenhuma dúvida.
O poeta estava cercado, e descia para o cerco e o circo que a delação
armou. Esse mundo ele desconhecia, e, pior, desse tipo de mundo ele rejeitava
tomar conhecimento. Como pedir a um jovem que se comove, abalado, com "Erros
meus, má fortuna, amor ardente em minha perdição se conjuraram;
os erros e a fortuna sobejaram, que para mim bastava amor somente", como
pedir a um jovem que na gente de sua espécie, com o seu imo peito e gesto,
com olhos e lágrimas e sentimentos como os dele, como pedir que na gente
civilizada ele visse o lado escuro da sobrevivência animal, que, para
livrar a dor da própria pele, entrega um homem humano ao cerco? Como
pedir a quem anda na altura das coisas eternas o reconhecimento do lado escuro
animal? O ver esse animal no mesmo animal que mastiga e inventa poemas, como
pedir que o veja?
"Para mim", ele declarou uma noite, bêbado, "as pessoas
não cagam. As pessoas dignas do amor. Para mim, tais pessoas não
cagam. Elas sofrem um acidente. São acometidas por essa injunção
natural estranha. Percebe? Mais estranha que natural. Para as pessoas que eu
amo, cagar é um ato exterior, não é algo intestino. As
pessoas para mim são uma Serenata Salzburg de Mozart, um andante gracioso.
Eu quero ter com elas a alegria dessa comunhão". E virou-se para
os companheiros de mesa, abraçando-os. - "Como é grande e
boa essa humanidade! O homem tem sentido. Celebremos". Para um golpe assim,
desferido por um semelhante, o poeta nem sequer recebera a insinuação
em pesadelo. Quem rejeita o natural, com maior assombro rejeitará a degradação
da natureza. Ele queria o natural mais alto, mais sublime, quase uma antinatureza,
uma superação absoluta da herança selvagem. No entanto,
estava escrito, e ele não via, estava escrito na reta que o levava para
o encontro em frente ao colégio: "Poeta, terás o teu fundamental
aprendizado de fogo. Material, bem material. Quer queiras, quer não queiras".
E ele veio.
O poeta Miro Rodrigues dos Santos, antes da última esquina, pensou:
"e se um ponto um dia ... se esse ponto houvesse caído? Como seria?
Nada", pensou. Então se disse: "era bom que chovesse",
e olhou para o céu da tarde, azul com manchas de vermelho claro, e desceu
os olhos para a rua, para o fim do seu ponto. "Estranho... cadê o
pipoqueiro, que ficava em frente ao colégio? E o rapaz, aleijado, que
vendia laranjas? Estranho. A frente do colégio ficou calva". E parou.
Olhou o relógio: 17 e 5. "Estou dentro da margem de segurança.
Mas não enxergo João. Ele é pontual". E seus olhos
se arregalaram, enquanto ele andava, lento, como se a paisagem se desvelasse
afinal a seus olhos. "Estudante no portão, cadê? Porra, só
tem carro. Pra quê tantos carros espalhados? E aqueles caras, de cabelo
à escovinha, ao lado da barraca azul, que é isso? A barraca tá
fechando, tão cedo, o velho desce a barraca. É um aviso. Porra,
caiu. O ponto caiu, rapaz!". Então ele não soube se fazia
a volta, rumo à Igreja de Santo Antônio, se atravessava a rua e
enveredava pela Francisco Rabelo, se corria para a frente, pulando o fosso aberto
do portão do Colégio Alfredo Freyre. "Voltar agora é
suspeito. Se cruzo a rua, vou pra cima deles, pro lado deles... Em frente. É
rápido". Baixou a cabeça, pronto a atravessar a tempestade,
fosse de granizos, de pedras, ou de facas, e pisou forte, querendo passos ligeiros,
que voassem sobre o ponto de suplício.
O poeta não teve tempo de ver a contradição entre pisar
forte e ser rápido num mesmo passo. Ele quis ser forte nas coxas e calcanhares
porque esse era o ânimo necessário para não fraquejar. Ele
quis ser rápido para que pudesse atravessar incólume, ele se disse,
quando o seu sentimento mais íntimo era o de uma criança que se
dispõe a enfrentar uma injeção, e só deseja que
a dor seja rápida. O certo é que ele começou a vencer o
espaço do muro do Alfredo Freyre com passos e músculos frouxos.
Ele não queria que suas carnes estivessem assim, trêmulas, de medo,
abaladas, com um frio suor nelas escorrendo. E isto o encheu de raiva contra
si, ele, logo ele, que se desejava tão forte e bravo naquele instante,
e se mostrava tão frágil, a ponto de elevar as mãos tensas
para o céu, como um afogado, buscando fôlego e voz no vórtice
escuro onde afundava. Isto o encheu de raiva. "Que é isso?! Que
é isso, rapaz?", ele dirigiu ao corpo agitado. Então com
raiva ele buscou os seus restos, últimos restos lá num fundo de
sangue e fogo. E, embora com as pernas trêmulas, e por essas pernas, e
contra essas pernas, tateou o seu 38 sob a camisa, para sacá-lo, e levantou
o rosto, procurando a cara dos tiras. Viram-no, descoberto, limpo, inteiro.
Foste insensato, poeta. O rosto que querias mostrar sereno, indiferente, mostrou
uma face só de angústia, de menino que não sabe o que virá
da agulha. Mostraste a face que eles traduziram como a do terrorista procurado.
Quantos, antes, com o teu rosto de menino puro, indefeso, em seus últimos
momentos, eles haviam abatido? Eles conheciam, por experiência do ofício,
a cara do comunista em fuga. Assim como o marginal na multidão conhece
o tira. Assim como o tira na multidão reconhece e pinça a sua
presa. O rosto que querias tranquilo, impassível, tinha um brilho
de terror no fundo dos olhos, de quem estranha, irreprimível, e por isso
num movimento ágil recusa a cara do assassino de comunista. Evitavas,
quando querias enfrentar, a frieza profissional daquelas caras. Inútil.
A tua postura oblíqua, os teus passos indecisos, que se queriam rápidos,
a tua cara ao olhar e se furtar, a tua própria cara do retrato do Curso
Pernambucano, o teu ar de jovem de futuro, tresmalhado, às 17 e 6 no
ponto condenado, eram e foram indícios mais que suficientes.
Ouviste: "Alto!" Ao que deste passadas mais largas. "Alto"
ouviste mais uma vez. E de uma rural, cortando-te a passagem na esquina da Rua
Alegre, viste descerem aqueles sujeitos a quem os teus olhos se furtavam, agora
com armas apontadas. "É pra valer. O ponto caiu", disseste,
a ti, rápido. E tudo dessa vez foi mesmo rápido, precipitando-se
num turbilhão. Deste uma volta para a esquerda, para cortar voltando
em direção à Rua Francisco Rabelo. Quiseste. As coisas
a essa altura eram um querer voltando-se, para antes do tempo e lugar do teu
cerco, mas viste que o real era mais duro e cru que o que poderias imaginar
e compor sobre uma folha de papel em branco. E viste então que o teu
papel teria manchas de sangue. Pelo menos, quando nada, manchas, desejavas,
quando de fato caminhavas para um charco total. Úmido, engolfado, mole,
um papel só sangue. O quanto morrer é diferente, poeta. Querias
música, ética, humanidade, no teu último dia. E tinhas
isto: um fuzilamento prosaico na Rua Zeferino Agra.
Então, desejando entrar no couro de um gato, desejando ser como um gato
entrando no corpo de um gato, como um gato que tivesse uma elasticidade retrátil,
como um gato que pudesse ter uma cabeça que recuada saísse pela
cauda, em outra pele, como se voltando-se dessa maneira tu pudesses de um salto
cair no começo da Zeferino Agra, no ponto do teu ar quando antes tu vinhas,
nesse ímpeto quiseste dar meia-volta, mas ficou a impressão de
que desejavas fugir pela Francisco Rabelo. E a explicação do teu
movimento, do equívoco que deixou, não é muito difícil.
Desejando voltar-se como um gato, no pensamento, deixando teu fantasma no Alfredo
Freyre, pulando em corpo e alma para a Igreja de Santo Antonio, numa curva de
projeção em reta instantânea, de avanço inverso impossível,
teus músculos te empurraram em diagonal, que é a posição
do horizonte que não foi possível, e assim correste para a Francisco
Rabelo. Quiseste. Digamos assim, quiseste, pois já então o teu
querer adaptava-se ao arremedo do teu querer. E a tua vontade, consolada em
arremedo, ainda assim não era mais realizável. O que ficou, pois
foi o que se viu, foi um movimento canhestro. Deste uns saltos de mamífero
pesado sobre o calçamento da rua de paralelepípedos. Em vez de
um gato, nesses saltos, eras um mamífero da água posto em terra,
agitando-se em pé. E isto porque querias voar, fugir, correr, resistir,
ser um homem prático e atirar, tudo ao mesmo tempo.
A solidariedade do público era uma assistência. Viam, apenas viam,
o teu balé de mamífero fora d'água. Como quem vê
um espetáculo a céu aberto, grátis, inusitado. Que te estripassem,
que horror, que te explodissem a cabeça, coisa mais feia, que te esburacassem
do rosto às pernas, terrível, mas continuariam a ver o teu espetáculo,
curiosos, num conhecimento mórbido: quantas eram as tuas vísceras,
como elas se rasgavam pelo bucho, como eram expulsos os teus miolos, a sua cor
e qualidade, e como é que dos buracos se esguicharia o teu sangue. O
sangue é vermelho berrante, quente, de força que não se
estanca? Sim, mas que gritos, que gemidos, como se dá a passagem de jovem
para defunto? sim, vejamos essa parte, a assistência dos populares queria.
- Flama de amor, sereis sempre em mim viva! - gritas, e procuras sacar
do teu revólver. Dás uns saltos desajeitados. És um mamífero
grande. Ainda não te fizeram correr às tontas, em desespero, para
cá e para lá. Ainda não te fizeram um rato, um rato quando
está com o corpo em álcool, tocado de chamas. Tu não sabias.
O rato corre, vai, vem, avança, recua, não segue reto um só
caminho, porque acha que a direção que toma é a responsável
pelo ardor nas costas. Tu não sabias. A natureza do teu conhecimento
e da tua educação jamais apontaram para a dissolução
de gente como um rato no fogo.
No entanto, como àquele rato te fizeram. Este relato não te verá
assim. Digamos então, simplesmente, que na Zeferino Agra foste fuzilado.