A Garganta da Serpente

Urariano Mota

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Assim como no último dia

(Urariano Mota)

Miro desceu do ônibus na Zeferino Agra, próximo à Igreja de Santo Antônio. Veio voltando sem pressa, como se nada mais no mundo houvesse a fazer a não ser passear e fruir o tempo. O ponto estava marcado para as 17 horas em frente ao Colégio Alfredo Freyre, e, coisa boa, o seu relógio marcava 16 e 45. Agradável, essa margem. Até 15 minutos tinha o mundo a seu dispor. Passou em frente à Igreja Batista, sorriu. Ele também um dia houvera sido batista, um menino "embaixador do rei". Coisa tola, mais boba, ele sorriu, ao lembrar as suas pernas longas e descarnadas, saídas em calças curtas, recitando salmos de Davi. O engraçado era o orgulho com que se mostrava, como um possesso, ao recitar "Junto dos rios da Babilônia, ali nos assentamos a chorar, lembrando-nos de Sião... Se eu me esquecer de ti, Jerusalém, ao esquecimento seja entregue a minha direita!" Ele menino entoava os versículos pelo ritmo, no que não estava de todo errado, mas pelo entusiasmo da récita os adultos tomavam-no como uma expressão de sentimento, de ardor. Então ele era saudado como um prodígio, precoce, ele, um moleque sabiá. Era engraçado. Aquilo lhe chegava como um fato histórico, tão distante estava do que era agora, aos 22 anos. Tão engraçado quanto um Me to be, Tu to be, para um cidadão que lê Shakespeare. Mas nem tanto, considerou. As transformações que se operaram em meu ser, ele se disse, como toda transformação, continuou, não ocorreram como o piparote com que Deus pôs a terra em movimento. O nada, o que em absoluto nada é, não se transforma no ser. Absurdo, arbitrário, ele se disse, o ser provir do nada. "Eu sempre discuti isso com João. (Vou pro ponto com João). Absurdo. Uma semelhante criação não precisa do mundo material. Ela se satisfaz com o próprio ser. Os teólogos fariam melhor se dissessem que o ser provém direto da criação, sem porto de escala". E ao pensar assim, Miro imaginava dedos grandes de mãos grandes gerando campos elétricos sobre o vácuo. "Pra quê o mundo material? Pra quê esses pousos no mundo material? A natureza material do homem seria uma ilusão". E Miro sorriu: "logo, o mundo material não existe". Atravessou a rua, e, distraído, quase era atropelado por um ônibus. "Taí, eu já ia voltando direto pro reino da criação. Porque se descuidou no caminho, Candide perdeu o navio na baía".

Atinge a esquina da Rua Major Pajuaba, pára. "Que rua absurda, por que os teólogos não dizem? rua de terra, e casas agarradas em vila, de um lado e de outro. A criação precisava desse absurdo?" E retoma o andar. Ou melhor, apruma-se direito, volta-se para a frente, mas seus passos tateiam, como se distendessem centímetros em milímetros, para que, caminhando em menores unidades de comprimento, o seu pensamento ganhasse tempo para se mover. "Sim. Aquilo que eu fazia não era uma simples exibição de papagaio. O ritmo que me encantava já era um germe do que na época eu alcançava. 'Sôbolos rios que vão por Babilônia me achei, onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei...'. Entende? aquilo preparava Camões para o meu ser. 'E o que tomei por vício me faz grau para a virtude'. Isso. Hoje Camões me fere. Como o compreendo! 'Que, se o fino pensamento só na tristeza consiste, não tenho medo ao tormento: que morrer de puro triste, que maior contentamento?' Lindo, isso. Eu passaria a vida toda e todo o resto dos meus dias a lembrá-lo". Seus olhos marejam. "Mas o ponto com João. Estou indo". E sem querer, ainda que a rua seja plana, sente-se entrar num declínio. Apruma o porte. "Como era bom que eu pudesse voltar atrás. Passaria o resto do meu dia a refazer Camões dentro de mim. Porra, por que não dispomos de tempo para o nosso próprio tempo íntimo? Por que o feroz relógio me chama e se impõe? Açoita-me com os seus ponteiros, implacável. Por que essa ditadura das coisas práticas, e a sua hora? Roubo o tempo como um criminoso, e este é um crime vão, porque dele jamais disponho". Isso o angustia. E essa angústia mais o robustece. Ela é o seu lugar. "Julga-me a gente toda por perdido...Como é? Porra, como isso é belo: 'Julga-me a gente toda por perdido...', assim: 'Julga-me a gente toda por perdido, vendo-me tão entregue a meu cuidado, andar sempre dos homens apartado, e dos tratos humanos esquecido. Mas eu, que tenho o mundo conhecido, e quase que sobre ele ando dobrado, tenho por baixo, rústico, enganado quem não é com meu mal engrandecido'. Lindo. Assim é a minha alma". E sente-se bem dessa maneira, assim como um indivíduo febril sob os lençóis ama o mal de sua febre. Passa pela esquina da Rua Ubirici. Agasalhado em si mesmo, Miro ergue a cabeça. "Sou um poeta. Este é o meu ser", ele se diz. A coragem estava acesa.

Miro, como tantos militantes jovens, sofria o impasse de, não achando o seu lugar na sociedade estabelecida, sentir-se ao mesmo tempo impedido de abraçar um rumo à margem das convenções. Era como se o investimento no próprio ser fosse uma opção egoísta, tomada contra o povo, que de resto vivia sem opção. Na nova ordem social a expressão do espírito seria coletiva, e isto queria dizer, em português claro, que os pedreiros seriam também violinistas, que os chefes de brigadas de assalto, militares, seriam também pintores, ou filósofos. Se isto assim não era dito, pelo menos assim era exigido: o exercício do espírito colava-se às atividades práticas como um adorno. Coronha de fuzil cravejada com versos. As tarefas da revolução estavam já postas em nível mais alto, em sólida hierarquia. Miro, para não ser tomado como um poeta, um inútil, procurava enrijecer os músculos, aprender judô, dar golpes, defender-se, avançar para o ataque, e, como era natural, aprender a atirar com o 38. Numa palavra, militarizar-se, para assim melhor exercer as suas convicções. Conseguira-o, a seu modo. Porque o que se busca resolver formalmente no intelecto, não se resolve tão perfeito no corpo, no dia a dia. No seu natural desajeitado, de costas curvas, descidas sobre as magras pernas deambulatórias, as lições de ataque e defesa deram-lhe um tapa na espinha, verticalizara-o, as plantas e os calcanhares ajeitaram-se melhor ao solo, mas o resultado disso foi um andar de robô que perdeu o seu comando. Ou para ser mais complacente: do seu natural andar ele fez um caminhar que imita uma conexão de molas tensas. À expressão dura que ele julgava pôr no olhar, quando se dirigia a cumprir mais uma tarefa, vendo-se de boné indo para a luta, apenas ficava o ar de um padre, um religioso, que de boné vai à missão entre os gentios. E que ele não sustentava, esse bélico religioso, pelo tempo que julgava sustentar. Agora mesmo esquecia-se do porte marcial, e esse esquecimento era o seu fortalecer-se, porque voltava ao seu ser. Estava rijo, forte, pleno, em músculos ausentes dos reflexos do judô. "Por perdido me toma toda a gente. Por andar assim dobrado me julga perdido toda a gente, quando tenho por perdido quem não é desse mal engrandecido. Sou um poeta. Por que não? Este é o meu tempo, estou no vigor do meu tempo". E seu andar voltava para o natural, abraçado ao volume da lírica.

"Tenho um ponto com João. Nisso eu tenho que me concentrar. Ponto com João... Do Alfredo Freyre ganhamos o baixinho Vandilson. Já é um bom núcleo para um grupo de estudos". Essas coisas ele se dizia, mas o seu pensamento não estava nelas. Por mais que tentasse empunhar dados objetivos, o seu desejo - e o desejo não é um pensamento forte e irresistível? - puxava-o a um caminho ao largo dos frágeis dados, a tarefa que era necessário fazer, daquela tarde. "Fogo que arde sem se ver. Ferida que dói e não se sente. É um contentamento descontente, é dor que desatina sem doer. Meu Deus, meu Deus, por que essa vontade de chorar? Por que esse choro sem móvel que eu veja, por quê?" E isto Miro se diz, em voz alta: "Que fantasia é esta, que presente cada hora ante meus olhos me mostrais?" Então ele pára, e senta-se no meio-fio da calçada, na esquina da Rua João Xavier Pedrosa. Acomoda a pasta e se diz, como numa oração ritual, como um cego pedinte: "Junto de um seco, fero e estéril monte, inútil e despido, calvo, informe, da natureza em tudo aborrecido, onde nem ave voa ou fera dorme..." . E mais baixinho: "Aqui estou eu, meu Deus, e bem sei que Tu me abandonaste. Eu sinto. Responde-me só isto: por que esse repentino vazio e furor sem nexo no meu peito? Eu não vou chorar, podes estar certo". E rápido, sôfrego: "Era bom um papel. Eu preciso de um papel". E como se ouvisse alguém objetando-lhe, "Precisas é de saber atirar", responde: - "E de um papel, que é que tem?" E quase gritando: - " Eu sou um poeta. Eu sou um poeta. Quer ver?" Fecha os olhos e canta, como se ele próprio se ninasse: "Tudo condenado a nascer, e essa urgência de terminar o que será realizado de qualquer maneira a seu tempo. Por que levaria adiante este poema ameaçado? Por que levarei esta vida tão ameaçada também? O poema ataca de noite os seres desarmados. Com requintes de perversidade ele se aproveita. Vem equipado, traz nos ombros os instrumentos da tortura, as palavras que não desistem de entrar à força no meu sonho" . Abre os olhos. "Tudo condenado a nascer e eu não quero morrer. Eu não quero morrer no instante mesmo do meu nascimento". E com lágrimas íntimas, sufocadas: "eu não quero ser um feto crescido, um feto com consciência, assaltado e morto no seu florescimento". Ergue-se: "Tudo está condenado a nascer, percebe? Nascer é uma ordem. O venerável e o prosaico. O eterno e o transitório. O enterro e o berço. O velho e o jovem, tudo é rebento. O mundo padece de nascer, como a necessidade da novilha no momento do amor". E com raiva, e revolta, põe-se de novo a andar, em reta, lento, esquecido de si, dir-se-ia, quando na verdade se faz mais presente, com a força da sua lucidez e do seu sentimento: "Logo agora, porra? Tem nada que me bater à porta, agora? Eu não quero morrer no vigor dos meus anos. É injusto! Logo agora quando vou rebentar no meu nascimento?! Eu estou condenado a viver, minha vida não pode assim ser cortada". Miro se observa com cautela, como se ele estivesse numa janela, olhando para os lados, espionando-se. "Terás tempo, rapaz?". Suspira. "Terei tempo? A morte não deve surgir antes de minha vida acabar, antes que eu encontre a minha vida precisa, para a sua resolução em paz. A cama feita, a mesa posta, ainda não tenho. Terei tempo? Deus, se tu existes, filho da puta, saibas que eu ainda não tive a resposta, faltam-me os braços para melhor agarrar a minha esperança. Será que a infâmia ataca de noite essa falta de amor que me toma, será que a covardia ataca essa pureza de terra virgem viçando em meu peito? Será que a decência do meu projeto será apunhalado pelas costas? Terei tempo de me virar e refrear a mão canalha?

- Os filamentos da desordem emaranham minha esperança e misturam todas as partes de meus poemas desfeitos. São ossos. Tremo. Por que essa tremedeira me assalta? Eu sei. Filhos da puta, eu quero um tempo para a minha humanidade. Tudo o que eu quero é um tempo para o meu destino, e ele não pode dessa maneira ser cortado. Eu não vou cair. Eu não posso cair. Eu não devo cair. Não!" A Rua Zeferino Agra às 5 da tarde faz frio, ainda que esteja tão bem iluminada pelo sol da tarde, porque Miro treme. "Não, isso é um horror. Não pode haver maior desprezo de Deus, não pode haver maior absurdo para o mundo, não pode haver maior atestado de que estamos entregues à própria sorte... Não pode maior prova de que nascemos e vivemos ao azar, ao acaso, sem rumo e sem razão, do que morrer no instante do nascimento. Isso é impossível. Isso é absurdo, Miro. Cair, morrer, agora?! Porra, então esse arrepio em meu braço é inútil? É vão esse fluido d'alma correndo os fios do meu braço? Esse calor, esse fogo de humanidade pulsando é feito sangue de porco latejando? Isso é o horror, não pode ser".

Miro estava, sentia-se, transportado num carro descendo a montanha-russa, que era a introdução para o trem-fantasma, inclinando-se para esse mundo primitivo da infância. Sentia isso até com uma certa saudade. Porque o horror que ele via agora era mais que o medo do que virá, do tempo da infância. O que ele sentia agora era uma condenação da sua espécie. O horror na infância era mais razoável, que saudade! Mas esse horror, aos 22 anos, quando ele sente e ama e faz poema, quando a sua consciência descobre-se, nasce, e sente a ordem de que tudo está condenado a nascer, essa felicidade do que poderia vir do seu ser total, esse amar-se na sua febre, porque descobre que o seu viver de antes não era, agora, quando se diz, "Como se tivesse a velocidade vazia de um cometa despovoado eu não posso despedaçar-me. À minha cesta de papéis chegam os convites de minha morte", esse horror é maior. Dedos confrangidos de frio, como a dor rasgando as mãos numa queda, de um corpo minando sangue pelas unhas. "Então esse arrepio no braço é vão? Que é isso?! Então tanto faz chorar, sofrer ou ser canalha? Tanto faz ser homem ou ser um abutre? Então tanto faz matar quanto fazer nascer a pétala? Então tanto faz pisar quanto plantar a flor? Ó filho da puta, eu quero qualquer coisa que demore a crescer, mas cresça por dentro, como as criaturas do meu reino desencantado. Quero tempo, exijo tempo! Ó filho da puta...". E Miro sabe que chamar Deus de filho da puta ainda é um diálogo de quem busca a razão. "Ó filho da puta, manda que teus anjos afastem do tempo e de nossas cabeças a nuvem mórbida que apressa o trigo, que, assim apressado, murcha e fenece bem amargo". E se encosta ao muro da casa 333, próximo à Rua do Bom Conselho. "Tudo que levamos a sério torna-se amargo. Minha angústia ruge em torno. Ainda assim é necessário prosseguir. O ponto". E retoma cabisbaixo o seu andar.

Àquela altura, às 5 da tarde, Miro estava sendo esperado. Haviam ido apanhá-lo, no Curso Pernambucano, um dia antes. Por sorte, uma sorte parca, há um dia atrás ele faltara. O diretor do curso fez a recepção a seus caçadores, e, apavorado, foi bem prestativo.

- Pois não, pois não... Aqui está a sua ficha de empregado. É este. Ele está desse jeito. É um rapaz alto e magro. Isso. Mas tão calmo, eu não sabia...

- É um terrorista, o senhor está entendendo?

- Sim, estou, com certeza. Podem levar a ficha. Aqui no meu curso não faz falta. Um terrorista!...

- Bico fechado. Ninguém esteve aqui procurando quem quer que seja.

- Está certo. Se ele aparecer, eu aviso os senhores. Contem comigo, não tenham nenhuma dúvida.

O poeta estava cercado, e descia para o cerco e o circo que a delação armou. Esse mundo ele desconhecia, e, pior, desse tipo de mundo ele rejeitava tomar conhecimento. Como pedir a um jovem que se comove, abalado, com "Erros meus, má fortuna, amor ardente em minha perdição se conjuraram; os erros e a fortuna sobejaram, que para mim bastava amor somente", como pedir a um jovem que na gente de sua espécie, com o seu imo peito e gesto, com olhos e lágrimas e sentimentos como os dele, como pedir que na gente civilizada ele visse o lado escuro da sobrevivência animal, que, para livrar a dor da própria pele, entrega um homem humano ao cerco? Como pedir a quem anda na altura das coisas eternas o reconhecimento do lado escuro animal? O ver esse animal no mesmo animal que mastiga e inventa poemas, como pedir que o veja?

"Para mim", ele declarou uma noite, bêbado, "as pessoas não cagam. As pessoas dignas do amor. Para mim, tais pessoas não cagam. Elas sofrem um acidente. São acometidas por essa injunção natural estranha. Percebe? Mais estranha que natural. Para as pessoas que eu amo, cagar é um ato exterior, não é algo intestino. As pessoas para mim são uma Serenata Salzburg de Mozart, um andante gracioso. Eu quero ter com elas a alegria dessa comunhão". E virou-se para os companheiros de mesa, abraçando-os. - "Como é grande e boa essa humanidade! O homem tem sentido. Celebremos". Para um golpe assim, desferido por um semelhante, o poeta nem sequer recebera a insinuação em pesadelo. Quem rejeita o natural, com maior assombro rejeitará a degradação da natureza. Ele queria o natural mais alto, mais sublime, quase uma antinatureza, uma superação absoluta da herança selvagem. No entanto, estava escrito, e ele não via, estava escrito na reta que o levava para o encontro em frente ao colégio: "Poeta, terás o teu fundamental aprendizado de fogo. Material, bem material. Quer queiras, quer não queiras". E ele veio.

O poeta Miro Rodrigues dos Santos, antes da última esquina, pensou: "e se um ponto um dia ... se esse ponto houvesse caído? Como seria? Nada", pensou. Então se disse: "era bom que chovesse", e olhou para o céu da tarde, azul com manchas de vermelho claro, e desceu os olhos para a rua, para o fim do seu ponto. "Estranho... cadê o pipoqueiro, que ficava em frente ao colégio? E o rapaz, aleijado, que vendia laranjas? Estranho. A frente do colégio ficou calva". E parou. Olhou o relógio: 17 e 5. "Estou dentro da margem de segurança. Mas não enxergo João. Ele é pontual". E seus olhos se arregalaram, enquanto ele andava, lento, como se a paisagem se desvelasse afinal a seus olhos. "Estudante no portão, cadê? Porra, só tem carro. Pra quê tantos carros espalhados? E aqueles caras, de cabelo à escovinha, ao lado da barraca azul, que é isso? A barraca tá fechando, tão cedo, o velho desce a barraca. É um aviso. Porra, caiu. O ponto caiu, rapaz!". Então ele não soube se fazia a volta, rumo à Igreja de Santo Antônio, se atravessava a rua e enveredava pela Francisco Rabelo, se corria para a frente, pulando o fosso aberto do portão do Colégio Alfredo Freyre. "Voltar agora é suspeito. Se cruzo a rua, vou pra cima deles, pro lado deles... Em frente. É rápido". Baixou a cabeça, pronto a atravessar a tempestade, fosse de granizos, de pedras, ou de facas, e pisou forte, querendo passos ligeiros, que voassem sobre o ponto de suplício.

O poeta não teve tempo de ver a contradição entre pisar forte e ser rápido num mesmo passo. Ele quis ser forte nas coxas e calcanhares porque esse era o ânimo necessário para não fraquejar. Ele quis ser rápido para que pudesse atravessar incólume, ele se disse, quando o seu sentimento mais íntimo era o de uma criança que se dispõe a enfrentar uma injeção, e só deseja que a dor seja rápida. O certo é que ele começou a vencer o espaço do muro do Alfredo Freyre com passos e músculos frouxos. Ele não queria que suas carnes estivessem assim, trêmulas, de medo, abaladas, com um frio suor nelas escorrendo. E isto o encheu de raiva contra si, ele, logo ele, que se desejava tão forte e bravo naquele instante, e se mostrava tão frágil, a ponto de elevar as mãos tensas para o céu, como um afogado, buscando fôlego e voz no vórtice escuro onde afundava. Isto o encheu de raiva. "Que é isso?! Que é isso, rapaz?", ele dirigiu ao corpo agitado. Então com raiva ele buscou os seus restos, últimos restos lá num fundo de sangue e fogo. E, embora com as pernas trêmulas, e por essas pernas, e contra essas pernas, tateou o seu 38 sob a camisa, para sacá-lo, e levantou o rosto, procurando a cara dos tiras. Viram-no, descoberto, limpo, inteiro.

Foste insensato, poeta. O rosto que querias mostrar sereno, indiferente, mostrou uma face só de angústia, de menino que não sabe o que virá da agulha. Mostraste a face que eles traduziram como a do terrorista procurado. Quantos, antes, com o teu rosto de menino puro, indefeso, em seus últimos momentos, eles haviam abatido? Eles conheciam, por experiência do ofício, a cara do comunista em fuga. Assim como o marginal na multidão conhece o tira. Assim como o tira na multidão reconhece e pinça a sua presa. O rosto que querias tranquilo, impassível, tinha um brilho de terror no fundo dos olhos, de quem estranha, irreprimível, e por isso num movimento ágil recusa a cara do assassino de comunista. Evitavas, quando querias enfrentar, a frieza profissional daquelas caras. Inútil. A tua postura oblíqua, os teus passos indecisos, que se queriam rápidos, a tua cara ao olhar e se furtar, a tua própria cara do retrato do Curso Pernambucano, o teu ar de jovem de futuro, tresmalhado, às 17 e 6 no ponto condenado, eram e foram indícios mais que suficientes.

Ouviste: "Alto!" Ao que deste passadas mais largas. "Alto" ouviste mais uma vez. E de uma rural, cortando-te a passagem na esquina da Rua Alegre, viste descerem aqueles sujeitos a quem os teus olhos se furtavam, agora com armas apontadas. "É pra valer. O ponto caiu", disseste, a ti, rápido. E tudo dessa vez foi mesmo rápido, precipitando-se num turbilhão. Deste uma volta para a esquerda, para cortar voltando em direção à Rua Francisco Rabelo. Quiseste. As coisas a essa altura eram um querer voltando-se, para antes do tempo e lugar do teu cerco, mas viste que o real era mais duro e cru que o que poderias imaginar e compor sobre uma folha de papel em branco. E viste então que o teu papel teria manchas de sangue. Pelo menos, quando nada, manchas, desejavas, quando de fato caminhavas para um charco total. Úmido, engolfado, mole, um papel só sangue. O quanto morrer é diferente, poeta. Querias música, ética, humanidade, no teu último dia. E tinhas isto: um fuzilamento prosaico na Rua Zeferino Agra.

Então, desejando entrar no couro de um gato, desejando ser como um gato entrando no corpo de um gato, como um gato que tivesse uma elasticidade retrátil, como um gato que pudesse ter uma cabeça que recuada saísse pela cauda, em outra pele, como se voltando-se dessa maneira tu pudesses de um salto cair no começo da Zeferino Agra, no ponto do teu ar quando antes tu vinhas, nesse ímpeto quiseste dar meia-volta, mas ficou a impressão de que desejavas fugir pela Francisco Rabelo. E a explicação do teu movimento, do equívoco que deixou, não é muito difícil. Desejando voltar-se como um gato, no pensamento, deixando teu fantasma no Alfredo Freyre, pulando em corpo e alma para a Igreja de Santo Antonio, numa curva de projeção em reta instantânea, de avanço inverso impossível, teus músculos te empurraram em diagonal, que é a posição do horizonte que não foi possível, e assim correste para a Francisco Rabelo. Quiseste. Digamos assim, quiseste, pois já então o teu querer adaptava-se ao arremedo do teu querer. E a tua vontade, consolada em arremedo, ainda assim não era mais realizável. O que ficou, pois foi o que se viu, foi um movimento canhestro. Deste uns saltos de mamífero pesado sobre o calçamento da rua de paralelepípedos. Em vez de um gato, nesses saltos, eras um mamífero da água posto em terra, agitando-se em pé. E isto porque querias voar, fugir, correr, resistir, ser um homem prático e atirar, tudo ao mesmo tempo.

A solidariedade do público era uma assistência. Viam, apenas viam, o teu balé de mamífero fora d'água. Como quem vê um espetáculo a céu aberto, grátis, inusitado. Que te estripassem, que horror, que te explodissem a cabeça, coisa mais feia, que te esburacassem do rosto às pernas, terrível, mas continuariam a ver o teu espetáculo, curiosos, num conhecimento mórbido: quantas eram as tuas vísceras, como elas se rasgavam pelo bucho, como eram expulsos os teus miolos, a sua cor e qualidade, e como é que dos buracos se esguicharia o teu sangue. O sangue é vermelho berrante, quente, de força que não se estanca? Sim, mas que gritos, que gemidos, como se dá a passagem de jovem para defunto? sim, vejamos essa parte, a assistência dos populares queria.

- Flama de amor, sereis sempre em mim viva! - gritas, e procuras sacar do teu revólver. Dás uns saltos desajeitados. És um mamífero grande. Ainda não te fizeram correr às tontas, em desespero, para cá e para lá. Ainda não te fizeram um rato, um rato quando está com o corpo em álcool, tocado de chamas. Tu não sabias. O rato corre, vai, vem, avança, recua, não segue reto um só caminho, porque acha que a direção que toma é a responsável pelo ardor nas costas. Tu não sabias. A natureza do teu conhecimento e da tua educação jamais apontaram para a dissolução de gente como um rato no fogo.

No entanto, como àquele rato te fizeram. Este relato não te verá assim. Digamos então, simplesmente, que na Zeferino Agra foste fuzilado.

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