A Garganta da Serpente
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Vendo através da vidraça

(Umberto A. Geneolle)

O rosto levemente pálido conferia-lhe uma beleza mórbida de filmes noir, realçada pela coloração vermelha dos lábios e o azul esmaecido dos olhos. Piscava em câmara lenta, olhar mortiço como que cansado, que seguia, em horizontal, as pessoas que passavam ao largo, sem notar que estava ali a observá-las.

Eventualmente lançava os olhos para o alto, buscando ver a cor brilhante e viva do céu, e a dança das nuvens a formarem inconstantes formações e desenhos que a imaginação ousava enxergar.

- Podemos continuar, senhorita? -perguntou o motorista, sem mexer um músculo do rosto.

- Siga - ela falou em tom baixo. - Ali à frente, perto daquela banca de frutas, pare e me compre duas maçãs.

- Sim senhora - ele tartamudeou. Engatou a primeira marcha e saiu suave e tranquilamente, olhando o retrovisor. Àquela hora era improvável ver movimentos bruscos no trânsito. Alguns faróis brilhavam e sumiam repentinamente.

Eram seis e meia da manhã de um sábado.

Comprou duas maçãs e as entregou à moça, que as tomou e colocou-as ao seu lado. Com ar de enfado voltou o rosto para o outro lado da calçada a tempo de ver um casal de mendigos remexerem-se no meio dos jornais. Seus olhos, naquele momento, adquiriram certo brilho. - Veja aquelas pessoas! - disse com brandura. - Estão dormindo no relento.

- Sim, estão - o motorista confirmou.

- Certamente hão de ficar doentes, tomando toda essa friagem da noite.

Ele ponderou, meneando a cabeça afirmativamente. - Certamente, senhorita.

- Como pode haver dois lados tão claros e distintos na vida? Digo: eu aqui bem protegida, enfadada e procurando um sentido para tanto conforto, tanta fartura, tanta gente me paparicando o tempo todo....e veja ali, aquelas pessoas, sem nome, maltrapilhas, imundas, enroladas em jornais e totalmente à mercê da doença e da violência!

O motorista ouviu tudo e baixou os olhos. Alguma coisa certamente ocorria em sua cabeça, pensamentos diversos, lembranças, uma série quase inumerável de situações que vinham e iam com a velocidade da luz.

Ela remexeu-se no banco de couro do carro importado, olhou para os lados como que aflita - por que ninguém olha por essas pessoas? - e tocou levemente o ombro do homem à sua frente.

- Senhorita?

- Vá até eles e fale que venham até aqui.

Ele olhou-a com surpresa e perplexidade: - Senhorita? Imagina o que está pedindo? A senhorita sequer os conhece, não sabe quem são, o que são.

- São infelizes e mendigos, isso eu sei.

- Mas também podem ser perigosos - sua voz saia firme porém comedida.

- Talvez sim, talvez não.

- A vida, do modo como a vivem, só pode tê-los transformados em pessoas sofridas e duras, podem ser rancorosas e desconfiadas. A pobreza, nesse caso, senhorita Júlia, ultrapassou os limites da decência e chegaram ao ponto do ultraje como seres humanos.

Ela olhou o motorista, e notou pela primeira vez um olhar doce e um par de olhos brilhantes, que olhavam para ela com convicção, embora várias vezes baixassem em sinal de respeito.

Ela tornou a olhar para o lado do casal de mendigos, e para o motorista que a fitava, aguardando uma resposta, alguma palavra, uma reflexão mais clara.

- Perdoe-me a ousadia, senhorita Júlia, mas é insensatez arriscar-se com pessoas que nunca vimos. A cidade, assim como o mundo de modo geral, vive momentos difíceis de violência e intolerância. Os crimes povoam cada canto de cada lugar. Pessoas morrem como moscas, a vida não tem mais sentido, vale menos que essas duas maçãs que tem ao seu lado.

- Mas elas devem estar sofrendo.....Não percebe?

-Sim, senhorita Júlia. Tanto percebo que recomendo que fique onde está. Deixe-me ir, apenas para não pensar que sou intransigente ou porque esteja desobedecendo uma ordem. Mas a maturidade traz a sabedoria, que me aconselha a tomar algumas precauções. Tranque a porta por dentro. Volto em seguida.

Saiu e foi até o local. Demorou-se alguns minutos, que pareceram uma eternidade. Atravessava a rua e ela percebeu que o casal os olhava, entre curiosos e taciturnos. O motorista tinha um porte atlético e era um homem grande, forte, de ombros largos e mãos compactas, ainda que macias. Era um homem alto, ela notava detalhes há muito ignorados. Usava um quepe de motorista, o paletó aberto denotava um tórax firme, ainda que tivesse aproximadamente sessenta anos. Lembrava, de alguma maneira, o ator americano Jeff Bridges.

Sentou-se ao volante e falou, olhando-a pelo retrovisor:

- Estão ainda sob o efeito da bebida. Cheiram mal e talvez até usem drogas. São marido e mulher, ou vivem amancebados. Mal conseguiam articular palavra, senhorita. O estado é deprimente, posso lhe garantir. Não acredito que tenham lucidez ou ânimo para ouvirem seus conselhos e sequer irão notar seu ar piedoso pelo estado em que vivem.

Ela baixou a cabeça e cobriu o rosto com as mãos. A palidez adquiria contornos de mortalha. O vermelho dos lábios acentuavam um ar doentio, embora seus olhos azuis brilhassem de modo diferente.

- E imagino que o seu pai, o Dr. Frederico, não saiba que a senhorita tem andado por esses lados sombrios da cidade.

Ela confirmou em silêncio. - Ele me mataria, se soubesse - resmungou.

- Que vamos fazer? Ou melhor, o que a senhorita deseja fazer?

Ela olhou novamente em direção ao casal, que voltara ao seu estado de inércia e inoperância, e pediu a ele que fosse embora.

- Acho que é a melhor coisa a fazer. Podemos, se me permitir dizer, olhar a miséria humana em outros lugares.

- Onde? Parece que esse mundo é só miséria....nada mais que isso!

- Há hospitais, asilos, orfanatos....

- Por favor, estou me sentindo pessimamente mal.

- A senhorita está em jejum, lembra-se?

Pegou uma das maçãs e deu-lhe uma mordida.

- Talvez melhore com esta fruta - falou. - Vamos, acho que já vi demais por hoje.

Ele ligou o carro e saiu rapidamente, tomando a direção da região sul da cidade. No contrafluxo do trânsito percebia-se já um tumulto de veículos indo em direção ao centro e aos bairros fabris, ou em direção às marginais que recortam a cidade.

Os rios, que margeiam a cidade, tinham falsamente uma coloração bonita por conta da beleza do céu que se refletia em suas águas sujas e mal cheirosas.

Ela recostou a cabeça no banco e fechou os olhos. O motorista notava-lhe uma falta de cor no rosto mas não podia deixar de admitir que era uma bela mulher que sofria um sofrimento que nem mesmo ela sabia por quê.

Não trocaram mais palavras durante a viagem.

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