A Garganta da Serpente
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O menino da caixinha de fósforos

(Thiago de Medeiros)

Anos mais tarde lhe haviam encontrado caminhando só por uma rua do bairro. Levava um envelope de papel pardo na mão.

- Continua feio o pobre! Mas imaginava que era mais alto - Comentou o marido fitando sua cara

- Continua profundo o pobre! Sim, parece que encolheu - Comentou a esposa fitando seus olhos.

Tudo era verdade. Havia praticamente desaparecido aproximadamente oito anos atrás. Continuava feio. Sim, continuava profundo, e, sim havia encolhido, como não? Acontece com algumas pessoas. O jovem sobre o qual faziam comentários o casal era feio de nascimento, mas, a vida lhe reservava maiores desgraças: sua profundidade de espírito, sua alma apaixonada. É uma verdade triste: ignorância e felicidade caminham de mãos dadas. Ter conhecimento das coisas, desejar, sonhar e querer mais é muito perigoso, mais ainda quando não podemos tê-las. Ninguém demorou em descobrir lhe essa sua peculiaridade. De pequeno seu pai havia comentado:

- É muito calado.

- Porque tem muito a dizer. - Havia respondido a mãe.

Ele mesmo não tardou em se dar conta de sua paixão. Já nos primeiros contatos com o mundo lá fora, nos primeiros anos de escola já havia percebido que possuía algo diferente, que era um pouco mais curioso que as demais pessoas e que sentia as coisas com mais intensidade, e, se não se manifestou sobre isso havia sido porque o mundo acabar de começar.

De sua feiúra demorou mais tempo em descobrir. Talvez porque as meninas sempre demoram um pouco mais em notar a presença masculina, ou, talvez porque foi um longo período de negação até assumir seu destino. No começo de sua adolescência foi apresentado à dura experiência da solidão enquanto seus amigos eram iniciados às primeiras aventuras amorosas. Primeiros beijos, namorar escondido, cartinhas de amor e todo um sem fim de situações que ele jamais experimentaria, como se observasse todo o mundo divertindo-se em um jogo o qual não lhe deixavam participar.

Aí surgiu sua negação. Culpava a tudo. Sua postura, suas roupas e num último estágio de não aceitação culpou a claridade da luz que realçava demais seus traços. Imaginou que poderia ser belo à meia-luz e passou a sair de casa apenas pela noite e em locais pouco iluminados.

Não deu certo. Isso sim, alguém algum dia comentou que tinha olhos bonitos, mas, não tinha. Tinha um olhar triste. É que algumas pessoas não sabem distinguir o belo do triste. - Repara só - Assim é que suas últimas aparições pelo bairro foram daquele menino perambulando sozinho pelas ruas semidesertas e semiescuras, vestido em seu estilo originalmente deselegante, visivelmente desconfiado e ansioso sem saber se seu andar inspirava confiança com sua cabeça baixa para que seu rosto se resumisse a dois olhos tristes que alguém de mau-gosto achou bonito.

Quando nem a meia-luz e nem a completa escuridão foram suficientes para esconder a vergonha que possuía de seu próprio rosto, refugiou-se em sua casa, disposto a observar o mundo através dos telejornais ou das frestas de sua janela. A solidão e o tédio lhe levaram a buscar alternativas para matar o tempo e foi quando decidiu fazer uso de toda a criatividade, paixão e profundidade que lhe eram peculiar para imaginar soluções para as coisas e criar seu mundo perfeito. Comprou lápis, caneta, suco de caju e biscoito de polvilho - que eram seus favoritos - e se pôs a inventar coisas. Um novo aparelho de higiene pessoal, alguns eletrodomésticos e remédios para enfermidades crônicas. Compôs uma canção de amor, um roteiro para cinema alternativo, uma nova política econômica e um comercial de cigarro inteligente. Escreveu ensaios filosóficos, poemas, cartas de amor, cartas suicidas e listas de compras. Elaborava tratados para solucionar os problemas atuais, criava religiões e a cada dia reescrevia uma nova lista das dez melhores canções do mundo.

Seu estômago vazio e sua cabeça sobrecarregada o atordoaram. Caiu no sono e foi um sono muito pesado. Então, as horas passaram sem que ninguém batesse na porta, e os dias passaram sem que o telefone tocasse, e passaram-se oito anos e três meses até que despertasse com a garganta seca. Bebeu água, escreveu algumas anotações mais, guardou tudo num envelope de papel pardo e sentiu curiosidade por ver como se encontrava o mundo lá fora.

Saiu pelas ruas e teve medo, se sentia pequeno. Queria mostrar o conteúdo de seu envelope de papel pardo, mas, todos tinham receio do que poderia haver escrito aquele sujeito feio, inseguro, sem postura, de olhar torto e meio-sorriso.

Não conseguiu relacionar-se. Além de toda a hipocrisia, falta de educação e mesquinharia da sociedade, todas as pessoas se encontravam oito anos e três meses à sua frente. Todo um tempo perdido consigo mesmo. Voltou ao seu quarto, mas, curiosamente sentiu que seu quarto havia aumentado de tamanho.

Parecia imenso. Imenso como o mundo que acabava de humilhá-lo. Sentiu medo e trancou-se em seu guarda roupa junto ao seu envelope de papel pardo que ninguém jamais leria e que poderia mudar o mundo. Chorou. Perdeu a noção do tempo que havia passado ali dentro, mas, passaram-se anos. Logo, surpreendeu-se ao deparar-se como era enorme seu guarda-roupa e que se sentia demasiado exposto ali dentro, assim que foi viver em uma velha caixa de sapato que há anos se encontrava baixo sua cama.

Sua esperança morreu alguns anos antes que ele. Aproximadamente pela época em que afirmam tê-lo visto entrar assustado dentro de uma caixinha de fósforo.

Quando morreu não deparou-se com nenhuma experiência sobrenatural. Não viu nenhum inferno, limbo ou paraíso, simplesmente fechou os olhos pela última vez e não voltou a despertar nunca mais em nenhum lugar e nenhum espaço-tempo. É que sua dor era tão grande que seu espírito encolhia e morria ao mesmo passo que seu corpo, até que um dia desapareceu por completo na escuridão vazia do esquecimento.

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