Outubro se aproxima. Corro ao velho baú empoeirado, esquecido no sótão
da memória. No caminho há um espelho, e nele meu vulto se confunde
com alguma pintura antiga, dando a impressão de visualizar minha imagem
em outros mundos, outras épocas. Me assusto e quase tropeço no
vestido longo - traje da imagem refletida. Os olhos verdes no espelho agora
brilham, cintilam luzes de todas as estrelas do cosmos, apesar de ainda ser
dia. Chego ao baú e, quando o abro, emana uma luz amarelada de dentro,
fazendo com que o ambiente todo se carregue de nostalgia e espanto. Amedrontada,
pego o que preciso e saio correndo sem olhar para trás. Ao passar novamente
pelo espelho, percebo o meu vulto me estendendo a mão, querendo me levar.
Não paro: continuo em disparada.
Separo os utensílios em cima da tábua grossa, na velha cozinha.
Há somente a penumbra e as sombras desenhadas pelas velas. Abro o Grande
Livro da Sabedoria Antiga e faço a lista dos ingredientes, anotado-os
a lápis em papel de pão.
Sou um vulto andando sorrateiramente por entre as ruelas estreitas de paralelepípedos.
Os sons se misturam: uivos estranhos, grunhidos de ferragens, gatos, o salto
pequeno de meu sapato bicudo, a respiração ofegante de todos os
seres que estão à solta.
Não consigo me localizar no tempo - devo ter atravessado alguma porta
secreta da mente, que me trouxe a um passado longínquo de minha alma
eterna.
Consigo todos os itens listados e volto à cozinha lúgubre. Acendo
o fogo - misto de fogão a lenha e lareira - e penduro um negro e pesado
caldeirão na haste apropriada por sobre o fogo. Começa o preparo:
asa de morcego, algumas doses da mistura de gengibre e cravos, loção
do amor, um pouco de pó-de-arroz, uma pitada de pirlimpimpim e outras
tantas coisas inusitadas. Conjuro as palavras mágicas, vigiada de perto
pelas salamandras. Uma luz repentina explode para fora do caldeirão.
Sinto que terminei o meu trabalho. Espanto: me dou conta de que ainda não
é outubro! Desmaio e acordo apaixonada.
Bruxo: virou o feitiço contra mim!
(28/09/03)