Larissa era uma moça adorável, bem dotada, cuidadosamente educada,
dum espírito delicado. Nascera numa pequena cidade do interior, de costumes
conservadores e católicos enraizados. Sua vida era um romance inacabado.
Viajava por todo o globo, dos lugares mais longínquos aos paraísos
fictícios, debruçada nas inebriantes leituras de maiorais literatos.
Não havia autor renomado que não tomasse conhecimento. Fez da
leitura sua mais fiel companheira, ao experimentar através dela todas
as emoções que se poderia nomear e também as inomináveis.
Mas nem tudo era um mar de rosas. Muitos não compreendiam o que prendia
por horas a fio uma moça jovem e bem-nutrida enfurnada em seu quarto.
Ganhara o estigma de "melancólica burguesinha", embora conseguisse
conquistar com razoável facilidade a simpatia dos concidadãos.
Todos tentavam, em vão, persuadi-la a se divertir com as outras garotas,
a participar dos eventos esportivos, a curtir brincadeiras e momentos alegres.
Contudo a jovem não partilhava os interesses das colegas de escola, os
quais considerava fúteis e superficiais. Também não se
enturmava nos esportes, só participava quando era expressamente obrigada,
sob pena de não poder continuar os estudos. Não possuía,
de qualquer forma, habilidades atléticas. Usava óculos, estatura
mediana, andar acanhado, movimentos por demais delicados e desastrados para
pretender um mínimo rendimento em atividades físicas.
Era, sobretudo, uma visionária. Fantasiava seu mundo ideal, utopias românticas,
seu brilhantismo extenuante. Não a atraía a realidade concreta.
Gostava de caminhadas sem destino certo, observando o movimento da cidade como
se estivesse muito distante dali. Por vezes parava e ficava escutando o canto
dum passarinho, totalmente absorvida por ele, deixando sua mente leve divagando
nos rodopios e voando para onde quer que fosse o passarinho... Em sua face,
apenas permanecia uma excêntrica tranquilidade e um semissorriso
sutil. Seu interior era sempre um mistério.
Pressa, palpitações, balbúrdia de pensamentos invadiam
sua calma mente todas as vezes que seu pai chegava com um presente fascinante,
fosse um original de Virgínia Woolf, James Joyce ou Victor Hugo. Não
lhe agradava as traduções. Aprendera a ler em francês, inglês
e espanhol, embora nunca tivesse tido aulas de línguas. Sonhava tornar-se,
um dia, escritora e, assim, talvez imortal em sua obra.
Porém, o destino não lhe fora tão gentil. Ainda na precoce
idade de cinco anos, fora obrigada a presenciar a lenta consunção
corporal que levou a alma de sua preciosa mãe. Desde então, o
sorriso e o ânimo vital desaparecera do rosto de seu pai. No entanto,
não se pode dizer que Larissa tenha tido uma criação infeliz.
Sendo muito jovem e de coração um tanto versátil, não
pareceu ser um terrível obstáculo transferir seu amor filial para
a velha Naná, vetusta governanta da casa. Ali morava antes mesmo do nascimento
de Larissa. O que seria dos Souza sem a velha e bondosa Naná?
Senhora dos cuidados caprichosos e essenciais do lar, não deixava nenhum
desajuste cotidiano atrapalhar a harmonia do andamento doméstico da família.
Naná não conhecera seus pais. Abandonada numa cesta de pão
à porta da tradicional geração Souza precedente, foi ali
que encontrou um aconchego e um trabalho decente, que gerou em sua alma o sentimento
límpido de uma imensa gratidão, dando para se notar em sua inteira
dedicação de corpo, suor e coração àquele
lar e àquela família.
Larissa e Naná construíram ao longo dos anos um vínculo
emocional e confidencial forte, conciliando afetos de natureza maternal aos
de amizade fraternal. Essa relação foi imprescindível para
o desenvolvimento físico e psicológico da jovem, já que
não pôde contar com uma presença vivificadora e confortante
da parte do pai. Este parecia deixar-se abismar cada vez mais em sua prisão
pretérito-emocional. Nunca conseguiu se conformar à injusta perda
de uma paixão tão honesta e recíproca à sua pura
visão.
Seu Antônio tornou-se mais velho que o esperado para sua idade. Taciturno,
ensimesmado, perdido na rotina cíclica e habitual inevitável para
se manter vivo. Seguia seu ritual singular e discreto cheio de automatismos
mundanos no dia a dia; comer, dormir, responder monossilabicamente a quaisquer
perguntas, ir à missa todas as manhãs rezar para a alma de Isadora
- que Deus a tenha e abençoe; assim como o sol nasce e desaparece a cada
doze horas.
Ardente e voluptuosa sensação do êxtase exultado e incriado
pela jovem mente de férteis ramos da cognição imaginária
invade o sono daquela alma até então pura e infantilizada, seja
por disciplina ou sua natureza insocializada.
- Larissa, abra esta porta agora e diga o que está acontecendo ou terei
que chamar um de seus tios para quebrá-la. E tenha certeza de que nunca
mais verá uma fechadura ao seu alcance enquanto morar nesta casa. São
mais de nove horas e a diretora da escola já ligou três vezes.
Vamos, não estou brincando, moça!
Abrir a porta, devo abrir a porta, não quero abrir a porta, vou abrir
a porta, não posso abrir a p... AAhhhhhhhhhhhh!!! O buraco negro indescritível
cobria-a da cabeça aos pés com estalidos parecidos aos daqueles
fogos de festa junina, músculos remexiam-se com autonomia, pequeninos
clarões finos e sempre adornados por cores fosforescentes vinham e iam,
deixando aquela ardência intermitente entre as pálpebras e as camadas
mais fundas e sensíveis dos olhos. A ubiquidade do surdo som aterrorizante
parecia ter energia infinita e onipotente, fazendo-se descartável e ridícula
qualquer tentativa de controlá-lo.
Assim Larissa percebia a luta no interior de sua alma, semiviva semimorta,
sentindo à exaustão quão vã seria uma iniciativa
de representação mundana da nulidade contraposta ao poder daquele
momento singular, desorientado e constrangedor em que foi jogada à sua
revelia, subindo à mente parcelas de algum pensamento do tipo "este
corpo é meu? Está vivo? O que é vida? Quem sou? Morri?
O que é morte?", porém sem nenhuma precisão ou clareza
- tudo era cansaço imenso, como jamais vivido até em então.
Bam! O tio arrombou a porta e seus olhos, ao varrer o quarto, encontraram os
olhos arregalados da menina que pareciam à iminência de pular para
fora do rosto.