Onde eu faço um ato terrorista, pessoas se mostram punks e um milagre
da ciência é revelado.
Natal. 1997
Enquanto a contagem regressiva continua, eu desejo pela primeira vez que toda
aquela bobagem de ano novo funcione. O próximo ano não pode ser
pior do que esse. É quase como se o inferno tivesse me escolhido para
ser objeto de alguma forma de tortura pior do que a morte.
Renascimento é a maior das mentiras vendida pelos católicos, mas
no momento ela possivelmente seria a minha maior esperança.
Hoje pela manhã fui ao shopping. Enquanto me espremia no meio da multidão,
pensava em quantos animais foram mortos para fazer a alegria desses cristãos.
Quantas árvores sofreram o último golpe e foram derrubadas em
nome do feliz-natal. Luzes espalhadas pela cidade, me faz crer que a humanidade
há muito tempo parou de se importar com qualquer coisa que não
seja consigo mesmo. O egoísmo das espécies seria um nome mais
adequado para a obra de Darwin.
No meio dessa multidão fico enjoado com o respirar obsceno das senhoras
obesas que planejam a infinidade de comidas da ceia de natal. Sinto terror nas
risadas de felicidade das crianças que cobiçam o último
brinquedo criado pela máquina consumista.
O natal é uma doença. Uma doença social.
Enquanto eu procuro o lugar mais adequado para mim, observo as crianças
em cima do palco. Todas meticulosamente arrumadas com suas roupinhas vermelhas
e asas de anjos, preparando-se para mais um golpe no meu espírito. Conduzidas
por um adulto sorridente, elas não sabem o que fazem ali. Não
tem consciência de que são apenas instrumentos manipulados por
uma mão firme antidemocrática chamada governo. Elas não
sabem que são instrumentos bonitinhos recrutados pelos senhores do natal
para continuar girando a roda impulsiva do consumo.
Tudo o que eles querem é que elas fiquem ali fazendo qualquer coisa.
O ar bonitinho que elas carregam garante que as senhoras gastem quantias exorbitantes
com presentes para seus netos.
Quando as crianças começam a cantar o som invade meu cérebro
me punindo por todos os meus pecados. Posso sentir a dor se espalhando tentando
me fazer desistir. Não posso me entregar às lamúrias da
besta. Eu tenho que me controlar e prosseguir minha luta contra o natal. Desferir
o golpe no coração do papai-noel.
Controlando-me tiro um cigarro do bolso e o acendo.
Ponho um sorriso forçado na boca e faço de conta que está
tudo bem, que estar ali é uma coisa que desejo. Não posso me demonstrar
alheio. Elas não podem desconfiar que estou fazendo isso de propósito.
Alguns segundos depois, a fumaça do meu cigarro já penetrou muitos
daqueles pulmões que estão ali. A maioria tem um acesso de tosse
e já não presta atenção naquele coral infantil.
Tenho que me controlar para não parecer muito feliz. Tenho que dosar
a alegria na medida certa da idiotice do natal.
É quase um êxtase notar aqueles olhares de ódio em minha
direção. Muitos me recriminam por minhas atitudes e nem reparam
que eu nem trago o cigarro, só estou segurando ele enquanto a fumaça
se espalha por toda a multidão. Alguns vão embora e poucos prestam
atenção no pífio desempenho daquelas crianças. É
tudo fácil demais.
Fico ali até o segurança me abordar. Ele ameaçadoramente
ordena que eu apague o cigarro ou terá que me expulsar dali.
Eu sorrio e pela primeira vez puxo a fumaça. Jogo o cigarro no chão
deixando uma mancha preta no chão. Antes de sair solto a fumaça
no rosto do segurança. Não podia ir embora sem um tumulto.
Enquanto o segurança me arrasta a força até a saída,
eu grito que todos são antidemocratas e que aquele não é
o verdadeiro espírito do natal. Que antes do consumismo sem sentido existiam
pessoas que realmente se importavam e que agora não passavam de hipócritas
baratos.
Pronto. Consegui arruinar mais um coral. Mesmo que aquelas crianças continuem
o seu monótono cantar, eu serei o assunto da noite. Aonde quer que aquelas
pessoas vão, lembrarão de minha mensagem e se sentirão
incomodadas. Mais um ponto contra o natal.
Eu chego no serviço atrasado. Uma falha justificável diante dos
meus atos nobres. Mas não creio que meu chefe reconheceria o brilhantismo
do meu trabalho. Por ironia eu sou o maior empregado do capitalismo. Meu serviço
é descobrir uma forma de empurrar o maior número de produtos,
que as pessoas não precisam, direto para suas gargantas. Refrigerantes,
sanduíches, cerveja e todo o lixo de uma geração que busca
acabar com a individualidade do ser humano.
Não somos mais indivíduos brilhantes, somos lixos que caminham
em seus tênis Nike. Porcos que vestem a pele de outro animal buscando
um status inútil. Estamos cobertos de sangue e violência e nem
nos importamos.
- Atrasado de novo - Danila a secretária me fala. Ela não precisa
me lembrar do que já sei. Nunca entendi essa necessidade da humanidade
de falar o inútil.
- Você sabe como é o natal - respondo tentando parecer o mais cansado
possível, o segredo é deixar eles imaginarem o que quiserem -
O que eu perdi?
- Reunião na sala doze.
Eu entro na sala doze e todos se viram para ver quem é o atrasado. As
pessoas adoram repudiar em cima da falha do fracasso alheio, talvez essa seja
uma das necessidades humana.
Reunião com um cliente novo. Eu detesto essas reuniões de apresentação.
Geralmente eles nos mostram um produto novo e quase sempre inútil. Quem
se interessa por um porta-bananas com o formato de uma banana? Ou um anãozinho
que assobia quando alguém passa na sua frente.
O homem está fazendo um discurso completamente enfadonho. Eu me sento
e logo sou transportado para um mundo alternativo onde as coisas são
melhores do que aqui. Em um mundo perfeito eu seria o governante supremo, decidindo
a vida de milhões de pessoas. Eu brincaria com elas assim como elas brincam
comigo, seria minha vingança. A vingança suprema.
Finalmente o cliente anuncia o produto me tirando de meu mundo perfeito.
- Para provar que ele não é perigoso eu vou soltá-lo dentro
dessa sala cheia de pessoas - diz o homem.
Escuto um certo ar de pânico ao meu redor enquanto eu tento descobrir
do que se trata tudo aquilo. O homem abre uma portinhola e uma criatura sai
de dentro.
É um ser estranho. Verde, do tamanho de um cachorro. O simples olhar
para aquela criatura me deixa completamente enojado. Por algum motivo as pessoas
saem dali com medo enquanto a criatura lambe seu próprio rabo.
O único a continuar ali sou eu. A criatura anda até mim e cheira
minha perna. Ela me olha com olhar completamente patético.
- Que porra é essa? - pergunto. Olhar aquilo me deixa completamente chocado.
Aparentemente um grupo de cientistas clonaram o Tiranossauro Rex e o deixaram
do tamanho de um cachorro. Eles querem agora inserir aquela criatura no mercado.
A criatura começa a lamber minha calça deixando uma baba esverdeada
em mim. Completamente nauseado saio dali. Volto até a secretária
e me apoio em sua mesa. Ainda chocado.
- E então, que tal o produto? - ela me pergunta com um ar doce na voz.
- Terrível, simplesmente terrível - falo e não caio na
risada. Dou risada contra meu próprio sonho de ser Deus. Sonhar com o
poder divino é o pior dos pecados da sociedade. Somos todos insignificantes,
mas não precisamos de Deus para nos tornarmos maiores.
- Bem - ela me fala sorrindo - vai ter um coral natalino de crianças
perto da minha casa, você quer ir?
- É uma proposta irrecusável Danila, mas me acabaram os cigarros.
Ela se levanta guardando um monte de papel na sua gaveta, ela pega sua bolsa
e cruza seus braços no meu.
- Não se preocupa. Eu consegui um perfume especial. E por especial eu
quero dizer que ele cheira tão mal quanto o aborto de uma anta gorda.
Eu sorrio. Sim, o natal é uma bela época.