A Garganta da Serpente
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Um conto de natal

(Thom Ficman)

Onde eu faço um ato terrorista, pessoas se mostram punks e um milagre da ciência é revelado.



Natal. 1997

Enquanto a contagem regressiva continua, eu desejo pela primeira vez que toda aquela bobagem de ano novo funcione. O próximo ano não pode ser pior do que esse. É quase como se o inferno tivesse me escolhido para ser objeto de alguma forma de tortura pior do que a morte.

Renascimento é a maior das mentiras vendida pelos católicos, mas no momento ela possivelmente seria a minha maior esperança.

Hoje pela manhã fui ao shopping. Enquanto me espremia no meio da multidão, pensava em quantos animais foram mortos para fazer a alegria desses cristãos. Quantas árvores sofreram o último golpe e foram derrubadas em nome do feliz-natal. Luzes espalhadas pela cidade, me faz crer que a humanidade há muito tempo parou de se importar com qualquer coisa que não seja consigo mesmo. O egoísmo das espécies seria um nome mais adequado para a obra de Darwin.

No meio dessa multidão fico enjoado com o respirar obsceno das senhoras obesas que planejam a infinidade de comidas da ceia de natal. Sinto terror nas risadas de felicidade das crianças que cobiçam o último brinquedo criado pela máquina consumista.

O natal é uma doença. Uma doença social.

Enquanto eu procuro o lugar mais adequado para mim, observo as crianças em cima do palco. Todas meticulosamente arrumadas com suas roupinhas vermelhas e asas de anjos, preparando-se para mais um golpe no meu espírito. Conduzidas por um adulto sorridente, elas não sabem o que fazem ali. Não tem consciência de que são apenas instrumentos manipulados por uma mão firme antidemocrática chamada governo. Elas não sabem que são instrumentos bonitinhos recrutados pelos senhores do natal para continuar girando a roda impulsiva do consumo.

Tudo o que eles querem é que elas fiquem ali fazendo qualquer coisa. O ar bonitinho que elas carregam garante que as senhoras gastem quantias exorbitantes com presentes para seus netos.

Quando as crianças começam a cantar o som invade meu cérebro me punindo por todos os meus pecados. Posso sentir a dor se espalhando tentando me fazer desistir. Não posso me entregar às lamúrias da besta. Eu tenho que me controlar e prosseguir minha luta contra o natal. Desferir o golpe no coração do papai-noel.

Controlando-me tiro um cigarro do bolso e o acendo.

Ponho um sorriso forçado na boca e faço de conta que está tudo bem, que estar ali é uma coisa que desejo. Não posso me demonstrar alheio. Elas não podem desconfiar que estou fazendo isso de propósito.

Alguns segundos depois, a fumaça do meu cigarro já penetrou muitos daqueles pulmões que estão ali. A maioria tem um acesso de tosse e já não presta atenção naquele coral infantil. Tenho que me controlar para não parecer muito feliz. Tenho que dosar a alegria na medida certa da idiotice do natal.

É quase um êxtase notar aqueles olhares de ódio em minha direção. Muitos me recriminam por minhas atitudes e nem reparam que eu nem trago o cigarro, só estou segurando ele enquanto a fumaça se espalha por toda a multidão. Alguns vão embora e poucos prestam atenção no pífio desempenho daquelas crianças. É tudo fácil demais.

Fico ali até o segurança me abordar. Ele ameaçadoramente ordena que eu apague o cigarro ou terá que me expulsar dali.

Eu sorrio e pela primeira vez puxo a fumaça. Jogo o cigarro no chão deixando uma mancha preta no chão. Antes de sair solto a fumaça no rosto do segurança. Não podia ir embora sem um tumulto.

Enquanto o segurança me arrasta a força até a saída, eu grito que todos são antidemocratas e que aquele não é o verdadeiro espírito do natal. Que antes do consumismo sem sentido existiam pessoas que realmente se importavam e que agora não passavam de hipócritas baratos.

Pronto. Consegui arruinar mais um coral. Mesmo que aquelas crianças continuem o seu monótono cantar, eu serei o assunto da noite. Aonde quer que aquelas pessoas vão, lembrarão de minha mensagem e se sentirão incomodadas. Mais um ponto contra o natal.

Eu chego no serviço atrasado. Uma falha justificável diante dos meus atos nobres. Mas não creio que meu chefe reconheceria o brilhantismo do meu trabalho. Por ironia eu sou o maior empregado do capitalismo. Meu serviço é descobrir uma forma de empurrar o maior número de produtos, que as pessoas não precisam, direto para suas gargantas. Refrigerantes, sanduíches, cerveja e todo o lixo de uma geração que busca acabar com a individualidade do ser humano.

Não somos mais indivíduos brilhantes, somos lixos que caminham em seus tênis Nike. Porcos que vestem a pele de outro animal buscando um status inútil. Estamos cobertos de sangue e violência e nem nos importamos.

- Atrasado de novo - Danila a secretária me fala. Ela não precisa me lembrar do que já sei. Nunca entendi essa necessidade da humanidade de falar o inútil.

- Você sabe como é o natal - respondo tentando parecer o mais cansado possível, o segredo é deixar eles imaginarem o que quiserem - O que eu perdi?

- Reunião na sala doze.

Eu entro na sala doze e todos se viram para ver quem é o atrasado. As pessoas adoram repudiar em cima da falha do fracasso alheio, talvez essa seja uma das necessidades humana.

Reunião com um cliente novo. Eu detesto essas reuniões de apresentação. Geralmente eles nos mostram um produto novo e quase sempre inútil. Quem se interessa por um porta-bananas com o formato de uma banana? Ou um anãozinho que assobia quando alguém passa na sua frente.

O homem está fazendo um discurso completamente enfadonho. Eu me sento e logo sou transportado para um mundo alternativo onde as coisas são melhores do que aqui. Em um mundo perfeito eu seria o governante supremo, decidindo a vida de milhões de pessoas. Eu brincaria com elas assim como elas brincam comigo, seria minha vingança. A vingança suprema.

Finalmente o cliente anuncia o produto me tirando de meu mundo perfeito.

- Para provar que ele não é perigoso eu vou soltá-lo dentro dessa sala cheia de pessoas - diz o homem.

Escuto um certo ar de pânico ao meu redor enquanto eu tento descobrir do que se trata tudo aquilo. O homem abre uma portinhola e uma criatura sai de dentro.

É um ser estranho. Verde, do tamanho de um cachorro. O simples olhar para aquela criatura me deixa completamente enojado. Por algum motivo as pessoas saem dali com medo enquanto a criatura lambe seu próprio rabo.

O único a continuar ali sou eu. A criatura anda até mim e cheira minha perna. Ela me olha com olhar completamente patético.

- Que porra é essa? - pergunto. Olhar aquilo me deixa completamente chocado.

Aparentemente um grupo de cientistas clonaram o Tiranossauro Rex e o deixaram do tamanho de um cachorro. Eles querem agora inserir aquela criatura no mercado.

A criatura começa a lamber minha calça deixando uma baba esverdeada em mim. Completamente nauseado saio dali. Volto até a secretária e me apoio em sua mesa. Ainda chocado.

- E então, que tal o produto? - ela me pergunta com um ar doce na voz.

- Terrível, simplesmente terrível - falo e não caio na risada. Dou risada contra meu próprio sonho de ser Deus. Sonhar com o poder divino é o pior dos pecados da sociedade. Somos todos insignificantes, mas não precisamos de Deus para nos tornarmos maiores.

- Bem - ela me fala sorrindo - vai ter um coral natalino de crianças perto da minha casa, você quer ir?

- É uma proposta irrecusável Danila, mas me acabaram os cigarros.

Ela se levanta guardando um monte de papel na sua gaveta, ela pega sua bolsa e cruza seus braços no meu.

- Não se preocupa. Eu consegui um perfume especial. E por especial eu quero dizer que ele cheira tão mal quanto o aborto de uma anta gorda.

Eu sorrio. Sim, o natal é uma bela época.

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