A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Vozes

(Tia Caroleta)

Na noite em que entrei em seu quarto, ela dormia docemente. O peitinho subia em leves e rítmicos movimentos. Os cabelos loiros, da cor do trigo, se espalhavam pelo travesseiro. A pele alva como o luar era ainda mais empalidecida pela luz fraca do abajur. Sua mãozinha, pequena como a de um anjo, segurava a mão do ursinho de pelúcia ao seu lado. As lagrimas corriam pela minha face.

"Vamos, mate-a!" - me disse a voz.

- Eu não posso! É só uma criança… um doce anjo…

"Ela já te tirou um monte de coisa, ela ira te tirar o seu marido, ela trará a desgraça para sua vida, ela te deixara na miséria…"

- É uma criança!

"Isso é o que você pensa. Vamos, mate-a. Ou quer que ela faça isso com você? Ela ira te matar com a mesma frieza que mataria uma mosca."

- Uma criança… - meus olhos já estavam inchados de tanto chorar. E a outra voz então falou:

"Ela vai sim te matar… aqueles olhos azuis dela, ela ira olhar fixamente para você e então te matara…"

- Minha filha… minha criança…

"Mate-a! A culpa é dela. Toda dela. Aquele aborto não foi espontâneo, foi ela que bateu em seu ventre em quanto dormia."

- Ela não fez isso… - minha voz havia se tornado mais dura.

"Fez sim, e ainda riu. Vamos, mate-a! MATE-A!"

Fui tomada pelo impulso. Avencei sobre ela com a faca… nova… afiada. Cortei-lhe a jugular. Foi quando cai em mim, da besteira que havia feito.

Pobre da minha filha. Abriu os olhinhos assustada. Eu a vi sufocando, gemendo. Seus olhinhos azuis suplicavam por ajuda.

- Mã-aã-e - disse ela com a voz fraquinha.

Descontrolada, a abracei fortemente. Meu anjinho, minha flor, meu raio de luz. O que eu havia feito? Minhas lagrimas se misturavam ao sangue que saia de seu pescossinho. A senti apertando minha blusa. As vozes riam.

-SAIAM, SAIAM DAQUI, SAIAM DA MINHA VIDA!

Eu peguei minha filha no colo e sentei-me no chão.

- Desculpe a mamãe… desculpe…

Ela também chorava. Suas ultimas palavrinhas rasgaram meu coração.

- Dês-ss-culpe ma-m-mmãe… eu na-aa-ao quer-ia ter pego sua ma-q-q-quiag-gem sem sua ordem… desc-c-pe…

Eu chorei ainda mais. Pobre criança. O que eu havia feito com a minha doce filha?! Apertei ainda mais seu corpinho frio e mais pálido ainda. Sua mãozinha ainda agarrava minha blusa.

Naquele dia, meu marido havia viajado. Quando voltou dois dias depois, me encontrou ainda na mesma posição, sentada, com o corpinho de nossa filha agarrado a mim. Seu cadáver já não apresentava os traços angelicais de antes.

Hoje, ninguém me visita. Passo os dias sozinha nesse quarto branco… esse branco irritante que me lembra tanto o pálido rostinho da minha filhinha. A solidão é minha amiga.

Gostaria que suspendessem minha medicação. Talvez assim, as vozes voltariam e eu enfim, teria companhia para conversar…

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br