A Garganta da Serpente
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Sonho de Laura

(Sibelle)

Num certo momento, começou a ouvir música. Vozes doces, femininas, sereias. Sempre imaginou que esse canto só afetasse aos homens. Devia ter um lado aventureiro bem forte. Nesse estado de sofrimento, a melodia vai levando a alma para lugares tranquilos, familiares, felizes. Vêm à mente aquele sol morno de domingo, passeios de bicicleta, mãos dadas, risos. Mas conforme o canto continua o sentimento muda, as vozes tornam-se frias e a angústia daquele estado de impotência aumenta. O mar é tão escuro, turvo, parece mais um poço sem fundo. Vertigem. Laura já passou por isso. A consciência desperta e com a energia que ainda resta, grita. Tal qual o recém-nascido que não sabe o que faz, berra. Quando se cala não há mais som algum. Vitória temporária.

Passado algum tempo, voltam as dores. Sede, a língua áspera, os lábios rachados, boca e garganta secas; fome, o estômago contorcido e o corpo em brasa, curvado, queimado de sol e de sal. Cada terminação nervosa é sentida. Acupuntura às avessas. Começa a questionar para que serve tudo isso? Essa teimosia em viver quando tudo o mais parece perdido. Talvez porque não faça sentido algum a vida terminar assim. Qual a graça? A vida foi boa (satisfatória). Mas terminar assim? Que história besta! Recusa-se.

No horizonte, enfim, surge a solução tão esperada. Bem longe, uma linha tênue que vem aos poucos se aproximando e tornando-se cada vez mais nítida. Começa a soprar uma brisa bem leve e fresca. Nada mais a incomoda. Laura põe-se em pé. De olhos fechados, sente o cheiro do mar. Enche o peito de ar, de coragem e vai, pausadamente, abrindo os braços. A brisa torna-se cada vez mais forte. Ventania. É preciso manter o equilíbrio, pois ainda não é hora. Nesse instante, porém, já pode ter noção da dimensão daquilo. Enorme, sobrenatural, quebrando pelas beiradas, Laura contempla extasiada uma espetacular onda que cresce e se aproxima. Abre os braços o máximo que pode porque sente que ele a quer. Braços descomunais se fechando sobre aquele ser que se achava tão insignificante. Agora se sente plena, gigante. A força é tanta que consegue erguê-la. Precisa manter os pés firmes porque ainda não é hora. Os braços vão bem abertos, como se fossem asas. Sempre sonhou em voar. Mas não cansavam de dizer que isso era coisa de moleque. Passou a sentar-se mais comportadamente, as mãos sobre o joelho, feito moça. Agora, estava livre afinal. Estrondo. O som ensurdecedor fez seu coração disparar. O corpo inteiro estremeceu. A onda arrebentou e naquela fração de segundo, seus joelhos dobraram.

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