A Garganta da Serpente
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A chacina

(Silvio Silva)

Tive que voltar ao local do crime uma semana depois. Ficava numa rua quase deserta, sem asfalto, num loteamento miserável, do outro lado da cidade. O lugar me pareceu ainda mais desolado de dia do que de noite. Uma semana antes, talvez pela falta de iluminação pública, eu não tinha reparado que nenhuma casa ali estava terminada e que para cada construção erguida, em ponto de laje, havia um ou dois terrenos vazios, cobertos de mato. Passei por uma fileira de vans estacionadas e por uma escola estadual, de cujos muros sujos de barro saiam, na altura de uma criança, umas ervas selvagens que terminavam num botão minúsculo de flor amarela. Chovia fraco desde manhã. Dobrei a rua depois de um campo de futebol lamacento e reduzi a velocidade, pois a cratera que quase engolira meu carro alguns dias antes estava de novo diante de mim, ainda maior. As pessoas estavam dentro de casa ou em outro lugar. Vi um homem barbudo puxando uma carroça de entulhos e não vi mais ninguém. Passei pelo mesmo terreno protegido por uma cerca de bambu na frente do qual estacionara da outra vez e verifiquei que o bar, logo adiante, estava aberto. Cheguei ao meu destino.

Entrei no salão suficientemente grande para ter uma mesa de bilhar e duas mesinhas dobráveis. As paredes tinham recebido uma demão recente de cal e o piso era de cimento queimado. Atrás do balcão simples ficavam as prateleiras quase vazias. Do lado direito de quem da rua olha para dentro, ao fundo, havia uma geladeira doméstica quebrada, sem a porta.

Faltavam quinze para as três da tarde. Não havia nenhuma pessoa para atender, provavelmente por não haver quem se interessasse, àquele horário, em comprar as poucas mercadorias expostas. Era um tipo de comércio bem comum na periferia, guarnecido quase exclusivamente por bebidas alcoólicas e as marcas de refrigerantes de segunda linha, mais baratas. Fora isso, apenas um ou outro enlatado, um ou outro produto de limpeza, meia dúzia de pacotes de biscoitos e três ou quatro recipientes de plástico com os doces de vinte centavos, para estragar os dentes da molecada. Não encontrei perfurações nas paredes, pois certamente alguém já as havia encoberto com massa corrida. Fechei os olhos e percebi que ainda tinha guardado no fundo do ouvido o alarido frenético dos palavrões, dos disparos, das súplicas e gritos de dor, mas já não distingui na memória nenhum rosto completo. O olhar de pânico que me vinha à mente tanto podia ser de um como de todos os que morreram da outra vez em que estive naquele lugar, assim como o sangue que me perseguira até a soleira da porta não tinha identidade. Lembrei que seguira com os olhos, em sentido contrário, o fio de líquido vermelho e minha visão chegara ao volume largado no chão da coisa de quatro cabeças e quatro bocas paralisadas na última sílaba da palavra Deus, com pés descalços, pés de chinelo, o par de tênis branco e pés de sandália com unhas pintadas de escarlate.

Passei a mão no rosto para dissipar uma sensação ruim. Bati palmas na direção da porta dos fundos do bar, mas um dos dois rapazes que haviam atravessado o terreno baldio ao lado e estavam agora de cócoras na calçada em frente, sem fazer nada, inclusive sem conversarem um com o outro, veio me atender. Pedi uma pinga com limão e fiquei molhando os lábios, esperando a hora certa de falar. No entanto, ele tomou a iniciativa e abriu o bico sem ser perguntado. Disse, com uma dificuldade angustiante, pois era gago e estava visivelmente nervoso, que não tinha visto nada, não sabia de nada e estava apenas tomando conta do lugar até aparecer alguém que provasse deter o direito de sucessão sobre o negócio.

Eu conhecia muito bem este tipo de parasita. Eles chegam mal o rabecão manobra para ir embora e trazem de casa meio quilo de argamassa roubada de alguma construção vizinha, uma vassoura e um balde. E vão ficando, sem arriscar mais melhorias do que tapar os buracos de bala e jogar água sanitária nas nódoas de sangue das paredes. Assim fazem cócegas na sorte para ver se ela aguenta ser tão sisuda daqui por diante quanto foi até hoje. Rezam para não vir ninguém reclamar o ponto e, enquanto isso, vão tirando dele o lucro que for possível.

Eu conhecia tipos como esse de outros carnavais e não quis me aborrecer com mais aquele exemplar. Virei a bebida num gole só, joguei uma nota de um real sobre o balcão e saí para o lamaçal da rua, mais vazio do que nunca. Procurei com o olhar o outro rapaz, mas ele havia desaparecido. Entrei no carro e dei a meia volta para colocá-lo na direção de onde eu tinha vindo. Comecei a avançar, mas, para a minha surpresa, a cratera havia crescido o suficiente para impedir a minha passagem, pois agora tomava toda a largura da rua. Era uma erosão em carne viva. Observei as camadas de terra arenosa se soltando das laterais do buraco e caindo com ruído na poça d'água marrom que completava o fundo. Senti um medo infantil de ficar preso para sempre naquele lugar. Cogitei fugir a pé, mesmo sabendo que para uma pessoa como eu seria praticamente impossível abandonar naquele fim de mundo um automóvel que não me pertencia e sim ao erário público. Olhei no espelho retrovisor procurando por uma rota alternativa que eu sabia não existir e vi o gago e seu amigo chapinhando descalços na lama, caminhando em minha direção: o primeiro com uma enxada de pedreiro nas mãos e o outro com um feixe de tábuas debaixo do braço.

Eles não aceitaram a minha ajuda e insistiram para que eu não descesse do carro. Em poucos minutos, entupiram boa parte da cratera com pedras e com a própria terra da rua, construindo um declive sobre o qual depuseram criteriosamente as tábuas para fazer um piso precário. Então me mandaram avançar. Fiz o golpe de vista e atravessei em primeira marcha aquela espécie de ponte, sem deixar os pneus resvalarem para dentro do buraco remanescente. Olhei pelo espelho e vi os dois sorrindo, se despedindo de mim com acenos de mão. Nem sei dizer se chegaram a ver o meu gesto de agradecimento, pois me distrai com uma chamada em minha frequência de rádio e quando voltei a olhar os dois caminhavam na direção do bar, de costas para mim.

Dobrei a esquina, deixando o campo de futebol para trás. Deparei em seguida com uma pequena multidão de crianças e adolescentes que se aglomeravam diante do portão da escola estadual. Quase todos usavam moletons azuis. Foi estranho encontrar aquele tumulto de jovens barulhentos num lugar tão ermo, em frente a um prédio que podia parecer abandonado. Metade da aglomeração se dispersava lentamente e a outra metade não se assustou com o meu veículo e condescendeu, com o olhar zombeteiro, em dar um passo atrás somente quando o carro estava a um palmo de seus corpos. Continuei avançando bem devagar. Passei por eles e logo depois por uma fileira de vans estacionadas. Havia cessado a chuva, mas uma cortina de névoa impedia a gente de ver com clareza dez metros além. Alcancei o asfalto da estrada estreita e esburacada que liga as periferias de dois municípios da região metropolitana. E fugi pela segunda vez. De mãos vazias.

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