Tive que voltar ao local do crime uma semana depois. Ficava numa rua quase
deserta, sem asfalto, num loteamento miserável, do outro lado da cidade.
O lugar me pareceu ainda mais desolado de dia do que de noite. Uma semana antes,
talvez pela falta de iluminação pública, eu não
tinha reparado que nenhuma casa ali estava terminada e que para cada construção
erguida, em ponto de laje, havia um ou dois terrenos vazios, cobertos de mato.
Passei por uma fileira de vans estacionadas e por uma escola estadual, de cujos
muros sujos de barro saiam, na altura de uma criança, umas ervas selvagens
que terminavam num botão minúsculo de flor amarela. Chovia fraco
desde manhã. Dobrei a rua depois de um campo de futebol lamacento e reduzi
a velocidade, pois a cratera que quase engolira meu carro alguns dias antes
estava de novo diante de mim, ainda maior. As pessoas estavam dentro de casa
ou em outro lugar. Vi um homem barbudo puxando uma carroça de entulhos
e não vi mais ninguém. Passei pelo mesmo terreno protegido por
uma cerca de bambu na frente do qual estacionara da outra vez e verifiquei que
o bar, logo adiante, estava aberto. Cheguei ao meu destino.
Entrei no salão suficientemente grande para ter uma mesa de bilhar e
duas mesinhas dobráveis. As paredes tinham recebido uma demão
recente de cal e o piso era de cimento queimado. Atrás do balcão
simples ficavam as prateleiras quase vazias. Do lado direito de quem da rua
olha para dentro, ao fundo, havia uma geladeira doméstica quebrada, sem
a porta.
Faltavam quinze para as três da tarde. Não havia nenhuma pessoa
para atender, provavelmente por não haver quem se interessasse, àquele
horário, em comprar as poucas mercadorias expostas. Era um tipo de comércio
bem comum na periferia, guarnecido quase exclusivamente por bebidas alcoólicas
e as marcas de refrigerantes de segunda linha, mais baratas. Fora isso, apenas
um ou outro enlatado, um ou outro produto de limpeza, meia dúzia de pacotes
de biscoitos e três ou quatro recipientes de plástico com os doces
de vinte centavos, para estragar os dentes da molecada. Não encontrei
perfurações nas paredes, pois certamente alguém já
as havia encoberto com massa corrida. Fechei os olhos e percebi que ainda tinha
guardado no fundo do ouvido o alarido frenético dos palavrões,
dos disparos, das súplicas e gritos de dor, mas já não
distingui na memória nenhum rosto completo. O olhar de pânico que
me vinha à mente tanto podia ser de um como de todos os que morreram
da outra vez em que estive naquele lugar, assim como o sangue que me perseguira
até a soleira da porta não tinha identidade. Lembrei que seguira
com os olhos, em sentido contrário, o fio de líquido vermelho
e minha visão chegara ao volume largado no chão da coisa de quatro
cabeças e quatro bocas paralisadas na última sílaba da
palavra Deus, com pés descalços, pés de chinelo, o par
de tênis branco e pés de sandália com unhas pintadas de
escarlate.
Passei a mão no rosto para dissipar uma sensação ruim.
Bati palmas na direção da porta dos fundos do bar, mas um dos
dois rapazes que haviam atravessado o terreno baldio ao lado e estavam agora
de cócoras na calçada em frente, sem fazer nada, inclusive sem
conversarem um com o outro, veio me atender. Pedi uma pinga com limão
e fiquei molhando os lábios, esperando a hora certa de falar. No entanto,
ele tomou a iniciativa e abriu o bico sem ser perguntado. Disse, com uma dificuldade
angustiante, pois era gago e estava visivelmente nervoso, que não tinha
visto nada, não sabia de nada e estava apenas tomando conta do lugar
até aparecer alguém que provasse deter o direito de sucessão
sobre o negócio.
Eu conhecia muito bem este tipo de parasita. Eles chegam mal o rabecão
manobra para ir embora e trazem de casa meio quilo de argamassa roubada de alguma
construção vizinha, uma vassoura e um balde. E vão ficando,
sem arriscar mais melhorias do que tapar os buracos de bala e jogar água
sanitária nas nódoas de sangue das paredes. Assim fazem cócegas
na sorte para ver se ela aguenta ser tão sisuda daqui por diante
quanto foi até hoje. Rezam para não vir ninguém reclamar
o ponto e, enquanto isso, vão tirando dele o lucro que for possível.
Eu conhecia tipos como esse de outros carnavais e não quis me aborrecer
com mais aquele exemplar. Virei a bebida num gole só, joguei uma nota
de um real sobre o balcão e saí para o lamaçal da rua,
mais vazio do que nunca. Procurei com o olhar o outro rapaz, mas ele havia desaparecido.
Entrei no carro e dei a meia volta para colocá-lo na direção
de onde eu tinha vindo. Comecei a avançar, mas, para a minha surpresa,
a cratera havia crescido o suficiente para impedir a minha passagem, pois agora
tomava toda a largura da rua. Era uma erosão em carne viva. Observei
as camadas de terra arenosa se soltando das laterais do buraco e caindo com
ruído na poça d'água marrom que completava o fundo. Senti
um medo infantil de ficar preso para sempre naquele lugar. Cogitei fugir a pé,
mesmo sabendo que para uma pessoa como eu seria praticamente impossível
abandonar naquele fim de mundo um automóvel que não me pertencia
e sim ao erário público. Olhei no espelho retrovisor procurando
por uma rota alternativa que eu sabia não existir e vi o gago e seu amigo
chapinhando descalços na lama, caminhando em minha direção:
o primeiro com uma enxada de pedreiro nas mãos e o outro com um feixe
de tábuas debaixo do braço.
Eles não aceitaram a minha ajuda e insistiram para que eu não
descesse do carro. Em poucos minutos, entupiram boa parte da cratera com pedras
e com a própria terra da rua, construindo um declive sobre o qual depuseram
criteriosamente as tábuas para fazer um piso precário. Então
me mandaram avançar. Fiz o golpe de vista e atravessei em primeira marcha
aquela espécie de ponte, sem deixar os pneus resvalarem para dentro do
buraco remanescente. Olhei pelo espelho e vi os dois sorrindo, se despedindo
de mim com acenos de mão. Nem sei dizer se chegaram a ver o meu gesto
de agradecimento, pois me distrai com uma chamada em minha frequência
de rádio e quando voltei a olhar os dois caminhavam na direção
do bar, de costas para mim.
Dobrei a esquina, deixando o campo de futebol para trás. Deparei em seguida
com uma pequena multidão de crianças e adolescentes que se aglomeravam
diante do portão da escola estadual. Quase todos usavam moletons azuis.
Foi estranho encontrar aquele tumulto de jovens barulhentos num lugar tão
ermo, em frente a um prédio que podia parecer abandonado. Metade da aglomeração
se dispersava lentamente e a outra metade não se assustou com o meu veículo
e condescendeu, com o olhar zombeteiro, em dar um passo atrás somente
quando o carro estava a um palmo de seus corpos. Continuei avançando
bem devagar. Passei por eles e logo depois por uma fileira de vans estacionadas.
Havia cessado a chuva, mas uma cortina de névoa impedia a gente de ver
com clareza dez metros além. Alcancei o asfalto da estrada estreita e
esburacada que liga as periferias de dois municípios da região
metropolitana. E fugi pela segunda vez. De mãos vazias.