A Garganta da Serpente
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O acidente

(Silvio Silva)

Nas primeiras horas do dia em que completou catorze anos, a Mariana acordou numa maca de pronto-socorro e teve a impressão de ter visto sua mãe na paralela, andando na direção oposta, junto à parede do corredor, mas quando tentou acompanhá-la com os olhos para ter certeza, percebeu que seu pescoço estava preso, imobilizado por um colar cervical. Ela apalpou a parte macia do objeto e foi exercendo aos poucos mais e mais pressão sobre ele, até sentir que a coisa em seu pescoço tinha o miolo duro como o gesso. Em pé, ao lado da maca, estava um desconhecido bem apessoado, de meia idade, que lhe dizia umas frases em tom de leve repreensão, mas o zumzumzum nos seus ouvidos a impedia de distinguir o sentido das palavras. Instintivamente, a menina tocou de leve, com as pontas dos dedos, toda a extensão do rosto e passou a estudar a própria mão direita, que estava desimpedida do soro. Esboçou um sorriso tonto ao se reconhecer na superfície enrugada da palma, no mapa das finas veias azuis e nos restos de esmalte das unhas. Lembrou que não tinha entrado na primeira aula, de manhã, pois uma amiga a convidara a irem de carro tomar sol às margens de uma represa nas cercanias da cidade, na companhia de dois rapazes do noturno, que haviam arranjado emprestado o automóvel parado do outro lado da rua, em frente ao portão da escola. Depois dessa lembrança ela fechou os olhos com força, para se livrar da sensação angustiante de ter estado morta desde então, e teve o primeiro dos vários flashs que a ajudaram a se situar no tempo e no espaço, embora não chegasse nunca a compreender aquele dia por inteiro.

Com as pálpebras trêmulas de tão cerradas, ela viu uma trilha entre arbustos cheios de espinhos e quatro pessoas deitadas no mato rasteiro, dividindo um cigarro de maconha diante das pequenas ilhas de lixo flutuantes que boiavam próximas aos seus pés; e viu a si mesma vomitando atrás do esqueleto de uma Kombi carbonizada; e uma garrafa de vodka passando de mão em mão; e o tronco áspero de uma árvore contra a qual era empurrada, de pernas abertas, com as calças caídas até os joelhos, tentando resistir ao convencimento brutal, arfante, nervoso como uma risada de pânico, que lhe agarrava por trás; e reviu a expressão de intensa curiosidade no rosto da sua amiga, que a convidara para o passeio e com quem tinha a impressão de estar falando numa língua estranha para as duas; então se viu, como se seus olhos estivessem na cara de outra pessoa a cinco metros de distância, limpando com a mão um fio de sangue na parte interna das coxas e erguendo a calcinha e a calça, apoiada ainda na mesma árvore, para não perder o equilíbrio.

Os outros flashs eram mais vivos e ligeiros: gargalhadas sonoras dentro do carro; uma estrada escura ladeada por pinheiros; luzes que eram um ponto no horizonte, mas cresciam rapidamente e ficavam gigantes, de par em par; os gritos frenéticos das pessoas; os berros dilacerantes dos freios e a zoada metálica do mundo rodando e batendo sem controle, até emudecer numa pancada só.

Ela me disse que passou uma semana com a tala de gesso no pescoço e a retirou por conta própria, numa manhã abafada, com o auxílio de um alicate, por não suportar tanta coceira. Nunca mais voltou àquele pronto-socorro. Não se sentiu abalada quando soube da morte de um dos rapazes do noturno que fizera parte do passeio à represa, dois dias depois do acidente, em consequência do traumatismo craniano de que fora vítima. Atribuiu esse vazio de sentimentos com relação a ele a uma mágoa recente, mas não quis falar do assunto com ninguém. Uma amiga dela, que a ajudou com o gesso e estava passando uns dias em sua casa, contou-lhe a versão que ouviu na delegacia, segundo a qual o carro onde a Mariana viajava na volta do passeio batera de raspão, em alta velocidade, na lateral de um ônibus que vinha em sentido contrário, o que fizera o motorista, o tal amigo do noturno, perder a direção, atravessar a pista rodopiando e acabar com o carro num poste de energia elétrica na outra calçada. O casal no banco de trás sofrera apenas ferimentos leves. A moça levara cinco pontos na testa, acima da sobrancelha esquerda, e o namorado dela ficara em observação numa sala contígua à emergência, até se restabelecer da confusão mental que o médico de plantão considerou aceitável, para as circunstâncias. A mãe da Mariana tinha sido chamada às pressas e chegara ao pronto-socorro menos de uma hora depois da filha, graças à carona oferecida por um colega de trabalho, que arrastava uma asa para a mulher e ficou o tempo todo ao lado da maca, numa época em que qualquer narrador sem imaginação me descreveria como homem de meia idade, bem apessoado.

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