I parte - Dartagnan
"Esta sou eu, depois de saciar a fome. Vou lhe contar como escolhi minha
última vítima. Antes, porém, o porque. Sou uma vampira
e digo isso simples assim. Sou uma vampira. E esta frase levou séculos
para ser pronunciada sem culpa, conto-lhe o percurso dela para chegar limpa
até minha boca suja de sangue. Por isso nomeio essa primeira parte Dartagnan,
como na história, este é o momento onde o quarto elemento de uma
trilogia entra para dar sustentação aos outros três pontos
que formará o triângulo e o elevará a um plano onde poderá
ser compreendido. No princípio houve o caos. Tive uma vida pacata e impecável
antes de tornar-me vampira. Professora, boa filha, bonita, saudável,
futuro feliz iminente. Uma noite, quando voltava da escola onde lecionava, ele
me surpreendeu, arrastou-me para um beco, sugou-me a jugular, e, um segundo
antes de morrer, peguntei-lhe:
-Porquê?
-Porque o que?
-Porque eu?
-Porque deu fome.
-Só isso? Vai me matar porque está com fome?
-Sim.
Comecei a me debater, injusto morrer sem causa nobre. Nunca fiz mal a ninguém,
não iria morrer como um frango. Eu não tinha nenhuma chance, estava
muito fraca, e ele perguntou:
-Só agora resolveu lutar?
-É.
Fui irônica. Era o que eu podia.
-O que faz?
-Sou professora.
-O que ensina?
-História.
Ele gargalhou, chegou a engasgar de tanta graça. Enfureci-me. Mordeu-se
no pulso e mandou-me beber. Eu sabia o que ele pretendia. Resolvi que o mataria
a qualquer preço.O bebi. Sangue de vampiro tem gosto de merda. E isto
faz sentido. É como não se sentir atraído pelo irmão
ou pai. Vampirizar um vampiro é incestuoso. A moral transformou o instinto
de preservação da espécie em incesto. Quando se bebe o
sangue de um vampiro, antes de se tornar um, é como sair da vagina da
mãe, não é pecado, mas é ruim, como deve ser nascer.
Não me lembro. Quando terminei, ele disse:
-Vá e aprenda História, Professora!
Soou-me bíblico, foi-se e nunca mais o vi, o beco cheirava morte. Hoje
todos os vampiros me conhecem como Professora. Não lembro meu nome. Não
importa. O que se seguiu, e vou resumir em poucas palavras, é clássico
entre vampiros novatos e para mim durou décadas. Para muitos duram. A
princípio recusei-me a matar humanos, sofri muito, a fome é um
pesadelo ao avesso. Suguei cabras, vacas, cachorros, ratos e era como se eu
vivesse metade. Não satisfaz, não alimenta, frustra. Por décadas
fui amarga, lamentei minha sorte. Até o dia em que me deparei com um
estuprador enquanto caçava ratos num canto qualquer. Olhou-me e veio
para cima de mim, tentando me atacar. Pedi para que parasse, ele me bateu no
rosto. Minha primeira vítima humana era estuprador. Queria lhe dizer
que passei a me alimentar de gente ruim para livrar o mundo do mal. Quando comecei
a matar pessoas, eu disse. O motivo maior foi o prazer, foi a fome. Saciar desejo
é bom. Nas décadas seguintes fui uma espécie de mórbida
heroína, lia sobre os crimes hediondos e sem solução e
passava dias investigando até encontrar o assassino, estuprador ou corrupto
que praticara a atrocidade. Às vezes, a busca durava meses, e eu sentia
fome. Era como eu santificava meu crime. Esta parte da história termina
aqui, como Dartagnan, sem sentido e com aparência de engodo. Mas é
este seu papel . Ele não faz parte do trio. Sua função
é dar suporte aos três mosqueteiros, torná-los uno. É
o ponto fora do triângulo, o que o torna tridimensional. O que se segue
seria, seguindo a analogia, Portos, Athos e Aramis. Sempre imaginei o significado
desses nomes. Mais pelo seu som do que pela etimologia das palavras, para mim,
Aramis seria o começo, pois foi o papel que lhe coube depois de eu atribuir
a Athos, o meio, por soar como ato, ação e a Portos o fim, o porto,
a chegada.
II parte - Do Diamante e Do Grafite.
Por três meses segui a pista de um assassino, que sistematicamente no
sétimo dia dos últimos onze meses sequestrava, molestava
e degolava meninos entre oito e dez anos no subúrbio da cidade. Os corpos
apareciam no dia seguinte, sempre nos terrenos baldios onde as crianças
gostavam de brincar à tarde. Tomei conhecimento do crime quando descobri
e matei o assassino de uma jovem freira. O sujeito pintava seu apartamento quando
o encontrei e tinha jornais espalhados pelo chão. Ao cair morto seu dedo
médio apontou a foto do nono menino encontrado degolado . Pareceu-me
um sinal. Eu matava quando tinha certeza da culpa, às vezes ficava semanas
ou meses sem comer, o que me levava a um estado mental que considerava uma conexão
com o divino, hoje duvido. Persegui o rastro do psicopata pelos guetos. As poucas
pistas deixadas por ele só eram percebidas por meus sentidos vampiros,
pela intuição de vidas inteiras passadas no submundo e pela demência
da fome, a polícia estava perdida e a população assustada.
Finalmente os vestígios apontaram um único alvo. Era o quinto
dia do mês e a fome me torturava. Fiquei tão excitada em descobrir
o assassino que me assustei. Pela primeira vez questionei minha sanidade e temi
estar, inconscientemente, forjando provas contra o homem. Tentei esperar mais
um dia. Talvez conseguisse depois de um dia de sono, uma noite de meditação.
Durante todo o dia tive pesadelos. Acordei, assim que o sol se pôs, desorientada.
Num impulso segui até a rua onde morava o assassino, o desmaiei num golpe
e levei-o para minha casa. A fome me causava leves alucinações
e uma certa fraqueza emocional, resolvi amarrá-lo e deitar-me um pouco
antes de matá-lo. Quando acordou do desmaio despertou-me ao se debater,
ao me ver fez menção de gritar e num piscar de olhos eu estava
em pé, a seu lado, caninos em evidência e com a mão estrangulando-o,
mais um pouco e o seu pescoço partiria entre meus dedos. Olhou-me, não
como quem tem medo ou implora vida, mas como quem compreende sua desvantagem
e prudentemente não reage. Soltei-o. A adrenalina do ataque fez-me salivar.
Tive que concentrar-me para não atacá-lo naquele momento. Voltei
ao divã. Manteve-se quieto. Depois de um tempo começou a examinar
o ambiente. Rapidamente percebeu que não era uma vítima ao acaso.
Tinha recortes de jornais com manchetes falando do "Assassino do sétimo
dia" por todo escritório e outros falando de crimes não solucionados
também. Foi ele quem quebrou o silêncio:
- O que você quer?
- Fazer justiça.
- Você é uma vampira.
- E daí?
- Vai me matar, sugar meu sangue?
- Sim.
- Para fazer justiça?
- Isso.
- Porque eu?
- Caço os animais que a polícia não consegue encontrar.
- Eles sabem?
- A polícia? Não. Mas existe um boato sobre um justiceiro, não
se empenham muito em me prender.
- Você não parece bem.
Calei-me.
- Está doente?
Insistiu.
- Estou com fome.
- A quanto tempo não se alimenta?
- Três meses.
- Porque?
- Estava te caçando.
- Só se alimenta de sangue de "animais"?
- Sim.
- Então você é igual a mim.
- Vá se ferrar!!!
- Como você só mato quando tenho fome.
- Você é um animal.
- Você também.
Pulei do divã no pescoço dele. Segurei sua língua com a
mão enquanto sugava seu sangue. Durante dias mantive seu corpo em minha
casa. Ele morreu pouco antes de eu lhe sugar todo o sangue, sufocado com minha
mão dentro de sua garganta. Eu o odiava. Seus olhos me seguiam por todo
escritório. Depois de um tempo seu corpo em decomposição
impedia-o de me seguir com o olhar. Foi a primeira vítima que eu levei
para minha casa, talvez por isso eu o odiava. Ele falou comigo e eu o odiava.
Senti falta de ouvi-lo. Não. De falar-lhe. Queria dizer-lhe que eu não
era um animal , que eu lutava contra minha fome, e só a saciava com pessoas,
que, como ele, era cruel e nociva, e, que, de alguma forma eu beneficiava o
coletivo, o coletivo que nunca me acolheria, mesmo assim eu protegia aquela
cidade e seus cidadãos de bem. Ele fez de propósito, fez com que
eu o matasse antes de me defender, morreu achando que eu era igual a ele. Não,
isso não fazia sentido. Queria ter me controlado e mostrado a ele que
eu não era um animal. Eu não era. Eu não era. Eu sou. Deixei
seu corpo degolado em um terreno baldio. Eu sou igual a ele, não posso
matar minha espécie. O que fazer? Tenho fome. Deus abandonou-me. Eu tentei
lutar contra a fome, ele devia ter tentado também. Talvez. Somos raças
diferentes, dentro da mesma espécie. Cada um tem uma fome. Benditos os
que vivem em paz com sua fome! Não há fome sagrada. A fome é
assassina. Preciso alimentar-me do sangue dos que sentem menos fome. Do homem
de bem. Seu sangue é puro. Ou quase. Talvez eu me cure. Tomei esta decisão
quando voltava para casa. Tinha que descobrir uma forma de encontrar homens
de bem. Antes iria descansar um pouco.
III parte - O reino, o poder e a glória para sempre...
Da mesma forma em que escolhia meus animais passei a escolher meus homens de
bem. Pelo jornal. Em pouco tempo descobri que pessoas de bem não aparecem
em jornais. Escolhia algum condecorado e passava a investigar sua vida. Muitos
eram animais. Passei então a viver na cidade. Arranjei documentos falsos
e comecei a lecionar história da arte em escolas noturnas. Foi uma época
tranquila. Sempre fui cuidadosa em esconder meus crimes e dessa forma pude
viver cerca de 15 anos em cada lugar. Tive amigos, mas sempre fui solitária.
Alimentar-me de pessoas de bem não me curou, mas gostei da vida tranquila
que isso me proporcionava. Ainda me incomodava o fato de matar, por isso, inventei
um critério para, novamente, santificar meus crimes. Comecei a matar
pessoas que eram pilares de família. Pessoas que eram o centro da relação.
Percebi que o caos que se instalava na família, após a morte do
núcleo, era seguido de um grande crescimento individual para os membros
que eram controlados por ele antes de sua morte. A estabilidade é assassina
do crescimento. Muitos, apesar disso, se perdiam completamente; drogas, crimes,
corrupção, mas entendi que isso estava sendo adiado pelo pilar
e que mais cedo ou mais tarde, quando este faltasse, o mal afloraria fatalmente
para aquele ente.
Nunca matava dentro de um raio seguro do local onde habitava e dentro de meu
convívio social. É mais difícil esconder pistas nestas
áreas. Houve uma vez que quebrei estas regras. Nunca mais se é
o mesmo depois de quebrar uma regra pessoal. Você cai ou evolui radicalmente
depois disso.
A conheci na escola, era minha aluna,que de dia trabalhava como voluntária
numa creche e era parteira conhecida na região. Uma pessoa alegre, sempre
rodeada de amigos e os fazendo rir, muito gorda e rosada, sua conversa e sorrisos
acalmava as pessoas, por mais que estivessem tristes. Depois de poucos minutos
falando com ela qualquer um se transmutava, dava-me impressão de conseguir
tirar a tristeza dos outros com as mãos. Não havia pensado em
escolhê-la como vítima, até o dia da formatura. Todos estávamos
reunidos na escola para o baile de despedida e ela bebia muito. Fiquei depois
para ajudar na arrumação e a encontrei sentada em um canto, ela
estava muito bêbada e me ofereci para ajudá-la. Ela sorriu, não
acreditou que eu pudesse apoiá-la. Segurei-a em meu ombro e fui acompanhando-a
até o ponto de táxi, ela não conseguiu lembrar seu endereço,
resolvi levá-la para minha casa. Quando chegamos a coloquei no divã,
e enquanto me preparava para dormir ela acordou e muito sem graça disse
que iria para casa. A abracei e disse que dormisse ali que já era tarde.
Ela começou a chorar copiosamente. Falou-me de solidão. Contou
que desistiu de emagrecer quando alguém lhe disse que as pessoas engordam
por vontade do próprio espírito. Ele decidia, segundo essa pessoa,
tornar a vida da pessoa fatigante, pesada para que ela aprendesse o sentido
de se estar encarnado. Disse que tudo que quis a vida inteira foi a morte e
que descobriu que só morreria depois de aprender a amar a vida. Tornou-se
parteira, ajudante em uma creche e me contou ainda que era voluntária
em um grupo de apoio ao suicida. Que sempre sorria, tinha uma palavra amiga,
um chá calmante na bolsa para um amigo desesperado que surgisse, mas
que à noite sempre dormia com a solidão. E mesmo convivendo com
o despertar da vida, ajudando pessoas, ainda era a solidão que a acompanhava.
Escapara da morte por duas vezes em acidentes de carro. Um que levou seus pais,
o irmão e uma sobrinha e o outro, o seu amor. Saiu ilesa dos dois. Havia
entendido que a morte lhe viria somente quando amasse a vida e quanto mais tentava
, mais a odiava e ia se tornando imortal. A história daquela mulher era
a minha. Não se pode amar algo por imposição, em troca
de outra coisa, nem a si mesmo. Eu e ela sentíamos a mesma fome. E a
fome é um desejo que só se sacia com a morte. Não posso
dizer que amei alguém ou aquela mulher, nunca me amei e não posso
dar o que não tenho. Pelo amor que eu podia amar, levantei-me, a amarrei-a
e amordacei. Pude sentir uma excitação e um medo crescente em
seu olhar. Tirei minha roupa e mostrei-lhe meus caninos. Sentei-me em seu colo,
segurei-a pelo rosto, olhei em seus olhos, virei seu pescoço e a mordi
enquanto acariciava seus seios. Não a hipnotizei, ela gemia a dor da
mordida e o prazer em seus mamilos arrepiados. Quis ter certeza que ela soubesse
do seu destino. Tirei meus dentes do pescoço dela, a beijei nos lábios
e disse:
-Eu vou lhe matar.
Ela se assustou, creio que duvidou a princípio, então descrevi
a ela como seria:
-Vou lhe morder novamente, e sugar o resto de seu sangue, você vai sentir
uma leve sonolência, uma dormência, um frio e em poucos minutos
estará morta.
Ela ofegava e tremia.Eu também estava excitada, com sua conivência,
sua fragilidade, com o pavor da morte e sede de vida que nascia como um rio
entre suas pernas. Quando a mordi pude sentir o gosto da descarga enorme de
hormônios em seu sangue. Ela, como eu, ao ser mordida, finalmente se debateu.
Lembrei-me dele. Pensei em lhe dar meu pulso. E, diante de mim, o primeiro e
único milagre que pude presenciar durante minha vida e morte aconteceu.
Ela foi emagrecendo à medida em que eu lhe sugava suas últimas
gotas, até tornar-se uma mulher de formas perfeitas. Compreendi que finalmente
ela tinha aprendido a amar a vida e não precisava mais se arrastar por
ela. Beijei-lhe a boca em gratidão. Esperei sua morte para desfazer-me
do corpo, a vesti com uma roupa elegante e bem feminina, rasguei-a entre as
pernas e no colo, degolei-a e a joguei na mata. Depois de alguns dias, aceitei
uma proposta melhor de trabalho em uma cidadezinha longe dali. Os olhos dela
me seguiam por onde eu ia. Etéreos olhos imutáveis. Eu a amava.
E sentia falta de seu beijo trêmulo. Não. Eu a invejava. Invejava
seu medo extasiado da morte, e sua redenção póstuma. Gostava
de lembrar dela morrendo em minhas mãos. Perdoei-me por adorar o gosto
de seu sangue, lembrar dele aflorava meus dentes, punha-me em posição
de ataque. Mudei novamente o critério de escolha de minhas vítimas.
Agora eu ia sentir a delícia da vida.
IV parte - Imperfeita até o limite da perfeição.
Passei muitos dias em retiro. Muitos dias. Eu sentia fome, mas não tinha
pesadelos. Eu não estava buscando uma desculpa para santificar meus crimes.
Eu buscava coragem. Eu já havia matado antes, mas agora seria diferente.
Eu estava consciente que era uma vampira e isto era muito novo para mim. Não
havia deixado de gostar de pessoas. Não me era cômodo alimentar-me
de seres humanos. Dentro de mim duas realidades titãs duelavam, minha
parte animal, instintiva, caçadora e minha parte inteligente, emotiva,
humana. Isto me fascinava. A história acontecia dentro de mim e eu era
sua aluna. Quando , finalmente, saí para caçar o novo método
me apareceu. Eu tinha de ser meticulosa, pois senão seria caçada,
e eu queria viver, mas iria satisfazer também meus instintos, seriam
vítimas ao acaso. Poupei as pessoas em evidência demais, para me
proteger. As crianças porque me enterneciam e não matavam minha
fome uma só. E algumas pessoas que me causavam repulsa, estas desconfio
que tinham alguma doença, mas nunca pude comprovar. Eu gostava da vida
tranquila, por isso, às vezes, roubava algum banco de sangue. Permitia
que eu ficasse mais tempo sem matar, fazia isto quando gostava muito do lugar
onde estava morando. Até hoje é assim. O sangue dos bancos mata
a fome, mas preciso caçar de vez em quando. Entendo que mais cedo ou
mais tarde alguém vai me surpreender e me tirar a imortalidade. Aprendi
a gostar das pessoas como elas são. Mais defeitos que virtude e iludidas
de sua santidade. Vampiros e humanos são iguais. Você teve azar.
Só isso. Geralmente não converso com meu jantar. Digo-lhe isto
porque me perguntou porque eu estava lhe matando. A resposta é porque
tenho fome."
-Foi quando eu peguei o lápis em meu bolso e enfiei em seu peito.
-E ela, professor?
-Ela tirou os dentes de meu pescoço e olhou-me. Seu olhar falava-me em
sânscrito, aramaico, latim, pude compreender tudo que ele dizia por serem
idiomas de meus antepassados, mas não consigo traduzir em minha língua
vida-mortal.
-Compreendo.
Disse o detetive com olhar de decepção. Fez que relia as páginas
de suas anotações e perguntou de novo:
-O que ela disse mesmo quando a perguntou porque ela estava lhe matando?
-Ela disse: "Esta sou eu, depois de saciar a fome. vou lhe contar como
escolhi minha última vítima. Antes, porém, o porque...",
por favor, detetive, já contei esta história para paramédicos,
médicos, enfermeiras, psiquiatras, policiais e estou cansado. Se vai
me prender por assassinato faça-o, preciso descansar mesmo que seja em
uma cela.
Tive a impressão que aquilo deixara de ser uma investigação
e eu me transformara num filho-da-mãe sortudo e contador de histórias.
As pessoas me faziam repetir e repetir os acontecimentos e me escutavam com
olhos vidrados. O médico, naquele dia, entrou na hora em que eu dizia
ao detetive que precisava descansar e expulsou-o de meu quarto, disse-me depois
que gostaria de ouvir a história mais uma vez, mais tarde, e sorriu.
Dias depois tive alta. Em casa olhei-me no espelho pela primeira vez desde o
acontecido. Estava mais velho, mais grisalho e com uma cicatriz no pescoço
que nunca fiz questão de apagar. A investigação seguiu
e como não havia corpo, nem conseguiram localizar nenhuma professora
desaparecida naqueles dias nos arredores o caso foi arquivado. Estou agora no
fim de minha vida. Muita coisa ficou para trás, minha infância,
a faculdade, minha mulher..., os filhos que nunca tivemos, os anos que lecionei,
quase tudo é vaga lembrança, exceto os olhos dela que me seguiram
pelo resto da vida, imaculados olhos imortais.