Não me julgue apenas por estátua pensante: quero ser um contador
de histórias.
Além das limitações de minha digna imobilidade, alimento-me
das narrativas que por mim passam sem que, por elas, eu possa passar; além
de todas as representações que me incubem, às quais me
incumbe o ofício natural, além de mera caricatura de outrem, parasita
ordinária de glória alheia, fração duma imensa paisagem
urbana, carbono, relativa arte; além de todo esse nada, sou tudo em prisma
metafísico: apreciador de histórias por meu próprio gosto
e contador delas se alguém se permitir espectador, não por que
nego meu ofício natural, mas porque além da minha pacata existência
como estátua há uma alma que, por sê-la, tem seus desejos
e o ensejo de alcançá-los, por mais que a humanidade não
admita e a imobilidade não permita.
E, da imobilidade que em mim se encerra, nada mais espero que o seu papel cumprido;
porém, confesso que, da humanidade, anseio por mais do que sua pressa
e seus olhos cerrados para a minha singela existência, miserável
estátua que sou ou esplendorosa estátua que fosse: anseio que
notem a mim e à cidade em que vivem e que vive, além da insensibilidade
morta que a faz criação humana, porquanto encerrada numa esterilidade
mórbida aos olhos de seus criadores. De tanta vida, das árvores
que o vento faz lamber as paisagens, dos gritos desesperados de canções
sorumbáticas que a brisa expõe, não sei como pode o homem
enxergar na imobilidade a morte; indago sobre uma particular indignação,
que de tão arraigada em mim vejo expressa em tudo o que me envolta: dito
que os homens dos objetos abortam os sentimentos, negam-me a vida e as circunstâncias
me negam a morte, negam-me tudo e só posso me entregar à sorte
de ambicionar histórias novas que eu possa narrar, como tácito
figurante que a vida fez sonhador.
Penso que seja ousadia me empreitar nesse objetivo inconspícuo e prosear
sobre a vida duma estátua e sua cidade, porém o contrário
seria supérfluo melindre que faria ainda mais imperceptível a
minha existência e, destarte, reafirmo e relato: São Paulo vive,
aquém da capacidade humana de perceptar. O que chamam prédios,
constrições de casas, construção inerte, são
nada menos que gigantes, concretos em sua supina grandeza, megeramente domados
por elevadores que lhes cortam em parcelas e que, do alto de suas muitas celas
pares, abrem seus abundantes olhos para apreciar a modernidade, concernir ao
homem, observar a cidade; gigantes cujas vidas discorrem ao contrário:
nascem velhos esqueletos, estruturas módicas, desenvolvem-se e vivem
feito reis de seu espaço, símbolos da genitora que lhes justifica
a existência.
Contornando os prédios, as ruas se enlaçam e desenham ao chão
a expressão de suas inspirações para que lhas redesenhem
os carros, feras, ferozes feras citadinas, com seus olhos que desafiam a penumbra
da noite e comprovam seu inegável poder de máquinas selvagens;
feito formigas a caminho de um formigueiro se alinham, perdem-se num inferno
intransigente se o tráfego é atravancado, e concorrem, entre sussurros
discretos e rugidos de motores em a-ce-le-ra-das intermitentes, com certo monstro
que devora máquinas e humores: o Trânsito.
Se, às ruas, correm os carros, por entre túneis percorrem as mais
rápidas minhocas, feitas em metal, o metrô mirante dos mesmos caminhos
e paisagens, fura-terra reluzente, que aos cantos se entrega para os homens
encaminhar, que aos túneis declama seu canto de exultação
ou desejo de alforria; sobre os trilhos, integrados numa mesma estirpe, vêm
os abundantes e divagantes vagões, que vagam um mundo vil de inusitados
vagamundos, vagâncias mil e extravagâncias tantas, salvos os limites
de suas digníssimas estações, onde cantam sua chegada e
se entregam, familiarmente, numa barafunda civilizada.
De trocas travadas em catracas atracadas, Anhangá baú. De ruas
em ruas e de vale em baile, Anhangá baú. De praça em praça,
Anhangá baú; e, em tal praça, o baú de Anhangá:
confundindo-se ao quadriculado derramado ao chão, cortando dispersos
coalhados gramíneos, tantas pombas que tonteiam, por todos os lados,
afoitas; cortam o céu muitas delas, cometas urbanos, inerência
comum de todos os cantos, coniventes da Sé, pombas que pombam, pombas
que bambeiam, pombas que cagam, aos montes, em mim.
Caralho.
Cocô de pomba, de vento em bomba, cai ao ombro da ilustre figura que represento,
e me faz contestar a imobilidade: covardia que somente a chuva poderá
reverter - esta água falsa com quem apenas tenho relativa e atinente
estima, posto que sou consciente de que lambe minha superfície somente
a me espreitar, faceira, esperando de mim qualquer ínfima fraqueza que
lhe sirva de pretexto para corroer a matéria em que me alojo; posto que
sou consciente de que, se me sussurra o vento, é para contar que leva
de mim um naco, deixando a escória que logo virá buscar, até
que sobre somente a alma, substância incerta da qual não conheço
os ciclos.
E, se somente a alma sobra, qual o objetivo deste eterno contemplar?
Ao longe, vislumbro, estátua cor de prata a quem concederam o movimento,
estátua bela que me enlouquece a alma e a quem jamais poderei dedicar
um gesto, porém dedico o tempo e o contemplar: vejo seu preparativo para
encontrar a pose e sua condição de estátua se revelar,
de tal forma graciosa que com ela tudo pára. Vejo, e me pergunto se tem
alma aquela doce matéria, ou se a trocou pelo dom da dança que
a envolve; vejo, e me pergunto se algum dia poderá me enxergar além
da miséria e das pombas; penso, e respondo: não.
E, apesar da miserável convicção, o alento não me
escapa.
Se uma eternidade tenho para esperá-la, consciente de que isso jamais
frutificará, o farei, com a dignidade de quem ama. Podem me chamar niilista
pelo aniquilamento de meus próprios sonhos em investidas estéreas,
porém, se o fizerem, é somente porque não reconhecem que
o aniquilado fui eu: a nada fico reduzido sempre que sou feito objeto, em síntese,
pelas circunstâncias materiais que me abortam a alma, e, no entanto, o
tudo não me encerra quando pelo amor sou tomado. É minha única
esperança além da materialidade.
O drama em si resume: eu, estátua estática, confundindo-me à
paisagem, transfigurada nela própria, reduzida a ainda menos do que as
circunstâncias poderiam ocasionar posto que revestida em excrementos de
pombo, faço vivo pela história um personagem que, já morto,
não se pode mais representar; ela, estátua móvel, entregue
à praça, cujo movimento garante o público que a imobilidade
a mim nega: poderia me concentrar em inveja se eu, modesta estátua sem
faculdades especiais, conseguisse ir além da entrega a uma platônica
paixão pelo inalcançável movimento de tão bela estátua
que me abala a alma feito a pomba me bale o ombro e me distancia ainda mais
do meu sonho cor de prata.
A cidade, vive. Pombas, morram.