Este caso se passou em Ilhabela e é meio sinistro. Pensei em nunca contá-lo;
mas, já que estamos aqui, reunidos, eu e você, leitor; e, já
que isso é só escrito mesmo, não há nada mais que
eu possa desconfiar.
Tudo começou quando decidi viajar para a ilha naquela semana de folga.
Ilhas sempre me fascinaram. Acho que formam uma beleza à parte de qualquer
região de onde estejam e tem qualquer coisa de misterioso, de encantador.
Ficam afastadas do continente, abrigam naufrágios, foram refúgios
de piratas, salteadores, fugitivos e coisas deste tipo. Fui sozinha, a fim de
descansar na casa do meu amigo DeNiro, que gentilmente me cedeu sua residência.
Em plena segunda-feira, arrumei a minha mala e fui para lá. Enquanto
os abastados subiam a serra com seus jet skis ou iam para a cidade de helicóptero,
eu descia no meu VW, com minha mochila e vários livros (História
do Brasil, Poe, poemas de Bandeira e Ana Cristina) e CDs da Billie, Clapton,
e Ruth Brown, alguma coisa de clássico também: Wagner, Mozart.
Entretanto, só me dei conta que estava indo sozinha para a ilha em plena
segunda quando esperava a balsa para atravessar o canal. Ali, à beira-mar
estávamos eu, meu automóvel, CDs e livros esperando a sós,
soltos e silenciosos pela ferryboat.
Atravessei o canal, o centro da cidade, passei pela igreja, o cais, o café
marítimo e segui o mapa em direção à casa de Niro.
Tudo estava meio deserto. A casa, vinha de outras décadas, era do bisavô,
ficava à beira mar do lado norte da Ilha e em cima de um penhasco. Comecei
a circundar a Ilha, por aquelas curvas e sobes e desces. A certo ponto, peguei
uma via de terra batida. Chegava-se à casa por um ladeira de pedras que
descia desenfreada até bem perto da praia. Ali fazia uma curva, que passava
há alguns metros do mar e torneava o paredão do penhasco, levando
até o cume por uma subida bem acentuada. Lá estava a casa branca
de janelas e portas de vidro que davam para o mar.
Passei o primeiro dia entre a piscina e a varanda da casa. O tempo estava nublado.
No segundo, o sol apareceu forte e desci para a praia. Comecei a caminhar um
pouco, parei, olhei o mar, verde, calmo, claro que até ofuscava a visão...
Puxei meus óculos de nadadora e mergulhei. Nadava quando algo passou
por mim. Algo longo, forte e acelerado... Nadei rapidamente de volta para a
praia. Ofegante e zonza não via a hora de pôr os pés em
terra firme. Já na praia, olhei para o mar e nada... O mar continuava
calmo. Não foi nada, um peixão, só isso. Então,
deitei na praia quente, feliz por estar inteira. O sol ardia. Eu estava meio
sonolenta quando escutei ... tchua, tchua, tchua, tchuaaa, tchuuaaa, ttcchhaauuaa...
algo se aproximava e saia do mar... Não, não era algo, era alguém...
Um homem ! Será um sereio ou um pirata? Perplexa, levantei agarrando
minha canga e, discretamente, uma pedra ...
- Oi ! Que sol hoje ! O mar está ótimo para nados, não
é ? - disse-me o rapaz, que estava mais para sereio do que para pirata...
Alto, loiro, atlético...
- Puxa, é mesmo, mas você me assustou... - disse largando tudo
.
- Desculpe. É que eu estava treinando e cronometrando. Não podia
parar para te pedir licença. Vou participar de um Triaton quando voltar
para Sampa.
- Mas, você passou por mim e sumiu depois...
- Eu só mergulhei, fui, voltei e agora estou precisando descansar. Posso
... ?
- Sim.
- Bela casa essa, é tua ?
- Não. De um amigo. Dentro tem até lareira ! Hidro, sauna, jardim
de inverno...
Deitamos ao sol de barriga para cima, colocamos nossos óculos escuros
e começamos a conversar num papo sem fim, olhando para o céu azul.
E ele se chamava Antonio Barbante, tinha uma barbicha loira, olhos verdes-calmos,
era viajante e jornalista solitário, já tinha andado quase todo
o mundo, fez uma promessa nos caminhos de San Tiago e, depois lá pelas
tantas na Índia, fez um retiro espiritual e teve uma confirmação:
devia se tornar atleta. Deixou a vida boêmia de Sampa, os drinks com os
amigos repórteres, os bares de jazz and rock'n'roll, o stress
da mídia e parou de comer carnes vermelhas:
- Só parei de comer carnes vermelhas, outras eu como. - me garantiu
rindo. E depois continuou: - Isso significa que posso te convidar para um peixe
na brasa numa noite dessas.
Ele era boa gente, sabia fazer companhia. Na mesma noite, no jantar, fomos
comer peixe na brasa. Marcamos o encontro perto do cais. Eu o aguardava olhando
as embarcações que se debatiam no mar. O vento soprava forte.
Novamente ele chegou silencioso e, sem que eu percebesse, tapou meu olhos. Sussurrou:
"- A viração noturna ! Ela vem sem avisar aqui para a Ilha.
Só manda estes recados: um vento forte aqui, uma nuvenzinha ali, uma
garoa, depois é só tormenta, vendaval...". Me virei, olhei
para o Barbante séria, fitei seus olhos verdes e não acreditei
no que via: refletido, dentro dos seus lindos olhos verdes, via o mar furioso,
agitado, com rajadas de vento e tempestade. Ele riu com os cantos da boca. Fomos
jantar, mas eu nem tinha muita coragem de olhar firme nos seus olhos. Depois,
o vento cessou e fomos passear amistosamente pela praia.
Assim passaram-se os três dias seguintes, um na companhia do outro e
eu não notei mais nada de diferente no Barbante. Muito sol, pouco vento,
noites quentes, luar de lua cheia, praia clara, nados, pernas, braços,
mergulhos, olhos, olhares, peixes e passeios de dia e de noite. Certa noite,
após o agradável passeio pela praia iluminada pelo luar, ele quis
me acompanhar até a casa. Convidei-o para entrar. Enquanto estava de
pé, olhando o mar através das enormes portas de vidro, fui para
a cozinha pegar algo para beber. Quando voltei, ele não estava. Cismada
fui em direção à porta que dava para o terraço e
que estava aberta. Lá estava ele: recolhendo gravetos. Voltei, sentei
no divã . Ele entrou e começou a acender a pequena lareira, como
se eu nem estivesse ali. Curiosamente me aproximei dele para ajudar. A cena
foi cinematográfica: ele, agachado; eu me aproximo frontalmente, agacho
e pego alguns gravetos. Ele levanta o rosto para mim, nos olhamos, depositamos
juntos a madeira na lareira... O fogo começou a queimar firme fora e
dentro de nós... Mas, espera! Algo me terrificou naquele olhar... Seus
olhos... e o mar tempestuoso dentro deles novamente... Assim que constatei isso,
percebi que lá fora também soprava um vendaval rude que alvoroçava
as árvores. E o silêncio do luar se tinha ido e dava lugar para
o ronco da chuva que se acomodava no céu. E, lá fora, o mar já
investia fragorosamente contra o paredão. E, eu de vivaz me fiz imóvel,
estupefada, com olhar parado, boca entreaberta e corpo gélido mirava
para fora. Assim mesmo, ele permanecia indiferente a tudo e se aproximava cada
vez mais de mim. Avançou o rosto e beijou minha boca. E mais uma, duas,
três, quatro, cinco, seis, infinitas vezes até que me fez perder
os sentidos e adormecer somente com os beijos que me deu... Ele era um sereio.
Ao acordar, ele já tinha se ido, entretanto, pude sentir um gosto salgado
que deixou em minha boca.