A Garganta da Serpente
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Ao dobrar dos sinos

(Sérgio Luís do Carmo)

Os olhos, agora secos e vidrados, fitavam a débil claridade que vinha da alta e minúscula janela incidir sobre as pedras enegrecidas e úmidas da parede diante de si; mas como chorara, ah, como havia chorado! Não o magoava a morte que o esperava no patíbulo, mas aquela que lhe haviam dado a viver, como negro fel a ser sorvido vagarosamente até que o último órgão estivesse envenenado do pútrido líquido necrosado, culminando por fim na extinção do próprio fenômeno da vontade.

Fora, dobravam os sinos anunciando a execução próxima, e não ouviu a onda de excitação provocada na turba que esperava ávida pelo espetáculo; evocava agora a doce e terna imagem da amada, a dançar, leve como a etérea aparição de um anjo no bosque pintalgado do sol filtrado pelas copas frondosas das árvores, a flor alva nos cabelos, o vestido simples farfalhando ao sabor do vento, adornando o corpo níveo e esbelto, os lisos cabelos negros lançando-se ao ar como sobrenatural cascata negra, a valsar com os pés infantis e nus sobre a relva salpicada das folhas douradas que se precipitavam do alto, como se o próprio céu celebrasse aquele momento, prestando tributo ao divino magnetismo do sorriso que lançava ela à vida - à vida, sabia agora, e não a ele.

Conhecera-a assim, dançando, colhendo flores nesse mesmo bosque, local em que buscava a solidão, e nesta a inspiração para as suas cismas, com as quais se ocupava durante quase toda a noite, debruçado sobre os papéis onde garatujava sob a luz das velas, recolhido em seu modesto aposento.

Fruto do amor clandestino de um padre, obteve quando criança, tanto quanto a mãe, os favores do clérigo, que o iniciara nos rudimentos da misteriosa ciência das letras. A juventude lhe fizera fervilhar no cérebro os escritos que ainda conservava guardados, trazidos pelo religioso para auxiliar na instrução do filho; ébrio de idealismo, prenhe de ideias, o mundo se lhe descortinara como um infinito campo de terras férteis, onde plantaria, veria germinar e colheria dos frutos das suas sementes. De pena em punho, dava vida aos movimentos do próprio espírito, era livre, era criador, não apenas criatura. A inteligência que se tornava sempre mais aguda, permitira-lhe ver além do que aos outros era dado ver. Não demorou a tornar-se alvo da estupidez alheia, que o cobria de zombarias inicialmente, para depois lançar-lhe sob suspeita de heresia e bruxaria. Os mais supersticiosos evitavam-lhe a presença, afastando-se com olhares temerosos e benzendo-se; os submissos e covardes haviam rompido toda forma de relação que haviam com ele já travado e as que pudessem ainda manter, temendo represálias da Santa Igreja. Mesmo alguns comerciantes haviam passado a evitá-lo, preferindo sacrificar seus ganhos a incorrer em cumplicidade com o suposto "pagão".

Apartado que estava do atrito com os outros homens, imerso em suas visões e ambições de justiça, igualdade e conhecimento, continuava a proclamar junto aos poucos com quem podia relacionar-se, os princípios que deveriam conduzir os povos a uma forma mais aperfeiçoada de vida coletiva, indiferente, no calor da paixão que o inflamava, à diversidade de olhares hostis que o cercavam e fitavam traiçoeiramente, provenientes da plateia oculta ou não que o espreitava.

* * *

Dentre todos esses olhares sub-reptícios, estava o de um homem contando aproximados trinta e dois anos, olhos arregalados como que procurando projetar desesperadamente o verde de suas retinas naquilo em que pousassem; a pele de uma palidez quase mórbida realçava-lhe os cabelos negros, raspados à altura do crânio. O corpo, volumoso e bem formado, escondia-se porém sob as vestes de monge.

Atentando os ouvidos, acompanhara por cerca de três quartos de hora o que a voz entusiástica de jovem proferia de forma ingênua e descuidada; lembrava-se de o garoto haver mencionado por pelo menos três vezes sobre um manuscrito no qual estivera empenhado havia um ano e sete meses.

Erguera-se do banco de madeira, pousando a caneca vazia donde havia pouco estivera sorvendo um vinho barato; sem ser percebido, deixara aquilo que a gente do povoado tinha por uma taverna, dirigindo-se em seguida a uma pequena casa de pedra com pilares de madeira e telhado de capim trançado localizada a poucos minutos dali, em cuja porta batera três vezes antes de ser recebido com evidentes mostras de grande reverência por uma senhora de meia-idade, que apressava-se em chamar pela filha. Esta estava entretida em trocar a palha do chão, mas logo abandonara a tarefa para tomar da mão do monge e ali depositar o ósculo acompanhado do olhar oblíquo de estranha contrição.

* * *

Toda a Natureza parecia conspirar a favor do estado de espírito de Lino naquela fresca tarde primaveril. Iria encontrar Helena! Todos os seus pensamentos permeavam-se da leitosa atmosfera alternada em cores cintilantes de ditosas visões, repletas da verdura de relvados aveludados e folhas douradas que caíam como estrelas fulgurantes a luzir perpassadas pela suave luz solar; e quando a encontrou a esperá-lo, de olhar perdido a bater repetida e delicadamente com uma margarida contra os lábios entreabertos, teve a nítida certeza de que seus devaneios não lhe haviam mentido.

Transfigurado pela ternura, tomara-a em seus braços, beijando-lhe suavemente a boca delicada e polpuda. Eis o paraíso de sua juventude! Tomá-la para si, correr com ela pelos bosques em jogos pueris, contar-lhe todos os segredos e aspirações, todos os medos e ódios, em íntima cumplicidade... amava, e era amado! Ela parecia exultar, correspondia graciosamente a todos os lampejos do frescor juvenil de Lino, interessava-se pelas suas longas explanações, e após conceder-lhe novamente o delicioso contato da sua boca, declarou que não haveria segredos entre eles, que se amavam; queria ter para si os manuscritos sobre os quais tanto seu amado se debruçara, queria conhecer-lhe os mais intrínsecos movimentos d'alma! Neste ponto os olhos de Lino embaciaram-se, e enlevado pelos fluídos do amor cúmplice, dissera:

- São teus, minha bela, por quanto tempo quiseres!

Na tarde seguinte os depositara nas mãos da menina, como se com este gesto estivesse a entregar-lhe o próprio coração.

Ah, Helena!

* * *

E, das mãos de Helena, passaram para as mãos do padre Felício, cujos enormes e reluzentes olhos verdes a cobiçavam desde que ela completara doze anos; Helena, a cuja mãe, que perdera o marido artesão pela Santa Inquisição, o clérigo pagava pelos favores amorosos da única filha.

* * *

Lino, julgado e condenado à forca como herege, foi apartado de sua mãe e de sua amada, do bosque de suas fantasias e de sua terra, das ilusões e de sua juventude, dos ideais nobres e de sua própria vida. Antes de extinguirem-lhe a existência, lhe haviam extinguido a crença na existência da beleza, da dignidade e da honra; na razão em conceber a própria vida como uma marcha progressiva a culminar na edificação do indivíduo em sua forma mais plena; a crença num sentido, na simples concepção de que era sempre válida a pena de se viver; de que pudesse ser de alguma forma gratificante debater-se embalde entre milhares de outras infelizes criaturas em um gigantesco e desgovernado turbilhão, sem outro rumo que não a própria escuridão. E sobretudo, haviam-lhe destruído a crença na existência do Amor.

Quando então sentiu o laço esmagar-lhe o pescoço, pensou que não se tratava de uma pena capital o que se lhe aplicava naquele derradeiro momento; era sim, o benefício último de um ato final de misericórdia.

(11 de janeiro de 2007)

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