A Garganta da Serpente
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Carcomida e o nego gazuga no mar de heróis

(Santiago Joaquim)

Carcomida

Velha e fazia careta, assustava as crianças gritava pelas ruas com ares de deboche.
"toda doença é uma derrota, uma derrota do corpo e da mente!"
"toda doença é uma derrota, uma derrota do corpo e da mente!"
"toda doença é uma derrota, uma derrota do corpo e da mente!"
Muito suja, esfarrapada, quase não enxergava, fedida, andava carregando trapos e latas e para cada dia da semana tinha uma frase sempre rindo e desdenhando.
"sexo, amor e tesão não tem ligação"
"sexo, amor e tesão não tem ligação"
"sexo, amor e tesão não tem ligação"
Ela dormia dentro de um buraco no fim da rua, quase ninguém chegava perto.
Uns achavam que ela era uma bruxa, outros diziam que já tinha sido rica e uma grande estudiosa, eu sempre tive a minha opinião, é uma veia feia que só fala besteiras.
Algumas vezes ela batia nas portas, esperava o pessoal atender e gritava:
"limpa a casa, a casa é dentro e fora do portão"
"limpa a casa, a casa é dentro e fora do portão"
"limpa a casa, a casa é dentro e fora do portão"
Quando era na minha casa ela dizia:
"o tempo vira pó"
"o tempo vira pó"
"o tempo vira pó"
Eu desde pequeno detestava aquela velha, e a minha vontade de matá-la ano após ano foi aumentando. Muitas vezes eu confessava o meu desejo, mas ninguém acreditava. Uma vez ela começou a gritar no meio da rua:
"Terra de Campeões, mar de heróis e o resto ninguém quer conhecer"
"Terra de Campeões, mar de heróis e o resto ninguém quer conhecer"
"Terra de Campeões, mar de heróis e o resto ninguém quer conhecer"
Uma razão clara eu não tinha por odiar aquela veia, era como se fosse uma força maior do que eu. As minhas raivas eram depositadas todas em função de repudiar a existência dela, e todos os comentários negativos que eu expressava eram na direção dela.
Na praça da igreja ela gritava:
"Abre a janela deixe o vento e o sol entrar a luz é forte e bate no rosto força os olhos a serem fechados"
"Abre a janela deixe o vento e o sol entrar a luz é forte e bate no rosto força os olhos a serem fechados"
"Abre a janela deixe o vento e o sol entrar a luz é forte e bate no rosto força os olhos a serem fechados"
Em frente a padaria o discurso era outro:
"Aquece meu corpo o vento refresca, o som do rio e do guaipeca latindo não me deixam esquecer onde eu estou".
"Aquece meu corpo o vento refresca, o som do rio e do guaipeca latindo não me deixam esquecer onde eu estou".
"Aquece meu corpo o vento refresca, o som do rio e do guaipeca latindo não me deixam esquecer onde eu estou".
Atrás da prefeitura:
"quero aprender francês só sei dizer abatjour, quero mais danças polonesas quem sabe? Tenha curiosidade de ler os manuscritos de um monge".
"quero aprender francês só sei dizer abatjour, quero mais danças polonesas quem sabe? Tenha curiosidade de ler os manuscritos de um monge" .
"quero aprender francês só sei dizer abatjour, quero mais danças polonesas quem sabe? Tenha curiosidade de ler os manuscritos de um monge".
Quando a farmácia abria ela já estava lá esperando os donos e gritava:
"roça, roça, roça".
"roça, roça, roça".
"roça, roça, roça".
No horário do recreio ela parava em frente à escola esperava que as crianças se juntassem para dizer:
"aqui em frente passa uma estrada onde ela acaba eu não sei e dificilmente vou saber, falta-me tempo e a escada já me espera".
"aqui em frente passa uma estrada onde ela acaba eu não sei e dificilmente vou saber, falta-me tempo e a escada já me espera".
"aqui em frente passa uma estrada onde ela acaba eu não sei e dificilmente vou saber, falta-me tempo e a escada já me espera".
A cara enrugada, o rosto marcado, unhas sujas, eu ficava observando ela da janela da minha casa:
"Coxilha".
"Coxilha".
"Coxilha".
A carcomida morava em um buraco, acho que era um bueiro desativado, e toda noite um senhor ia visitá-la, o nego gazuga, um vagabundo, que perambulava pelas cidades vizinhas e quando chegava na minha vila ele não deixava de fazer uma visita à carcomida.



Gazuga.

Errado, todo errado, sempre vestido como pedaços de ternos e calças remendadas, ele tinha uma postura firme, um olhar crente. Gazuga aparentava ser um senhor de posses, alguém viajado e educado, nem as provocações das crianças e os olhares atravessados das vizinhas e donos de estabelecimentos comercias o tiravam do pedestal que ele se punha em sua caminhada em direção a toca da carcomida.
Na maleta ele carregava vários papéis escritos de próprio punho, eram dizeres estranhos que ele distribuía a qualquer um e quando acabava ele mesmo discursava, todos sabiam que ele estava por perto quando ouviam o seu chamado:
"Gazuuuuuga, Gazuga, Gazuuuuuuuuuga".
"Gazuuuuuga, Gazuga, Gazuuuuuuuuuga".
"Gazuuuuuga, Gazuga, Gazuuuuuuuuuga".
Logo começava o discurso:
"de um a nove
o último é o céu
pedras em risca
tente outra vez

a dança é até o número cinco, direita
e esquerda em um
e dois, feito saci no
três, quatro e cinco

jogo no nove que
bicho é esse, estou
quase lá, paro tudo
não quero chegar
tão rápido no céu".

Todo suado, o negro de uma pele morena, fazia um esforço, se emocionava, o nego gazuga só esperava a noite cair e ia ao encontro de Carcomida.
No dia em que a primavera chegou fui espiar os dois no buraco, eu carregava um galão de gasolina e fósforo. Me escondi atrás de uns arbustos e ouvi ele dizendo a ela:
"um no meio outro no canto aquele pendurado no teto e dois indo pra lá e para cá, o que não quer dizer nada".
Ela ria, ria alto, era estridente o riso dela:
"Gazuuuuuga, Gazuga, Gazuuuuuuuuuga".
"Gazuuuuuga, Gazuga, Gazuuuuuuuuuga".
"Gazuuuuuga, Gazuga, Gazuuuuuuuuuga".
E mais risos, o cheiro era forte, ninguém ia sentir falta deles, eu odiava eles, tinha náuseas, comecei a despejar a gasolina:
"mar de heróis"
"mar de heróis"
"mar de heróis"
"Gazuuuuuuuuuga".
"Gazuuuuuuuuuga".
"Gazuuuuuuuuuga".
As gargalhadas eram altas e eu ateei fogo:
"mar de heróis".
"mar de heróis".
"mar de heróis".
Presenciei tudo, a vingança das crianças, o encerramento dos discursos, o fim dos maus cheiros, eu estava trazendo o sossego das vizinhas, a calma para os recreios. Minha atitude me trouxe orgulho, ali estavam meus medos virando cinzas, sendo carbonizado, de fagulha em fagulha engrandecendo minha alma, as chamas eram sucesso. Voltei para casa e me entreguei a um sono tranquilo.
As evidências do meu crime eram claras, a culpa não foi negada, o cárcere agora é o meu lar, e de todas as vergonhas que eu passo a pior é reconhecer que sem liberdade o tempo vira pó.
"o tempo vira pó"
"o tempo vira pó"
"o tempo vira pó".

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