A Garganta da Serpente
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Em ordem alfabética

(Sergio Godoy)

Não há espaço entre a mulher à minha direita e o homem à minha esquerda. Fecho os olhos como se fosse possível escapar desse momento. Imaginar-me, talvez em uma ilha; o mar em silêncio, o vento em silêncio, meu corpo sobre a areia morna, meus pensamentos destituídos, longe de qualquer obrigação. Por ironia o metrô pára na Paraíso. Meu destino? - Santana. Contar as estações, uma de cada vez, memorizando todos os nomes. Outras vozes. Passageiros em um só destino. O odor de suores, do cansaço do dia, do cabelo mal-lavado, da pele exposta e sem direitos. Contraio. Entrelaço meus dedos. Aperto com muita raiva. Quero chegar. Quero estar longe. Deixar para trás essa camada de cabeças e bocas.

Imagino-me apaixonada. Posso ver o amor constituir o sonho desejado. Há grande combinação entre a simplicidade do que somos e a realidade exteriorizada do mundo à minha volta. A vida é tranquila. Corremos juntos na paisagem do dia, corremos únicos. O beijo chega dentro da significância desse amor.

Abro os olhos. E se minha vontade é de gritar, fico calada. À minha frente uma mulher com uma sacola pendurada no braço. Fico tentando ler o que está escrito no plástico avermelhado mas não consigo. Estação da Luz. Aos poucos as pessoas vão desaparecendo em passos apressados. Luz... murmuro. Meus lábios entreabertos e na janela o reflexo de meu rosto pálido. Onde foi mesmo que parei? - o beijo - nos beijávamos. Sim, além da paixão, outras paixões: filhos. Somos uma família;

brincamos de rolar no tapete. Ele nos observa sorrindo, sentado no sofá, protetor.

Forço-me contra a dissipação do sonho. Quero mantê-lo com tamanha vontade que tudo em um instante torna-se minha verdade.

Sobra espaço. O homem à minha esquerda se levanta com rapidez e projeta minha bolsa ao chão. Não há pedido de desculpas. A porta quase fechando e o corpo desajeitado empurrando por abertura.

Tudo fica sem retorno. Agora posso ver a noite passar rapidamente sobre os telhados. Ave ávida. Minha vida no mosaico da cidade. Término. Desço a escada rolante e sei que amanhã estarei de volta, vagarosamente entre o desejo de uma sincera paixão e todas as estações em ordem alfabética.

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