Mil sonhos de amores perfumam as flores do jardim. Um jardineiro derrama descuidado
gotículas sobre pétalas delicadas. O sol é suave, a brisa
mansa. O chão fofo e bem cuidado exibe a cor saudável de um rosto
bem alimentado. Minhocas gulosas mergulham na terra fofa. Um grilo salta de
uma folha a outra. Tudo é calma, suave balanço de harmonia.
Mas eis que tudo começa a mudar. Um grito, um gemido. Um estalido de
dor. A figura de um homem de olhos esbugalhados descortina-se a escada. Um homem
alto, magro, cabelos ouriçados e olhos a saltarem das órbitas.
O homem, parado no limiar da porta, parece exausto. Sua expressão é
de assombro. Atrás dele gritos de mulheres a sua procura tecem uma estranha
melodia atrófica.
O homem, parado, estende a mão para as flores do jardim. Nem uma palavra
escapa de seus lábios. Mas uma voz rouca, um sussurro a muito reprimido,
é visto jorrando de seus olhos. O homem se atira de joelhos à
terra fofa e agarra a flor roxa recém regada que lhe está mais
próxima.
As mulheres chegam à porta. São três. Aparentemente a mãe,
uma filha moça e uma mais nova. Todas olham com admiração
a cena. Nenhuma delas quer mais gritar. Em seus olhos, espelhos do sofrimento,
pode-se ler a história que passou:
Sr. Luis era um jovem médico. Jovem se entregou à vocação.
Conheceu dona Ilda quando ainda jovens. Donos de uma paixão fulminante,
se entregaram ao casamento. Tudo corria bem. Nascera a primeira filha. Fogos
de jubilo ecoaram pela casa inteira. Uma grande festa, com muitos convidados,
percorreu a casa do doutor.
Um dia, porém, a casa amanheceu mais escura. Luana já tinha cinco
anos. Médicos da cidade vizinha movimentaram-se na casa do amigo doutor.
Ele estava dormindo! Sim, dormindo. Não estava morto. Era um sono suave,
nostálgico. "O sono da morte. A doença do sono. E ela pode
levar anos. Poderia jamais acordar ou simplesmente acordar na manhã seguinte".
Disse um senhor doutor.
No dia seguinte Ilda estava sentada a beira da cama do marido, na hora que ele
sempre acordava. Ela havia preparado um belo café da manhã, o
mais lindo que conseguira. Esperava que ele despertasse e arrancasse a todos
do pesadelo. Jamais contaria ao marido o ocorrido, seria como se aquilo não
acontecera. Mais ele não acordou. No dia seguinte a esse, a cena se repediu.
E no outro dia, e no outro, e em mais outro, até que os anos passaram.
As meninas se acostumaram a ir no quarto do sono se despedir para a escola.
A mãe sempre estava lá, e esperava. Os anos passaram e um dia,
quando a esperança já estava de malas prontas para partir, quando
Ilda não podia mais contar o número de fios sem cor de sua cabeça,
ele acordou.
Nesse dia, que começou com os gritos das mulheres e o jardineiro a regar
o jardim, houve uma grande festa. Outra vez toda a cidade desfilou na casa do
Doutor. O Jardineiro foi o único a não comparecer. Como em um
despertar rotineiro o doutor contou o infinito de sonhos e pesadelos por que
passou. Os médicos, na sala, riam das histórias e diziam querer
pesquisar. A mulher olhava calada abraçada à filha mais nova,
três aninhos apenas. Luana, a mais velha, já tinha 15. Dez anos
havia passado.
Naquela noite, todos foram dormir tarde, e quase sem acreditar, Ilda foi ao
quarto do marido desejar boa noite. Não dormiriam juntos naquela noite,
ainda havia muito por conversar. Ele dormiu. Pela manhã a casa cheirava
a café. Ilda foi acordá-lo. Ele ainda dormia. O Doutor nunca mais
voltou a acordar. Dormiu nos anos que alcançaram o casamento da filha,
a morte dos amigos, do jardineiro e da mulher também. Dizem que pouco
antes de seu suspiro final seus olhos se abriram e deram com o da menina mais
nova, agora bem mais velha. A filha do jardineiro. Ninguém nunca soube
o que eles disseram...