A cidade situava-se no antigo território indígena, vale da brisa,
nome que acabou por originar a atual designação do lugar: Brizal.
Brizal, ou vale da brisa, como preferir, no princípio, era uma região
extremamente pacata e quente, habitada apenas por índios e uns raros
aventureiros que se decidiam por arriscar a sorte ali. Um dia, porém,
tudo começou a mudar. Um daqueles pioneiros, quase ao acaso, descobriu
ouro por aquelas bandas, iniciando verdadeira debanda de gente por lá.
A cidade das brisas começava a sentir o cheiro forte de seu primeiro
ventoral. E ele vinha com força, derrubando e queimando árvores,
matando gente, tingindo rios de vermelho, loteando terras e construindo casas.
Algum tempo depois e a cidade já se achava irreconhecível, tamanha
a mudança ali falseada. Fábricas, casas, prédios, condomínios,
bancos, praças, pessoas; igrejas, favelas, padarias, mercados, bancos,
financeiras, empreiteiras, loteria, botecos, cinema, teatro, bares, lojas de
roupas, roupas de lã, esqui, pessoas; ponto de ônibus, rodoviária,
ônibus, carros, charretes, cavalos, pessoas, prefeitura, escolas, creches,
farmácias e tudo mais que se possa imaginar... A cidade se agitava e
se contorcia no olho do furacão.
O antigo lugarejo pacato agora já dava seus primeiros pitacos na economia
mundial. A voz rouca de seus diplomatas, gagos e fanhos, era ouvida e respeitada
por todos...
O mundo, nessa época, já não guerreava tanto. Ricocheteava,
apenas, nas mãos de uma só nação. Tudo gravitava
em torno dela. "O mundo" achava que sem sua influência o caos
voltaria a reinar. Mãos verdes com caras de presidentes empunhavam o
binóculo e acompanhavam com seus olhos esbugalhados, teleguiados, o tributar
do planeta. O César da nova era se impunha com mãos atômicas.
O mundo seguia girando capenga, de bengala velha na mão, caindo de banda,
tentando a custo se equilibrar no fio fino que atravessa o abismo do capital.
Mais um dia amanhece sobre a nobre capital. Sim, Brizal agora é capital.
Mas o que é isso? Algo acontece! As pessoas correm em desatino, trombam,
tropeçam, caem ao chão. Carros batem, dão freadas bruscas.
A mulher reclama, o filho chora, a beata reza, o político se esconde,
o policial atira, o bandido se arrepende... O que está acontecendo afinal?
Estará instalado o caos, o juízo final? O que é? Diga logo,
não faça suspense!
- De onde veio isso ?
- Só pode ter vindo do espaço. Coisa de ET!
- É um sonho? Eu estou sonhando mamãe?
- Tenho que me esconder.
- Quero ver eles me pegarem agora.
- Meu deus, vou me atrasar para a entrevista.
- Deve haver um buraco.
- É, o melhor é sentar e ver o que acontece.
Os comentários eram variados, uns se mantinham calmos, outros assustados,
outros curiosos e indagadores, mas apesar de tudo o medo trazia a todos uma
certeza sobre tudo: Alguma coisa havia mudado.
No centro da cidade, dividindo a rua principal, cortando prédios, praças,
carros e bancas de jornal, uma imensa cortina de vidro transparente, impenetrável,
se estende em todas as direções rumo ao infinito. O pânico
é total. Pessoas correm, trombam umas com as outras, chocam-se com o
vidro tentando atravessá-lo. Helicópteros das forças armadas
tentam a todo custo vencer o inesperado obstáculo. Inútil! O vidro
se entende até o céu, e parece ir além, pois nem os satélites
conseguem passar.
Na TV o noticiário informa em plantão especial o incomum episódio
que se repetia por todo o mundo.
Mas esperem, ainda não acabou! O pior está por vir! Sabe aquele
país que se outorgava o monopólio do mundo? Aquele que roubara
de Adão o testamento do paraíso! Pois bem, desapareceu. Isso mesmo,
sumiu sem deixar vestígios. O mundo acordou de pernas pro ar. Tudo é
uma confusão que só vendo.
O Turco da padaria reclamava que não pode cobrar a dívida do João
do açougue. A secretaria protestava por ter perdido o emprego no escritório
que fica do outro lado; o advogado ameaçava processar o dono do vidro,
pois havia partiu seu escritório ao meio. Tudo é caos, enfim.
O mercado de ações achava-se perdido, dividido. O que fazer agora
que o dono do mundo sumiu? Uns diziam que era truque para testar a fidelidade
dos aliados, outros afirmavam ser o teste de uma nova arma de guerra. E os fanáticos,
é claro, juravam ser o fim do mundo chegando. Cansados de tanto esperar
esse fim do mundo que parecia estar vindo montado no lombo de um jumento, tamanha
a demora, os homens da bolsa resolveram lotear o paraíso, e o inferno
também, para quem interessasse. Assim, se a crise não passasse,
ao menos os negócios estariam salvos, mesmo que a alma perdida.
E seguiram-se longos meses assim...
Nos primeiros dias após a imensa surpresa, o único som que se
ouvia era de sirenes esparsas que percorriam sozinhas as ruas desertas. Na televisão,
reprises de novelas e desenhos animados eram mesclados com plantões repentinos,
que mais repetiam que informavam. Alguns canais exibiam filmes bíblicos
proféticos ou de guerras interplanetárias, julgando o tema mais
adequado à ocasião. As pessoas se olhavam desconfiadas. Mercados,
padarias, açougues, farmácias, lavanderias e sorveterias mantiveram
suas portas fechadas. Ninguém saiu de casa por um longo tempo. Até
que, um dia, alguém resolveu esticar o pescoço e ver o que havia
lá fora. Um outro alguém, ouvindo o barulho da porta a se abrir,
resolveu dar uma olhadinha no que aprontava o vizinho. O outro, que não
é bobo de ficar para traz, foi ver também. Assim, em pouco tempo
centenas de pessoas já estavam de novo a caminhar pela rua. Surpresas
sim, pois que tudo era novidade. Mas, como acontece com tudo quanto é
novidade, a surpresa acabou.
Algum tempo depois a vida começava a voltar ao normal. A cidade, agora
dividida, nunca esteve tão unida. Todos os dias parentes e amigos se
encontravam em frente a grande cortina de vidro para se verem. Mas apenas se
verem, já que a cortina era espessa e não passava som algum.
Passado o susto inicial, logo a economia se acertou. As editoras se apressaram
em apagar dos livros de história o nome daquela nação que
já não existia mais. Qual é mesmo o nome dela? Ah!... Quem
se importa? Já não existe mesmo. Erga-se um memorial, já
pichado, homenageando-a e pronto, está resolvido.
E por falar em pichação, não demorou nada, é claro,
e a cortina começou a ser pichada. Isso no subúrbio, porque no
centro o prefeito contratou artistas consagrados para produzirem grandes obras
de arte. Foi destinada também uma pequena parte da cidade, chamada de
parque da saudade, para os encontros com os parentes que ficaram para o outro
lado. E a vida continua, tem que continuar.
Do outro lado do vidro, uma pequena movimentação começava
a tomar corpo. Com o vidro dividindo a cidade, as partes teriam que se tornar
autônomas. Afinal, a prefeitura com toda a câmara de vereadores
ficara do outro lado. Logo políticos oportunistas de oposição
proclamavam em praça publica, na praça dividida, a necessidade
de se instaurar um novo governo. E vamos às urnas, queimá-las!
Embora os esforços acrobáticos do governo em conter as centenas
de seitas proféticas, apocalípticas e fanáticas que se
proliferavam feito pulgas por toda meia cidade, nada parecia adiantar. O fenômeno,
de caráter surreal, havia mexido com a cabeça das pessoas.
Em uma das ruas, agora transformada em beco, crianças jogam bola. A mãe
observa despreocupada o grande paredão branco que se estende diante sua
janela. Um homem cultiva o quintal. Da algumas picaretadas no vidro, tentando
apanhar as rosas que ficaram do outro lado. Logo desiste. Crianças desenham.
Barracos se escoram à nova parede. Tudo parece indicar que a vida começava
a se ajeitar.
Passados meses, o vidro já não era tão claro. Já
não se via o outro lado nem nas áreas sem pichação.
Estava embaçado, opaco. Quase uma parede branca a se estender ao infinito.
Sem forma de comunicação, aos poucos, parentes e amigos deixados
do outro lado foram esquecendo-se. Era como se o muro sempre estivesse ali,
sepultando o passado. Vida que segue!
A bolsa recuperou-se da queda. Como o fim do mundo não veio, quem comprou
ações do céu acabou falindo.
Um dia, quando tudo voltara ao normal e parecia não haver mais novidades,
a cidade acordou com um novo susto. O muro havia desaparecido. Dessa vez as
pessoas não se esconderam. Foram para a rua e pararam estupefatas frente
ao que havia sido vidro. Olhavam o outro lado. Eram os olhos da multidão
sem visão que formavam o muro agora. Um muro de olhos a mirar, procurar
algo que não estava mais lá . A multidão se alinhava em
sua busca silenciosa. Os olhares se mantinham calados. O que se via? Ninguém
sabe.
Naquele dia as pessoas ficaram até tarde. Não atravessaram o limite
que imaginaram. À luz da fogueira ou de estrelas, observavam o outro
lado. Olhos baços. O vidro já não estava no espaço.
Estava em todos ali. Cacos nos olhos. O que se via? Muros. Cada um o seu.
Do outro lado não havia ninguém. A cidade estava deserta. Prédios
devastados indicavam uma guerra. Nuvens escuras, sujas, pesadas, faziam o tempo
parar, se arrastar para romper a atmosfera densa dos pensamentos torturados.
A terra da brisa jamais seria a mesma. O mundo nunca mais giraria como tal.
Para fronteiras físicas não há mais sentido. Tudo esta
nos olhos de quem vê. Para alguns o muro ainda está lá.
Impenetrável. Perene. Para outros, nunca existiu.
Brizal despertava do sono com portas, janelas e grades nos olhos de seus habitantes.
Se dizer cego é fantasia numa terra onde ninguém mais sabe o que
é ver.
Alguns rompem o casulo, atravessam a casca, fronteira consciente da inconsciência.
Do outro lado, na terra devastada, afundam os pés descalços. Medos
fossilizados, pesadelo dicotômico, tomando forma. Inconsistente sombra
tangível do inconsciente. Tão real como a sensação
de um sonho ruim ao acordar.
Fanáticos já não mais há. A realidade os dizimara.
Sob os escombros da memória próteses de pernas sem dono figuram
a inércia.
Todos caminham, juntos, sempre sozinhos. O tudo e o nada se tornam um, partes
de um todo que é completo em cada uma de suas partes.
Políticos noctívagos preparam-se para retomar o poder. São
cobras que se alimentam de peçonha.
Cada elemento social preserva a síntese de sua sociedade. DNA viral se
multiplicando em organismo alheio. Caminhar por ali era excursionar pelo pior
de si. E todos nós também estamos ali, em nós.
Mais um dia. Ao acordar, Brizal segue pacato. Indígenas preparam cerimônia
ao Deus Sol. Tudo segue tranquilo. A sensação é que
sempre permaneceria assim. O tempo ainda não havia passado. O paraíso
original não fora manchado. O tempo permanece pequeno, criança
a dormir em nossas mãos. Enfadonho, golfando sonhos. Medindo o comprimento
das ameaças. Fortalecendo braços, pés, mãos e pernas.
Tudo é pequeno. Ainda é tempo... Ainda há tempo...
NOTA: Brizal = anagrama de Brasil. O "z" indica o nome do país escrito em língua inglesa, mostrando a marca da influência estrangeira. O conto é uma mistura de crítica política (retrata da colonização aos tempos atuais) e reflexão psicológica individual e social.