"As lágrimas são as palavras da alma"
Joaquin Setanti
Acharam o piá quase morto de frio. Estava com uma grave pneumonia. Olhos
castanhos, murchos, fundos, tristes. Chorava, copiosamente, de ressentimento,
talvez. E as lágrimas em sua face com amarelão, como se estavam
- por um anjo! por um anjo! - de alguma estranha forma congeladas; dando ao
seu rosto pueril a sofrência de uma paleta de amargura e dor terminal.
O policial Dito Lima, num fusca que mais parecia uma imagem de garrafa de crush
itinerante, tinha subido a rua 24 de Outubro, ali, na altura do Clube Atlético
Fronteira, perto da hora do inicio Missa do Galo, e vira o menino com um vazio
saco de farinha de trigo usado na mão direita, como se segurasse uma
roseira de tristices. Vira, em passant, por acaso, de vereda mesmo. Depois,
precisando atender a um chamado do Vereador Chico Preto para um forfé
suspeito nas imediações da malha férrea da Estação
Sorocabana de Itararé, passou novamente na esquina ali pertinho, e, de
través, com o rabo do olho captou de novo o guri e talvez já passasse
da meia noite. Encafifou. Será o impossível? Um alarme divinal
tocou em seu instinto. Só por Deus. Parou o fusca da policia e foi ver
o que estava acontecendo. Sacou o desboque: o menino pobrezinho ardia em febre,
murcho, trêmulo, se não fosse socorrido a tempo certamente que
iria morrer. Era Natal em Itararé, Cidade Poema. Dezembro de um tempo
em que se amarrava cachorro com linguiça.
O piá era filho da Dona Lena. Levava e trazia rotineiramente as trouxas
de roupas que a mãe lavava pra fora, precocemente ajudando como podia
em casa. Trazia as pesadas trouxas de roupas sujas dos ricos, depois levava
tudo de novo, roupa limpinha, fervida em água de bica (o chafariz do
Bairro Velho), sabão de cinzas e anil, passada com os vincos certinhos,
e que entregava direitinho, trazendo os minguados tostões pra suprir
a família grande e pobre, da carente periferia sociedade anônima
de Itararé, pois o pai estava doente, os irmãos menores padecendo,
por meses, mal-e-mal e sempre uma rotineira e rala sopa de fubá com couve
rasgada. Havia carestia no Brasil, anos sessenta, os clientes ricos minguando,
o já parco pagamento dos afazeres da mãe dedicada, entre o tanque
e o quarador, entre o fogão de lenha e os filhos com amarelão.
A Dona Lena confiava naquele primogênito, era o maior, dizia até
que o bendito era abençoado por Deus. Gastava um minuto de prece com
os outros filhos, nas demoradas orações, mas, com aquele seu protegido
era meia hora, precisava investir no menino, tinha fé nele.
Algo doente, Dona Lena, mesmo assim batalhou até de madrugada, fervendo
as roupas no latão velho de óleo de algodão, sobre uma
lajota com fogo no quintal de laranjeira pesteada. Depois, passou a ferro que
era de brasas, com sacrifício, mas ela contava com mais aquele serviço,
tinha planejado, ternura de mãe. A despensa estava vazia fazia tempo.
Sopa de fubá com couve rasgada, polenta maleixa, aqui e ali, banana frita,
uns ovos que mal davam prum bolo mixuruca de banana-caturra e olhe lá.
O céu por testemunha. Se o Dr Aderaldo mandasse mais uma quantia de roupa,
se apressaria em entregar depressinha o serviço, pra ter mais uns cobres
que melhorassem a boia de natal, talvez desse até para comprar
algumas tubainas de limão do Vilela, ou mesmo algum doce de cidra pros
filhos queridos, tão precisados. Instruiu o piá Thiago que, entregando
as trouxas de roupas limpas, recebesse e passasse no Seu Vitorino, fizesse algumas
compras, deu uma listinha, feijão-jalo, tomate, óleo, açúcar
cristal. E também trouxesse a nova renca de roupas sujas pra ela poder
adiantar bem o serviço, varando a noite preciso fosse, talvez entregando
no dia seguinte, mesmo tendo que ferver as roupas de madrugada, mas, ao final
do dia de natal entregaria tudo pronto e receberia a paga costumeira para melhorar
a boia em casa. Coração de mãe. Capricharia nos
torresmos, cuques, tortas de lágrimas. Confiava no guri. Bem instruído,
ele foi levar as pesadas trouxas, como se carregasse o mundão sem porteiras
sobre os ombros miúdos.
Entregou, recebeu, viu que era pouco o que pagavam pelo trabalho, mas atenderia
à solicitação da querida Mãe. Mas, quando perguntou
da nova porção de roupa suja da casa do Dr Aderaldo, foi informado
de que não estavam mais interessados no serviço, contratariam
empregada barata a preço melhor e que ainda faria tudo, depois, estavam
para entrar de férias, iriam pra Iguape, litoral. O menino ficou estacado.
Mal deram um tiau seco e sem graça que fosse, fecharam a porta da casa
rica na cara azeda dele, e Thiago ficou ali, encostado na enorme porta de cedro
e imbuia cheirosa, chorando suas lágrimas, quase beijando a parede, quase
mesmo batendo de novo e pedindo pelo amor de Deus, mais uma leva de roupa suja,
mais uma porção de serviço, a casa precisava, a mãe
contava com aquilo, que fizessem uma caridade. Era Natal e ele estava detravessado.
Sensível. Cismou. Reinou. Não voltaria pra casa. Não voltaria
nunca mais. Não com as mãos vazias. Não ele. Não
daquele jeito.
Ficaria ali. Estava mesmo com tosse de cachorro, a mãe disse, o peito
chiara na madrugada fria do dia anterior, um dezembro chuvoso e friorento em
Itararé. Se morresse ali, não daria desgosto de dizer pra mãe
que não teria mais roupa pra lavar daquela ultima casa freguesa, ou que
iria apertar mais a pobreza em sua casa humilde. Sim, ficaria ali, achariam
o corpo, dariam o dinheiro pra mãe, ela o abençoaria, "vá
com Deus meu curumim, vá morar no céu, piá". Ele não
tinha coragem. A mãe pedira. A mãe contava com mais uma lavada
pelo menos, naqueles tempos de carestia. Pelo menos morrendo, no jantar daquela
noite sobraria mais da rala sopa de fubá com couve rasgada pros irmãos,
para as adoradas irmãs, para a mãe adorável que andava
dodói da angina, pro pai que estava de cama com úlcera varicosa
e assim era impedido de trabalhar. Ali Thiago ficou entrevado, coração
transido, alma aflita, mordido de dor. Só por Deus. Entardeceu, anoiteceu.
Sobre a beirada da porta da frente da mansão do Dr Aderaldo Martins Mello,
na Rua 24 de Outubro, um pacote de renúncias. Foi quando o policial Dito
Lima o achou sem querer e salvou a sua vida, pois a morte já fora avisada
que uma alma pura de Itararé estava para ser levada para muito além
do vale da sombra da morte...
Na Santa Casa de Misericórdia de Itararé foi uma correria danada,
um forfé sem igual, o menino coitadinho para morrer; cobraram doações
de sangue, labutaram, uma enfermeira conhecia a família, foram avisar
Dona Lena, o filho achado em petição de desconsolo estava morrendo
em frente a casa do doutor rico, a mãe preocupada pensava mesmo em chamar
a policia, ia dar parte na cadeia, perguntaram então do porque o menino
que entregava roupa não quisera mais voltar pra casa, como ele ainda
em tratamento emergencial, talvez entre o pesadelo e o sonho, falara, repetira,
suando, descorçoado, determinado, em febre-terçã, preferindo
morrer do que não ter como ajudar a mãe prover o lar.
O Dr. Jonas de Alencar chorou muito depois que o pensou com presteza, mandou
trazerem capado do sitio e que doassem pra família junto com farnel de
milho verde e manta de charque, entre grãos e tulhas de frutas como laranja-pera,
abacate-manteiga, manga-sapatinho, alguns lambaris salgados também. O
enfermeiro Nicanor correu no Armazém do Vereador Tico comprar fiado uma
boa cesta básica pra doar como se fosse o seu abençoado presente
de natal pra família. Todos no hospital, doadores, serviçais,
visitantes, curiosos, gente de coração de ouro de Itararé,
cavalheiros como os reis magos, foram acudir aquela família humilde em
petição de miséria. Muito além de ouro, incenso
e mirra, há o amor, pois o amor é a mão que balança
o berço da humanidade, e a esperança é a inteligência
da vida.
Nunca tiveram um mês tão farto naquela casa de tabuinhas, com todos
finalmente comendo do bom e do melhor, até que a mãe arrumou freguesia
nove e farta, o pai arrumou emprego de acendedor de lampiões de gás
de Itararé, o menino Thiago ficou sendo respeitado pelos seus colegas
do primário no Grupo Escolar Tomé Teixeira, e quando algum piá
maroteiro de rua, com quem joga bola de capotão agora, de ki-chute encardido
no pé, pergunta porque ele não quis voltar pra casa, ele enche
os olhos de lágrimas, abaixa a cabeça, se assunta e não
diz nada. Fica encruado.
Não, não se apruma numa conversa fiada que seja. Sabe só
pra ele que dentro do seu coração, de alguma maneira que inventou
de inventar, sentiu uma estrela amarela de Natal alumiando, e ele queria aquela
bendita luz, aquele dourado celeste de esperança, para enfeitar a choupana
humilde de sua morada na descalça periferia cor-de-rosa de Itararé.
Sentiu que, talvez porque fosse Natal, mesmo morrendo de frio, de alguma maneira
seus familiares não morreriam de fome, pois, algum anjo de pertinho do
Menino Jesus do presépio, em sua fé e defesa, operaria o que o
pastor João Vera da igreja chamaria de um "Milagre".