A Garganta da Serpente
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Moedora de Carnes

(Silvia Carla)

Quando chegava à porta do Frigorífico, a imagem das companheiras de trabalho sempre remetia a mulher à outra visão: um pátio de terra seca, em que pombas nervosas bicavam o chão duro.

Todos os dias, no mesmo horário, lá estavam elas, vestidas em aventais brancos, aguardando a entrada no pavilhão do processamento de carnes. Entrava a primeira, entrava a segunda, entrava a terceira. Caíam de repente, despencando como pedras soltas para dentro da máquina.

Ela se aproximava sempre devagar. Olhava para o fundo da devoradora e contemplava o poço vermelho. Via a espiral que engolia os corpos, girando e girando, à espera de uma nova porção de massa viva. Ela ainda se mantinha no fio metálico da borda e dava um passo para trás. Mas a moedora tinha o mecanismo da astúcia e sempre agarrava a mulher pela barra da saia ou pela manga da blusa. Com lentidão, o ferro tomava-lhe o corpo inteiro. Dilacerava-lhe as carnes dos pés, das pernas e depois da cintura. Nesse momento, seus olhos hipotecados ainda buscavam a manivela carrasca. Emergiam as penas brancas sinalizando resistência. Em vão. Restava-lhe cerrar a vista e se deixar morrer. Ordenava-se o silêncio, acomodava o corpo nas curvas do cone gelado e rodava sem parar, embebida no líquido purpúreo.

Tudo era moído.

Quando o dia acabava, entrevia uma luz de lua na desembocadura. Pelos furos pequenos do inox, aos poucos caía na vasilha. Suas carnes, compactadas em blocos sanguíneos, iam se recompondo da consumição. Ela, então, desatava o avental manchado enquanto se regeneravam as plumas no couro.

Como no início da manhã, de novo enxergava pombas apressadas andejando para outros terreiros. Mas ela, olhando por detrás das peles doídas, distinguia nas próprias patas o anel da prisão. Voejava para casa carregando a corrente. E tinha asas, tinha asas! mas não alcançava a liberdade. Tinha-a como ideação. Todos os dias, quando se advertia para não deixar, em outra vez, tragar-se pela moedora.

Mas sempre tudo sempre era sempre moído sempre...

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