Aproximou-se do lago para tentar encher a grande jarra de metal e foi tomada
de grande alegria, surpresa e incompreensão.
Ela admirava o reflexo nas águas do límpido lago e exclamava:
- Veja meu rosto, que beleza! Eu sou perfeita! Cabelos escuros, pele branca
e olhos verde oliva. Que injustiça fazem comigo! Como alguém tão
formosa e meiga pode ser uma escrava?
Arremessou o jarro com violência contra a árvore e partiu furiosa.
O impacto foi tão forte que a árvore balançou e quase me
derrubou.
Meu medo era devastador. Meu coração somente desacelerou na medida
em que os passos daquela mulher tornaram-se inaudíveis.
Todos os dias a mulher retornava e prostrava-se diante do lago, admirando sua
imagem. Os dedos enrugados acariciavam seu rosto.
Como Narciso, aquela mulher apaixonara-se pelo reflexo que via nas águas
e chorava lágrimas copiosas contra as injustiças sofridas. Lamentava
as várias horas que seu branco rosto ficava exposto ao sol estando sujeito
a torna-se queimado e enrugado como suas mãos.
Ela dizia que seus cabelos escuros, longos e sedosos lembravam um pequeno riacho
em uma noite sem luar.
Que antes ela nunca notara a bondade e meiguice que seu olhar expressava, inicialmente,
atrás de certa apreensão. Ou seria medo? Notou que com o passar
dos dias aquele olhar demonstrava compaixão e depois amor, que ela correspondia.
Passava longas horas acariciando aquele reflexo que se desmanchava a cada toque
de suas horrendas mãos e beijava com ternura aquele rosto formoso.
Fantasiava que o príncipe que a pouco visitara seu vilarejo ficaria apaixonado
por seu belo rosto.
Certo dia, seu êxtase foi interrompido quando um pequeno grupo de mulheres
se aproximou do lago para fazer um piquenique.
- Louca! Saia de nossa presença! - disse a mais jovem enquanto dava uma
sonora gargalhada.
A mulher levantou assustada e colocou-se como um animal emboscado junto à
árvore. Vociferava.
Soltou uma gargalhada cruel e disse:
- Ele há de me querer e ai eu terei minha vingança!
- Ele quem sua louca? - retrucou a jovem.
- O príncipe... Éééé - respondeu com uma
voz que se assemelhava ao silvo de uma cobra.
- Ora não me faça rir! A insanidade dominou você! Nem você
tem coragem de se olhar no espelho. Você quer ver o seu reflexo? - indagou
a jovem.
- Eu já vi meu reflexo no lago e eu sou bonita. Eu sou mais bonita que
você. Ele há de me querer. Eu sou perfeita! Cabelos escuros, pele
branca e olhos verde oliva. - retrucou em êxtase.
- Ah! Pare de discutir com essa louca! Ela deve ter escutado algum dos boatos
que estão circulando pelo mercado de que o príncipe vai ser casar
com uma jovem com essa descrição e está delirando. - disse
a mais velha.
- Também ouvi essa noticia. Dizem que ele decidiu retornar ao seu reino,
pois deveria enviar seus empregados para prepará-la antes da apresentação
oficial. - comentou uma das jovens.
- Porque eu não posso aparecer com esses trapos que sua mãe me
veste - respondeu a mulher.
- Moura, louca, feia e horrenda! Esse lago somente pode ter refletido alguma
beleza se ele for mágico. - disse a mais jovem enquanto colocava o rosto
da Moura em frente ao espelho.
A Moura emitiu um grito de dor imensa. Eu senti a dor na mesma proporção.
Eu era a jovem que o príncipe tinha escolhido e enquanto ele estivesse
ausente, eu deveria permanecer escondida na copa da árvore que ficava
às margens de um lago, local onde nos conhecemos.
Foi então que ela apareceu e meus sentimentos de alegria e êxtase
pelo casamento deram lugar ao pavor e medo. Pude ouvir os sons daqueles passos
arrastados, a respiração difícil e ofegante que lembravam
os grunhidos de um porco selvagem e o soar de um metal. Pude vê-la chegando
com seu andar trôpego e cambaleante, fazendo força para arrastar
um grande jarro de ferro com suas mãos grandes, grosseiras e cobertas
de verrugas. A cabeça tombada para direita fazia com que seu rosto fosse
coberto pelos longos cabelos sujos e desgrenhados.
Agarrara-me à árvore e minha mente já não distinguia
se me apoiava em um de seus ramos ou naquilo que poderia ser o braço
de minha mãe.
Desde sua aparição eu fui transportada para a história
e permanecia ali assustada, oculta na copa da árvore.
Um sentimento de compaixão e amor deu lugar ao medo que eu tinha daquela
esfarrapada e suja mulher, que apesar da suposta horrenda aparência deveria
ter um belo rosto, que eu aprendi a amar contemplando suas demonstrações
de afeto diário aquele reflexo.
Certo dia, quase pude vê-lo. Como que tomada por um êxtase divino,
ela lançou seus braços para o alto e levantou sua cabeça
em direção ao céu tornando assim, seu rosto quase visível.
No entanto, seu movimento foi tão rápido que seu belo rosto permaneceu
uma incógnita para mim. Amava aquela pobre mulher que deveria ter um
rosto semelhante ao meu.
Naquele momento, quando vi aquelas megeras maltratando-a e diante de seu sofrimento
e seu grito de dor, não pude conter a minha indignação
que denunciou a minha presença na árvore.
Imediatamente desci da árvore e abracei a Moura
Não pude deixar de notar que as condições de higiene da
Moura eram precárias e que seu corpo e seu hálito exalavam um
odor impossível de ser qualificado. Talvez o mais próximo fosse
o de um cadáver em decomposição.
Enquanto repreendia aquelas jovens pelas grosserias, injustiças e humilhações
contra aquela mulher, pude sentir que ela me olhou e sussurrou.
- Meu belo rosto...
A Moura me empurrou com violência contra o chão e partiu rapidamente
com seu passo trôpego. Reconheci o uivo de dor que ouvi durante a noite.
Na manhã seguinte fui acordada por um barulho estranho. Eu fiquei ali,
inerte, imóvel, terrificada enquanto aquele ser horrendo e esfarrapado
subia rapidamente a árvore como se fosse um lagarto.
Ela parou de cócoras diante de mim. Entre os cabelos que cobriam seu
rosto pude notar dois pequenos olhos que me fitavam expressando dor, crueldade
e vingança. Pôs-se então a me cheirar. Eu devia exalar o
cheiro do medo.
Enquanto ela me cheirava acariciei seus cabelos tentando enxergar seu rosto
que deveria ser semelhante ao meu pelas inúmeras descrições
que ela fazia ao se olhar no lago.
Meu coração parou e eu soltei um grito de terror. O rosto da Moura
era torto e enrugado, marcado por cicatrizes e repleto de horrendas verrugas,
a boca sem dentes, mas a faísca de ódio que vi brotar de seus
minúsculos olhos foi o que mais me aterrorizou.
Ela então sorriu e tocou suas vestes. Delicadamente enfiou seus dedos
horrendos no meu cabelo como se o estivesse penteando. Não reagi.
A partir daquele encontro, os contos de fadas perderam todo o encanto para mim
até porque meu mundo de contos de fadas também ruiu.
Tive uma infância de contos de fadas e de certa forma, eles realmente
faziam parte da nossa rotina. Toda noite, antes das orações, minha
mãe lia um desses famosos contos para nós.
Eu e minha irmã nos colocávamos cada uma de um lado da minha mãe
e eu encostava minha cabecinha em seu ombro procurando ficar o mais aninhadinha
possível.
Dentre tantos momentos mágicos que eu vivia naquele lar, aquele era seguramente
um dos que eu mais apreciava. Até a noite em que ela apareceu em um dos
livros de contos de fadas...
No conto original, a bela moça tornasse uma pomba enquanto aquela aberração
da natureza tomava seu lugar e aguardava o príncipe.
Não foi o que aconteceu no final do meu conto.
Depois de colocar seus dedos horrendos entre meus cabelos ela puxou minha cabeça
para trás e eu pude ver o reflexo do sol na faca.
Fechei os olhos esperando que a faca rasgasse minha jugular enquanto ela aos
prantos molhava meu rosto com suas lágrimas enquanto murmurava... Meu
rosto, meu rosto.
A Moura soltou um uivo de dor e um grito enquanto batia com a faca no peito
e chacoalhava minha cabeça.
Nunca imaginei que era meu reflexo nas águas que a Moura admirava. Entendia
a dor que ela sentia talvez por ter se iludido com uma beleza que não
era sua. Lembrei que a inveja é o pior pecado e que suas consequências
costumam ser sempre danosas.
Abri os olhos enquanto a Moura puxa novamente minha cabeça para trás.
A última coisa que vi foi o seu horrendo rosto.
O príncipe e sua comitiva ouviram os gritos e correram em nossa direção.
O cenário que encontraram era dramático.
Uma mulher estava prostrada sobre o lago banhando o rosto enquanto outra gritava:
- Meu belo rosto! Meu belo rosto! Nunca mais irei vê-lo.
Ele reconheceu os longos cabelos sedosos da mulher que se banhava. Correu ao
seu encontro e a envolveu em seus braços enquanto ela cobria o rosto
com as mãos. Notou que havia sangue em suas delicadas mãos e pressentiu
o pior.
Ficou chocado com o que viu. Dois riscos que formavam um X foram feitos de ponta
a ponta em seu rosto.
Ao olhar para o chão viu uma horrenda criatura prostrada com uma faca
ensanguentada ao seu lado. Seus olhos estavam perfurados o que a deixou
ainda mais horripilante.
A jovem contou que aquilo fora trabalho da Moura que enquanto cometia aquela
atrocidade, vociferava:
- Agora vai ficar igual a Moura! Agora vai ver na água o reflexo da Moura!
Quando terminou, a Moura largou a faca e começou a gritar:
- O que fiz com meu rosto? Meu belo rosto? A Moura está feia de novo!!!
Desesperada desceu da árvore e se prostrou diante do lago buscando o
reflexo do belo rosto nas águas.
A única coisa que pode ver era um rosto ensanguentado resultado
de sua violência mas que ainda assim mantinha o semblante de compaixão
e amor em meio a dor.
A Moura sofria, se contorcia e gritava:
- Moura estragou seu belo rosto. Moura não quer ver mais isso!
Eu ainda tentei descer da árvore para impedir a Moura, mas não
cheguei a tempo.
Ela desferiu dois rápidos golpes contra os olhos.
A Moura ouvia o relato e dizia:
- Moura está nas trevas. Moura só vê a noite. Meu e só
meu é o príncipe. Príncipe ama a Moura assim. Moura qué
o príncipe. Príncipe ama a Moura. Moura sabe. Príncipe
ama o belo rosto da Moura.
O príncipe desembanhou a espada para matá-la. Não permiti.
A dor da Moura já era imensa e era seu pior castigo.
Os ferimentos no rosto foram curados mas as cicatrizes na alma permaneceram.
A Moura me aprisionou em seu conto.
Passei a encontrá-la nos mais variados tipos de lugar e pessoas. Ela
está ali, presente, silenciosa, acariciando meu cabelo enquanto aguarda
encontrar o momento certo para me atacar. Posso reconhecer aquele olhar invejoso
e rancoroso quando o vejo. A inveja é efetivamente o maior de todos os
males.
Algumas vezes eu a enfrento, a faço enxergar a verdade de sua feiúra
e ela foge desesperada. Outras vezes sou eu que fujo. Em outras eu me permito
ser consumida por sua maldade, permito ter meu rosto dilacerado pela sua fúria
e saio carregando na alma as cicatrizes de sua inveja e de sua loucura.