A Garganta da Serpente
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Cavernas

(Silvia Câmara)

Procuro desdormir. Como um vaga-lume inquieto sucede-se a si próprio, assim eu, tento expulsar o silêncio amortecido de um corpo que jaz na sombra da lua vaga.

O vento, flutuando na incerteza de outra vaga, sacudindo as gelosias, acorda-me recitando trechos daquilo que poderia ser a voz do meu pensamento, versos que são relembrados pela minha memória que vai se aquecendo pela lembrança. Penso então no que tem sido a minha vida e assim, poderia filosofar por toda a eternidade, pois se pretendo mergulhar na minha alma, esbarro a meio caminho na consciência, portanto não posso ter uma ideia desavisada de mim.

Tudo o que me lembro é que há em mim uma memória involuntária, dos olhos, dos ouvidos, das mãos. Todos tão esplendidamente lotados de recordações, às vezes enevoadas, às vezes despertas. Ah! Mas o que posso fazer é evocar essas lembranças dos vastos palácios onde repousa a memória. Mergulhar nas suas cavernas e escancarar os portões que te fecharam, sésamo.

Outras vezes a minha caverna está na infância, no cheiro do mato, da flor distante recriada no tempo. Agora existe uma diferença: a descoberta é o contrário da recordação. Posso recitar em silêncio e olhar o vale que aquele mar abriu. Ir mais além e ouvir os sons das ondas e das gaivotas e ver o céu suspenso, sem gota alguma para despencar, cheio de silenciosas ermitagens. E se caísse uma única lágrima, traria um odor de silêncio e quietude.

Depois de certo tempo posso perceber que a cor da memória pode cambiar do marrom escuro de um móvel recém-envernizado ao bege-claro dos escritos guardados há muito tempo. Mas se não souber olhar bem dentro dessa espécie de porão, o que se verá serão sombras. É que através da névoa só se vê sombras. Mas na aurora, quando nasce o sol, como é lindo ver os botões das flores como olhinhos querendo enxergar o mundo através da neblina. Será que a felicidade reside em não esperar nada mais da vida do que aquilo que ela pode nos dar? Será? Mas não se pode ter dois eus, um encarregado da ventura e outro da desventura. Então, não quero mais ver esse sol de puro artifício que aparece nos meus mais encantados sonhos. E é por isso que desdurmo.

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