Noite fria. No inferno de gelo, meias e cobertores não bastavam para esquentar
os pés. Diante do silêncio das horas mortas, a casa gemia vez por
outra como quem se encolhe sob o peso opressivo do céu fechado. Neli acordou
com um sopro nítido e contínuo qual um estertor macabro:
"Aaaaaaaaaaaaa..."
Estranho é que não havia sonho precedente, nem ideia fixa,
nem medo sem nome, somente o quarto escuro.
Passada a letargia, ela percebeu o tique-taque do despertador marcando as horas
de forma lenta e soturna. Não bastasse a sensação de iminência,
escutou novamente a voz, agora mais próxima:
"Docinho... Docinho..."
O pânico se instalou.
Neli ficou na escuta, antevendo um ataque, uma violência; mas nada, somente
o frio e uma presença inoportuna eram fato.
A vigília se deu embalada pelo madeirame do telhado que rangia, sinistro.
Mais tarde, o cheiro repugnante de enxofre invadiu o cômodo. Temendo o pior,
ela chutou as cobertas e foi ver a criança.
Ao ser acionada, a lâmpada que pendia nua sobre o corredor calou-se para
sempre. Xingando em pensamento, a mulher tateou até o quarto do enteado.
O abajur lançava luz mortiça no ambiente. Se aproximando do berço,
ela percebeu o pequeno de lado. Ao passar-lhe a mão nos cabelos foi tomada
por um horror indescritível, vertiginoso. Na ponta dos dedos, a rigidez
dos tecidos, a total e completa imobilidade.
Instantaneamente, Neli levou as mãos ao rosto, cobrindo os lábios.
Seria aquele um sonho ruim? Uma alucinação? Uma prova?
Desnorteada, abriu as cortinas e percebeu que além da vidraça, reinava
a escuridão. Uma nuvem espessa como petróleo envolvia a casa.
"O bebê está morto, a casa isolada e ele vem me buscar"
- pensou, retornando ao corredor que pareceu-lhe estranhamente deformado.
Ao fundo, uma cena irreal. Flutuando na direção da personagem, um
castiçal com três velas acesas pairava no ar. Estática, a
penitente aguardou o desenlace da trama.
Bem próximas, as chamas revelaram a mensageira. Era uma velha com os cabelos
grisalhos amarrados num coque, vestindo um traje de lã cinza. Na mão
direita, a senhora trazia o símbolo da trindade; na esquerda, um punhal
de lâmina fina e afiada.
Ela se aproximou lentamente e disse de forma calma e reconfortante:
"Não se preocupe, minha filha. Está tudo bem. Vai ser muito
rápido. Você não vai sentir nada. Coisa bonita, no meio de
uma cerimônia."
Neli deu um passo atrás e a velha tornou:
"Não tenha medo. Agora é só fechar os olhos. Isso...
Feche os olhos. Feche os olhos, Neli. Feche os olhos."