A Garganta da Serpente
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Embaixo do pé de butiá

(Severo Brudzinski)

Durante dois dias Ítalo ardeu em febre, alternando momentos de silêncio resignado e falações intermináveis, em meio ao delírio que lhe arrebatava.

A esposa mantinha as janelas abertas, conforme indicação do médico. Vez por outra, aplicava uma compressa fria para conter a temperatura, no entanto, por maior que fosse sua dedicação, a cada instante o marido parecia mais entregue e abatido.

Fim da tarde, o quadro amainou. A febre se manteve nos trinta e oito e o pulso, apesar de fraco, mostrou constância e alguma força. Judite esquentou a janta. Ítalo comeu a canja rala com apetite.

- Se tivesse se agasalhado como eu lhe recomendei... - lamentou ela.

O outro respondeu com uma careta e aconchegou-se na cama, não sem gemer pela dor nas costas.

- Vou dar uma passada na casa da comadre Rosa. Hoje tem novena...

- Vai, mulher! Me deixa! - tornou ele, rude, num fio de voz.

Ela se ofendeu com a grosseria, mas diante do quadro, deixou por isto mesmo; cobrindo as costas com o xale, saiu em silêncio.

Prostrado pelo cansaço, o moribundo adormeceu. Em instantes, sonhava com o trabalho.

Seu Vicente parecia mais furioso que de costume:

- Cuidado com esta prancha, cachorro!

Constrangido com o tratamento pouco cerimonioso, Ítalo se encolheu na operação da serra. Sem motivo aparente, a tábua correu pela lâmina afiada, se espatifando contra a parede do barracão.

- Eu te falei, cachorro! Te falei pra ter cuidado! Agora você vai pagar... - disse o chefe com a ira estampada na face, indo ao encontro do funcionário com uma acha de lenha na mão. Esse, procurou se proteger da maneira que pode, esperando o golpe, mas, para seu espanto, quando tornou o olhar ao empregador, encontrou-o com uma ripa de pouco mais de um metro a atravessar-lhe o peito.

- Foi você! Foi você, seu cachorro! Olha o sangue... Olha o sangue na tua mão... - gritava o homem esticado no chão sujo da fábrica.

- Não fui eu, seu Vicente. Não fui eu. Foi um acidente...

Ítalo teve um sobressalto e sentou na cama.

- Em casa... Eu estou em casa - repetia para consigo, sentindo o coração disparado e o corpo banhado em suor.

Tornando ao leito, secou a testa no sobre lençol e procurou esquecer a imagem do patrão a praguejar como um endemoninhado. Quanto ao emprego, tinha sua dispensa como certa. "Encontrar serviço aonde?" - perguntava-se. Na cidade, a serraria era a única fonte de renda para quem não tinha estudos. Entretanto, ele sorriu por um instante e conjurou em voz baixa:

- Deus tem mais pra dar que o diabo pra tirar...

Pronunciada a velha fórmula, sentiu travar a glote e todos os pêlos do corpo se eriçarem. Hirto, ao pé da cama, um homem todo de branco o observava atentamente. O espectro se mantinha imóvel, contemplando o que agonizava, com um olhar frio, distante. Depois de um minuto ou dois, o vulto mirou o corredor como a indicar algo e saiu lentamente.

Paralisado, Ítalo repetia numa ladainha sem fim:

- Jesus Cristo... Jesus Cristo... Jesus Cristo...

O resgate veio em forma de lembrança:

"No tempo em que o pai dessa aí..." - dizia a falecida sogra, referindo-se à filha - "...trabalhava na Rede, um fulano que o velho conheceu na estação pediu pouso aqui em casa. Tenho certeza que o tal deve ter dado um bom dinheiro pro teu sogro, pois do contrário ele nunca permitiria outro homem sob o mesmo teto, nem que fosse o bispo. Só sei que o velho mandou-me avisar que teríamos visita e que era pra eu arrumar o quarto de hóspedes e preparar uma galinha com polenta. O homem da estação não era nem moço nem velho, mas pela pinta, devia ser rico. Era quieto, muito quieto. Três dias ele ficou aqui em casa. Três dias trancado no quarto, com as janelas fechadas, andando de um lado para o outro. A gente sabia da romaria pelo toque-toque no assoalho. Na segunda noite, quando eu fui levar um prato de sopa pra ele, empurrei a porta vi o homem mexendo num bauzinho de imbuia. O que é que tinha dentro? Eu conto: um sonho. Um mar de moedas de ouro, correntes, braceletes e pedras, muitas pedras. O homem, ao me ver entrar, fechou a caixa e perguntou o que é que eu queria. Eu mostrei a comida e ele mandou eu colocar o prato em cima do criado mudo e sair. É... Na noite do terceiro dia eu escutei alguém bater numa das janelas. Quando fui levantar o velho tapou minha boca e me segurou bem firme. Disse no meu ouvido pra eu ficar quieta e deitada. Ele tirou o revólver debaixo do travesseiro, o mesmo que ele usava quanto tinha conferência de trecho, e ficou ajoelhado na cama mirando a porta. Nunca vou me esquecer... Eu escutei uma janela abrir e alguém sair pra rua. Uma voz rouca perguntou do baú e o nosso hóspede respondeu que estava num lugar seguro. Que mais? No dia seguinte encontraram o homem morto perto da estrada de ferro. O velho nunca comentou nada. E eu é que não era louca de perguntar e levar um tapa na cara. Só sei que durante um bom tempo, ele revirou a casa, do porão ao sótão. Subiu em cada árvore, mexeu em cada canteiro de flor. Se ele estava procurando o tesouro, não achou. Achou mesmo foi uma tuberculose e morreu dois anos depois."

Instigado pelo enredo fantástico, no entanto verossímil, o doente se ergueu da cama como pode e seguiu até a porta. No fim do corredor o espectro esperava impávido. Ítalo estacou. Os calafrios próprios da doença, misturados ao pavor da aparição, percorriam lhe o corpo em ondas de arrepio. O homem de branco seguiu pela porta da cozinha. Ítalo seguiu atrás. O fantasma saiu para o terreiro. Ítalo saiu no encalço. A uns trinta metros da casa, ao lado do pé de butiá, a visagem apontou para a base da palmeira e desapareceu.

Ítalo ficou parado, esperando uma nova aparição ou coisa que o valha. Nada. Alucinado com a ideia do ouro e das joias, o moribundo vasculhou o entorno e não encontrou coisa nenhuma; nenhum buraco no tronco, nenhum morrinho na base. Então, tomando coragem, buscou no paiol uma cortadeira e pôs-se a cavar.

No vão entre duas pedras, que os de casa usavam de banco no proveito da sombra em dias quentes, o aço da pá encontrou a madeira de um caixote. Com um pouco mais de esforço, o baú pode ser retirado e aberto. Ítalo não acreditava que todo aquele ouro estivera enterrado bem debaixo do seu nariz por anos a fio. Ele gritou e dançou, contente por seu achado. Estava salvo.

Judite, que acompanhara a novena até o final, ao entrar pelo portãozinho do jardim, encontrou o marido esticado sobre a terra, já frio, todo sujo, bem debaixo do pé de butiá.

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