A Garganta da Serpente
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Um conto

(Rezendes)

Iria, de qualquer modo, para além daquelas montanhas, sabendo perfeitamente que o vento levara três vezes mais a lá chegar do que eu levaria se fosse agora, lento e mudo, pelos caminhos. Eu sabia. Não soprava uma aragem que fosse. Nada mais me prendia àquele espaço agora vazio e, por isso, a sede de novas águas percorria toda a minha memória, fazendo aumentar cada vez mais a espera. Era isso. A espera. Dentro de todo o abismo que avistava daquele sítio, cabiam todos os saberes, todos os monumentos que, depois de ter erigido, afastara do meu tacto, já farto daquelas formas de acaso.

Agora podemos dizer que tudo aquilo fazia apenas o sentido que a escrita usual assumia naqueles tempos áureos, onde o prazer ressurgia de novo tantas vezes quantas as do desejo. Era de noite e cansava-me, até ir, por fim, encostar a cabeça a um ramo mais alto e, daí, observar o mundo. Nessa altura nunca pensara a sério em penetrar no sono para daí extrair as mais diversas ilações. Nem sequer pensara nisso. Era como se fosse natural. Um hábito já prolongado pelas longas memórias dos voos altos por cima das paisagens mais diversas e fascinantes. Além do mais, havia a escrita. A intrigante possibilidade de lembrar mais vezes do que o esquecimento seria capaz de esquecer. Conseguir ir por aí fora a comunicar com aquela facilidade e fluência a fascinação do medo, contar aos outros a consciência dos limites que se construíram uma vez à nossa volta.

Dizia isso todas as vezes que me encontrava naquele lugar mágico a que chamavam casa, e onde os olhos se voltavam para todas as coisas através dos vidros. Dizia a velha sabedoria que as coisas nasciam lá longe, algures nesses lugares de terra invadida pelos cheiros dos dedos que lá cavavam o silêncio. Era por isso que, cada vez que observava um desses objectos, obedecia a um ritual marcado pelos passos que eu podia dar à sua volta. Logo o seguir, escapava-me pela janela aberta para o ar úmido da tarde, seguia sempre esse caminho de me orientar para o lado das montanhas.

Escrevia, ou melhor, imaginava-me a escrever longas cartas de viagem, longas descrições desses memoriais que havia de deixar ao pé do fogo até que a tinta secasse. Nada me afastava desse hábito, já tão longínquo ia o seu início. Nada me impedia de dizer o rigor desses pensamentos que, constantemente, ora me afastavam das águas de onde trazia os alimentos ora me levavam cada vez mais perto desse grande mistério. Então todo o corpo se empenhava, lançado a toda a velocidade até penetrar a superfície imensa e líquida, buscando depressa novamente o ar necessário.

Passavam-se anos sem que houvesse a menor sombra de dúvida, sem que nem mesmo houvesse a noção dos anos. Ia tudo calmo pelos seus lugares, tudo parecia esquecer as vozes incessantes que ditavam. Permaneciam então os textos imaginários que ia arrumando com o cuidado e o vagar de quem recolhe o ar, devagar, para o saborear pelo corpo.

Pensava então frequentemente nesses caminhos árduos que se lhe levantavam à frente dos olhos, caminhos juncados de sombras aterradoras, de terra batida e pedregosa, que o desconhecido tornava ainda mais terríveis. Aí, nem o saber penetrava, nem a escrita. Desses espaços, recolhiam-se por vezes alguns testemunhos, mais por superstição do que por observação directa de quem de lá viesse. Sabia que a curiosidade geral se voltava para esses poucos relatos de viajantes desconhecidos que a tradição ia alimentando de novas versões, aqui e além reconhecíveis pelo já estafado uso a que se haviam submetido ao longo dos tempos. Alguns figuravam até nos anais que me imaginava orgulhoso de possuir, podendo neles seguir a investigação desses fantásticos relatos algumas vezes mergulhados em descrições históricas ou biográficas.

Dos dias pensava que estava tudo dito, a não ser quando surgia um novo foco de atenções para qualquer possibilidade de anormalidade que o dia tornava mais atraente, já que a noite impedia de fazer outra coisa que não fosse percorrer os espaços mais profundos de cada um de nós. Nas noites, recorríamos então aos dotes de retórica para, reunidos em grandes grupos, ditarmos as aventuras no inconsciente de cada um ou de todos. Guardava ainda na memória, ciosamente, algumas daquelas conversas que, mais tarde, teria talvez o ensejo de analisar detalhadamente.

Depois veio a chuva. Invadia os terrenos, as plantas, deixava um odor particular nos corpos molhados. De quando em quando, ouviam-se ecos de navegantes que se haviam afoitado a essas tempestades, pelo menos assim contavam as lendas perdidas das sua origens, algumas lembradas e outras não, ou por já esquecidas ou por incompletas.

Lembrava-me de uma vez me ter admirado por ter tido a oportunidade de observar uma dessas lendas vivas, tão raramente esses épicos heróis se aproximavam e se deixavam entregar à curiosidade de um grande número de invejosos inferiores, assim eles consideravam quem não os igualasse em feitos, idade e viagens. Para esse incomparável mortal, eu não significava mais do que uma esponja ávida de conhecimentos que, mais tarde, iria recontar ou reivindicar como meus. A experiência ditava esse juízo que eu lamentava ser falso e um pouco apressado. Havíamo-nos tornado bastante próximos um do outro, amigos até, depois de desfeita aquela primeira impressão. Hoje, agora, era ele que contava por mim.

Era ele eu. E contava isso mesmo.

Ao longe, avistara um pouco de terra seca, levada pelo vento até à proximidade do mar, de tal modo já a areia se misturara com os pequenos grãos de terra, numa estranha argamassa que começava agora a ultrapassar a zona de areia, espalhando-se, terra dentro, em direcção às casas. Os homens reuniam-se por vezes para decidir que destino dar a esse assenhoramento das suas poucas pertenças. Todos os meses. Haviam-se decidido, então, pela construção de um dique, lentamente, pedra após pedra, que o mar ia galgando também devagar, mas calmo e certo. Apetece-me voar. Arrumo então as memórias com estes dizeres que me haviam construído, assumo à beira da caverna, abro as asas e sei flutuar num ar tépido e azul de verão, vou afastar-me um pouco mais, até mergulhar certo e seguro na onda que escolhi previamente; preso no bico longo e duro trago então um peixe.

(Junho, 1979)

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