Vocês não me enganam. Ninguém me engana. Não pense
que sou bobo, nem tonto, nem maluco. Desde ontem que tentam me fazer pensar que
sou incapaz. Se assim não fora, como se explica aquele carro que emparelhou
com meu ônibus? Sim, aquele vermelho onde estava escrito FOX. Esta mania
que todo mundo tem de escrever o nome nas coisas como se eu fosse analfabeto.
Analfabeto não, mas abestado. Tá na cara que estavam querendo me
confundir pois desde 7 anos que estudo inglês e sei perfeitamente que FOX
é RAPOSA e não Carro. Ademais, reconheci logo que era um carro pois
tive a oportunidade de prestar atenção no emblema, e eu sou ainda
capaz de distinguir um carro da marca Wolksvagem de um Fiat, Renault, GM, Ford,
Chrysler e toda a sorte de modelos que ainda irão existir.
Percebo que existe uma tentativa de alguns em procurar me confundir seja lá
... Ué! Não acredito! O que está fazendo aquele navio sobre
o edifício? Ué! O navio sumiu. Começo a desconfiar daquela
visão, viro-me para o meu vizinho de banco e pergunto-lhe se viu um navio
em cima do prédio... seu olhar espantado me desanima a continuar e decido
descer em frente a Casa & Vídeo. Entro por aquelas ruas de Botagogo
mas o ângulo, de quem olha de baixo para cima, é insatisfatório.
Ensaio uma ou outra pergunta a porteiros vários e desisto. Caminho um
pouco a pé até chegar no escritório.
Foi um dia especialmente agitado. Tive que colocar a papelada nos arquivos
e ordená-los ... Engraçado ... esta tarefa que sempre me fora
tão agradável este dia me pareceu monótona, cansativa,
insuportável. Na hora do almoço sentei-me de frente para um colega,
almoçávamos sempre juntos; a princípio achei que me olhava
meio esquisito mas depois não ... conversou comigo normalmente, falou-me
das suas preocupações com os filhos ... em geral ele sempre se
abre mais comigo do que eu com ele. Então resolvi aproveitar a situação
de camaradagem e de chofre lhe contei o que tinha visto sobre o edifício
ao vir para o trabalho. "-Navio?" Sim um navio! - disse eu. Antes
que pudesse comentar qualquer coisa comecei com uma longa explanação
de como, a meu ver, este teria ido parar ali há mais de 40 m acima do
nível do mar. Comecei fazendo-lhe uma descrição minuciosa
das eras geológicas, dos movimentos tectônicos e consequentes
mudanças de nível de base. Para ilustrar, lembrei-lhe das profecias
do Mestre Salú e, de uma certa forma, também daquele homem o Conselheiro
de Canudos que previu, e que Glauber conseguiu colocar de maneira magistral
em DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL - ou seria Grande Sertão e Veredas?
ou ainda, quem sabe, Os Sertões - o certo é que afirmavam que:
O SERTÃO VAI VIRAR MAR E QUE O MAR VAI VIRAR SERTÃO.
Como achei que tinha sido bem claro nas explicações e, tendo
a campainha avisado o final da hora do almoço, disse-lhe que maiores
detalhes lhe daria, caso o desejasse, na segunda-feira. Demo-nos mutuamente
um tapinha nas costas e voltamos para as nossas respectivas salas. Pensei se
não seria conveniente que no intervalo, entre a saída do trabalho
e o concerto na Sala Cecília Meirelles, aproveitasse para fazer novas
incursões aos porteiros, mas desisti diante da garoa que poderia ser
o prenúncio de uma chuva forte, destas de final de verão. Dei
um pulo no Shopping Botafogo comi qualquer coisa que, ao mesmo tempo em que
postergaria a minha fome, não me faria correr o risco de dormitar durante
o espetáculo.
A chuva prevista compareceu e com isso comprometeu uma circulada pela
Lapa. Fui direto para o Ernesto em busca de uma canja quentinha para amenizar
a gastrite que, se bobeasse, viraria uma úlcera. Um táxi benfazejo
me conduziu à Gamboa, para o banho e para cama. Confesso que antes de
dormir ainda pensei um pouco nas características do Navio, se poderia
ser um Couraçado ou um Destroyer. Dormi muito bem.
Acordado pelo galo da vizinha senti um irresistível desejo de voltar
ao Shopping em busca de umas meias que combinassem com a minha camisa nova azul
natiè. Pensei em pegar o ônibus 121 que, saindo da Praça
da Harmonia, iria direto pelo Aterro e que além de ser mais rápido,
me evitaria tomar duas conduções. Depois refleti e achei melhor
dar uma caminhada, problemas de colesterol, cruzar o Túnel João
Ricardo e na Central pegar o meu velho e conhecido 154 ... hoje percebo que
tinha a ver com a possibilidade de conferir se o Navio ainda estaria lá
... E estava.
Como vivia sozinho e não tinha hora para chegar em casa ... almocei
... fui ao cinema (estranho que não me lembro que filme assisti) e lá
para as cinco horas da tarde fui dar uma sapeada na Lapa. Sentei, para variar,
sozinho em uma mesa, mas, à medida que foi enchendo as pessoas iam ocupando
os lugares e calhou de sentar na minha mesa dois homens e uma mulher. Eu já
havia tomado um par de chopps e isto me liberou para comentar com eles
a história do Navio. Na verdade não sei bem como começou
a confusão. Acho que eles começaram a debochar de mim. Dizer que
eu estava era ficando louco ... Parti pra cima deles e daí em diante
não me lembro mais nada. Saí completamente do ar e me acordei
numa situação absolutamente estranha para mim. Na verdade estou
abrindo os olhos neste momento. Estou deitado numa cama e sinto que não
tenho como esticar os braços. Sinto que estou abraçado a mim mesmo.
Olhando para cima da mesinha de cabeceira vejo uma espécie de santinho,
firmo os olhos e consigo ler: Santo Expedito. Forço a lembrança
e me recordo das colegas de repartição - mas que re-partição?
- que se apegavam a Santo Expedito por ser o santo das causas impossíveis.
Pensei se ele estaria ali para me ser de alguma valia. Registrei vagamente uma
parede verde-água e mergulhei novamente no sono.
Quando acordei, dei de cara com uma mulher de uns 35 ou 40 anos, bonita, morena
com cabelos negros e cacheados. Olhou-me no fundo dos olhos e disse: "
Sou Sylvia Helena e estou aqui para ajudá-lo". "- Ajudar-me
a que?" consegui murmurar num esforço incomum. "-Naquilo que
precisar", disse ela. Tentei imaginar que tipo de ajuda àquela mulher
estaria achando que eu precisava. Era uma bela mulher e não gostaria
de decepcioná-la ... mas não atinei com nada. Aos poucos fomos
percebendo que eu não sabia quem eu era e que aquela vaga lembrança
de uma repartição não passava daquilo ... Para ser sincero
me lembrava perfeitamente bem do Navio mas, não sei porque, talvez por
uma questão de segurança, não fosse seguro mencioná-la
para uma estranha.
Saí dali para uma unidade de Terapia Ocupacional onde tive a oportunidade
de desenhar uma centena de vezes a imagem querida. Primeiro em preto e branco
e nos últimos anos colorida. Sylvia Helena me acompanhou durante todo
este tempo. Então um dia me perguntou se eu seria capaz de conduzi-la
ao local onde estava, estaria ou está ancorado o Navio. Respondi imediatamente
que sim e pedi que nos encaminhássemos à Central. Assim o fizemos.
Tomamos o trem na estação de Engenho de Dentro e lá pegamos
o 154. Eu estava ansioso, afinal eram seis anos ... estaria ainda lá
o Navio? Estava. Sentados no primeiro banco, assim que passamos em frente ao
Centro Empresarial onde tremula a bandeira da Argentina, bastou olhar para o
alto e divisar aquele majestoso Couraçado. Mostrei-o para ela mas para
minha decepção ela não viu. Achei que teria sido o fato
do ônibus ter andado muito rápido. Sugeri que descêssemos
no ponto seguinte e voltássemos a pé uns 120 metros. Esperamos
o sinal fechar e fomos para o meio da rua. Dali se via perfeitamente! Mas ela
não via e cismava em dizer que era uma ilusão de ótica
que, na verdade, eram antenas de televisão ... que daquela perspectiva
dava a impressão e ... blá ... blá ... blá ... .
Ainda não convencido, sugeri que subíssemos no viaduto, aquele
que vai para o Túnel Santa Bárbara, para então olharmos
de outro ângulo. Fomos. Ela continuou não vendo! Não sei
o que foi que me deu mas virei-me de repente em direção a FGV
e vi que um ônibus com asas vinha a toda brida em nossa direção.
Comecei a gritar como um doido, apontando e dizendo: "- Vai bater na gente!
Vai bater na gente! Um ônibus com asas! Um ônibus com asas! Desgraçadamente
ela também não o viu. Tive que ser agarrado à força
e colocado num táxi. Chorava baixinho e dizia: " - Ônibus
... Asas... Cuidado! Viaduto!".
Voltei para o quarto verde apenas até me acalmar um pouco. À
hora do jantar estava mais tranquilo e já um pouco envergonhado
... Nem me interessei em ver o Jornal Nacional ... Fui para o meu quarto mas
voltei para ver a novela das oito. Então em EDIÇÃO EXTRAORDINÁRIA
o repórter anuncia: "- Um avião de porte médio acaba
de fazer um pouso forçado, de emergência, na Praia de Botafogo.
Apenas algumas pessoas com ferimentos leves. Poderia ter sido pior se o piloto,
segundos antes, não ouvisse pelo rádio uma voz insistente que
dizia: "Cuidado! Viaduto!"... ... então cruzei as pernas, peguei
a Revista Coquetel e comecei a fazer palavras cruzadas.
(Em 28 de abril de 2005)