A Garganta da Serpente

Mara Ferreira

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Na Rodoviária

(Mara Ferreira)

Majestoso! Isto seria o mínimo que poderia se dizer no momento em que ele apareceu ocupando todo o espaço da porta do ônibus e desceu suavemente o último degrau.

Todos os rostos se viraram em sua direção mas ele, impávido, andou elegantemente na direção das pessoas que esperavam, impacientemente, a retirada das bagagens.

Todos o miravam com curiosidade. Sua imponência e garbo atraíam a atenção dos presentes. Com isto, a retirada das malas do bagageiro do ônibus, morosamente, levava o dobro do tempo.

Sua galhardia era a tal que imaginavam em sua lapela, para ser franco meio surrada, um belo cravo branco. O terno marrom de gabardine inglesa, bem cortado e com um caimento perfeito, terminava todavia em um par de sapatos de igual cor porém, surpreendentemente, daqueles tipos de sapatos ordinários que não a aguentariam uma segunda chuva. Mas aos olhos do povaréu afigurava-se como um belo par de polainas castanhas, polidas e escovadas.

Esperava, com um ar blasé, acompanhando com os olhos uma por uma a saída de cada mala. Todos aguardavam curiosos para ver a mala do cavaleiro. Imaginavam-na em belo couro com belas e pesadas fivelas douradas.

Os passageiros que tinham já em suas mãos as próprias bagagens davam um jeito de puxar conversa aqui, ou acolá para esperar a saída do que seria, quiçá, a mais elegante de todas elas.

Foi a última! Por estar bem no fundo do bagageiro teve que ser pescada com uma vara que ostentava em sua ponta um gancho de ferro. Ao chegar à beira, foi possível vê-la... era de pano ordinário com florzinhas desbotadas. De um solavanco escorregou e se abriu em duas. Espantos! Ohs! Gritinhos! Impressionante o que se via! Surpreendente! Rapidamente cada um dos presentes começou a se afastar do local. Ele de um salto fechou a mala bruscamente e, sem passar o fecho enfiou-a debaixo do braço, saltou por cima de dois canteiros, ganhou a rua atravessando as duas pistas sem olhar para os lados, fez sinal para um ônibus se enfiou dentro dele que, em minutos, tendo virado esquina, sumiu ...

Parece mentira mais em questão de segundos não tinha nenhuma alma viva na plataforma e este vazio permaneceu por pelo menos uma 1/2 hora. Aos poucos voltavam a circular pessoas por ali e, como por encanto, saindo sabe-se de onde, aos cochichos começaram a comentar o acontecido. Acho que foi a mulher que toma conta do banheiro e um menino de entregas da lanchonete que começaram a falar. O interessante é que eles não estavam presentes no momento da cena... O comentário foi se espalhando e pouco a pouco eram tantas as versões que acabou virando uma grande discussão... as pessoas foram tomando partido e se colocavam quase que como torcedores; umas pertencendo ao Cordão Azul ... outras ao Cordão Encarnado. O interessante é que alguém mais sistemático percebeu que existiam no meio de todas as versões, somente dois temas que eram comuns a todas elas. Levantou a mão e pediu licença para menciona-los. Todos concordaram e fizeram silêncio para ouvi-lo. Ele disse: "- Olha meus amigos percebi no meio da discussão que apenas nestes dois temas que vou mencionar existe concordância entre todos. São eles o cravo branco na lapela e as polainas castanhas nos pés ". Foi aplaudido de pé! Aclamação, aplausos, aprovação, ovação, palmas. Parece que a fala dele diminuiu a tensão existente entre os grupos. Estes fatos uniam as versões. Todos concordaram! Realmente, o cravo branco na lapela e as polainas castanhas eram incontestes.

A história permaneceu viva e não tinha passageiros que passasse por aquela rodoviária que não a conhecesse. Alguém logo providenciou um cordel que se vendia a R$1,00 cujo título era: A HISTÓRIA DO HOMEM MISTERIOSO QUE PORTAVA UM CRAVO NA LAPELA E CALÇAVA POLAINAS CASTANHAS. Encontra-se também chaveirinhos de cravo branco e peso de papel em silicone com pequenas polainas castanhas incrustadas. Dele nunca mais tiveram notícias... Mas, às vezes, alguns mais atrevidos dizem que, de vez em quando o veem circulando por ali. Alguns acreditam, outros não. As únicas coisas de fato inconteste são: o cravo e as polainas! Vox Populi. Vox Dei.

(11/2002)

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