Entro no ônibus 154 pelo menos duas vezes por semana; quando sou premiado
com uma terceira oportunidade. faço-o com prazer. Na segunda-feira, pego-o
às 18 horas e na quarta às 16. Faço isso há mais
de seis anos. Prefiro-o pelo ar condicionado. No momento, estou dentro dele
e é 2a feira. Não é que esteja cheio, até deu para
sentar. Escolhi a sexta fileira, do lado esquerdo, por oferecer maior comodidade
para acionar a campainha na hora de descer, uma vez que a mesma está
apensa à coluna que, descendo do teto, se une ao encosto do banco da
frente. Curioso ... tem um orifício proveniente da falta de um parafuso.
Fico apreensivo, experimento para ver se, com a sua ausência, não
corro o risco de que se despenque toda esta parafernália sobre a minha
cabeça. Reconhecendo que não há perigo, relaxo. Distraidamente,
resolvo olhar pelo buraco com meu olho direito e depois, com o esquerdo e leio
o que está escrito CARRO: 35678. Verifico que se enxerga muito melhor
do que quando se olha de fora do buraco. Faço várias tentativas
e confirmo a primeira impressão. Em seguida, salto.
Na quarta-feira, volto a sentar no mesmo lugar mas encontro o orifício
fechado a custa de um nojento chiclete. Fico furioso mas não a ponto
de trocar de lugar. Fico pensando quem teria sido o desgraçado que praticou
uma grosseria destas. Fico dando tratos a bola para descobrir a maneira de retirá-lo
dali. Reviro os bolsos, a mochila, mas não encontro nada que pudesse
me ajudar a tirar aquele nojo dali e lembro da agulha de crochê da minha
avó ... tão jeitosinha com aquela pontinha revirada. Planejo para
o final de semana um assalto à cestinha dela ... afinal ela tem tantas.
A estas alturas, mal consigo esperar a segunda-feira para começar. Sinto
como se estivesse empreendendo uma cruzada. Enfim, munido da agulha, entro garboso
e determinado a extirpar todas as nojeiras do mundo ... só que tem alguém
sentado no meu lugar. Sento na sétima fileira puto da vida e passo toda
a viagem olhando para aquilo que era o buraco e que agora está atulhado
daquela massa insigne. A agulha dentro da mochila se remexe toda na tentativa
infrutífera de entrar em cena. Penso até em deixar passar o meu
ponto, ir talvez até o fim da linha para concretizar o feito. Acabo desistindo
e desço.
Nova investida na quarta-feira. Desta vez, apesar das dificuldades, consegui
êxito mesmo tendo tido que aguentar a cara de asco da velhinha do
banco da direita. A questão é que não tinha me prevenido
em providenciar um lugar para guardar os despojos da guerra. Catei um envelope
que se achava debaixo do banco, enfiei tudo dentro para, ao descer, jogar dentro
da primeira lata de lixo que se apresentasse. Só que o chiclete, com
seu hábito teimoso de grudar em tudo que vê, foi mais rápido
que eu, deixando sua marca do lado de fora e consequentemente dentro da
mochila.
Durante a semana seguinte, observei que não era mais o CARRO: 35678
que circulava no meu horário. Tratei de perguntar ao novo motorista o
que havia motivado a troca. Ele me sugeriu que falasse com o fiscal. Este me
informou que o carro teria ido para revisão mas que na próxima
semana estaria de volta.
Aliviado estava quando subi no ônibus (de trás pra frente?) na
segunda-feira seguinte. Logo que entrei verifiquei que meu lugar estava a minha
disposição. Caminhei tranquilamente em direção
a ele mas, eis que, mesmo de pé, vislumbrei algo de diferente. Fiquei
apoplético. Não era possível! Na revisão tinham
colocado o parafuso faltante naquele que então já era O MEU ORIFÍCIO.
Só faltei ter um troço. Fiquei tão desnorteado que sai
imediatamente do meu lugar e fui sentar bem longe, na última fileira.
Mesmo assim comecei a arquitetar um plano para retirá-lo dali tão
logo possa. E planejar é a minha paixão (ou mania?).
Na quarta-feira, com uma pequena chave de parafuso, sentei no meu lugar e quando
ia discretamente colocar a chave na cabeça do parafuso, uma vozinha de
criança no banco de trás, em alto e bom tom, perguntou: "
- O senhor pretende arrancar o parafuso?" Constrangido e cheio de raiva,
retirei disfarçadamente a chave, enfiando-a rapidamente no bolso. Puta
que pariu! Por sorte a diabinha desceu no ponto seguinte, mas aí a desgraceira
já estava pronta. Fiquei inseguro de tentar de novo e como tinha tempo,
resolvi fingir que dormi e perdi o ponto de saltar, indo parar no fim da linha.
Assim voltei, mas o ônibus vinha relativamente cheio até a Cinelândia.
Quando entrou na Praia do Russel, apareceu uma chance que eu não desperdicei,
enfiei a chave e tive que forçar um pouco mas o fato é que rodou
o parafuso junto com a porca e nada feito. Anotei na agenda que deveria trazer
também uma chave de boca para fixar a porca enquanto desparafusava. Desci
um ponto antes para disfarçar.
Na segunda não fui. Voltei na quarta de óculos novos ... bifocais
... e de mala e cuia. A tarefa era supercomplexa; teria de ficar de pé,
com uma mão fixava a porca com a outra rodava o intruso. Não atinava
como fazer isso, achei melhor montar uma operação do tipo SWAT.
Fui lá para frente e interroguei o cobrador dos horários do CARRO.
Ele me olhou meio desconfiado, talvez achando que eu fosse bicha. Eu engrossei
a voz, cocei o saco e ele relaxou. Estudei cuidadosamente os horários,
escolhi o das 23 horas, já que um dos requisitos seria não tê-lo
como cobrador pois ali eu já era manjado.
Na 2a tomei, como de sólito, o ônibus em Ipanema no mesmo ponto,
pois mudá-lo poderia dar azar. A "arte" teria que ser feita
entre o momento que ele virasse na Siqueira Campos e o hospital CopaDor no final
da Figueiredo Magalhães, que a esta hora tem troca de turno. De preferência
mesmo seria no trecho da Siqueira que é mais escuro e o Carro anda devagar.
Contava também com o cochilo do trocador. Estava nervoso mas ao mesmo
tempo confiante, afinal de contas a causa era nobre e Santo Expedito iria, sem
dúvida, me ajudar. Quando cruzamos a Santa Clara todo o nervosismo foi
se acabando e senti como se uma luz pairasse sobre a minha cabeça. Abri
a mochila, tirei a chave de parafuso, a chave de boca e um pano que serviria
para cobrir as duas mãos, este pano seria segurado nos dentes. Felizmente,
ninguém subiu nem desceu neste trecho e a façanha se deu dentro
dos conformes. Atendentes e enfermeiras já me encontraram sentado com
o parafuso no bolso. Dentro do Túnel Velho, o motorista acendeu a luz
da cabine e eu meti rapidamente o olho no buraco para ver o majestoso e esperado
escrito CARRO: 35678. Quase desmaiei! Não era o que esperava, no lugar
do elegante 8 havia um desventrado 3. Comecei suar frio e tive a impressão
que iria desmaiar, uma das enfermeiras me perguntou se estava sentindo alguma
coisa e o que consegui fazer foi apenas balançar a cabeça negativamente.
Não consegui atinar com o que tinha acontecido e desci do ônibus
atordoado. Esta noite não dormi. Entrei na Internet, fucei em tudo que
foi lugar mas não encontrei nenhuma lista de ônibus registrados
que pudesse encontrar o registro do meu ônibus. Madruguei na porta do
Metrô e segui direto para a sede do DETRAN à procura de um ex-colega
de repartição, que depois da fusão foi re-alocado ali.
Teria já se aposentado?! Não, mas encontrei-o como chefe do almoxarifado.
E agora que desculpa iria dar para conseguir esta informação?
Inventei um atropelamento da avó do cunhado da minha irmã e ele
"caiu" direitinho. Disse que ela tinha sofrido o acidente com um ônibus
da Linha 154 e que anotaram o número do carro como se fosse 35678, mas
cismam em dizer que ele nunca existiu. De fato, disse ele, não existe
mesmo nenhum registro com este número. Voltei a insistir, dizendo que
depois do acidente o ônibus foi para a garagem para consertar. Ele disse
que não. O que consta é que dois ônibus, um com o número
36666 e outro 35673, estiveram na garagem para fazer revisão. Indignado,
perguntei se no DETRAN tinha a lista de material utilizado, mas ele sorriu,
balançou a cabeça, agradeceu ao colega e foi delicadamente me
encaminhando para a porta. Na saída, disse: "Lembra do Genésio,
motorista da presidência? Pois é, ele é gerente da Garagem
da Empresa Vera Cruz. Quem sabe ele poderá lhe dar mais detalhes".
Caminhei a pé até a Central, tomei um ônibus comum e fui
para casa numa ressaca moral de dar inveja a cachaceiro profissional.
Dormi como uma pedra e tive um sonho que o tal do Genésio tinha ali
na garagem a lista de material que cada carro usou na revisão. Quatro
horas da manhã me mandei para Benfica onde fica a Vera Cruz, mas me disseram
que Genésio tinha saído para pegar uma peça na revendedora
lá em Santíssimo, mas que lá para as oito teria que estar
de volta. Nestas alturas já eram umas 5:40. Perguntei se podia esperá-lo
ali e então me indicaram um banco que dava para dar uma esticadela; foi
o que eu fiz. Devido ao cansaço do dia anterior ferrei no sono, tendo
sido acordado pelo meu ex-colega que efusivamente me cumprimentava.
Tinha que inventar uma outra história que não deixasse o meu
amigo no desconforto de me passar uma informação que o comprometesse
diante da empresa. Mas assim de improviso, não me saia nada da cachola
que o pudesse convencer. Mas desta vez a sorte, ou que sabe a ação
de Santo Expedito me foram benéficas. Ele me chamou para o seu escritório
e após me oferecer café com biscoito me pediu licença e
foi cuidar de entregar a tal peça e de instruir os mecânicos. Era
coisa de 15 minutos mas levou 20, tempo suficiente para eu dar uma remexida
sobre a sua mesa e encontrar o boletim dos dois ônibus recém consertados.
Abri esbaforido a pasta do 35673 busquei rapidamente a lista de material utilizado
e lá estava:
Parafuso Sextavado 8.8 Rosca Inteira - Códigos do Produto: MA 160 - MB
161
Comparei com o que estava no meu bolso e tive a certeza que era o próprio.
Saí sem me despedir e fui para casa. Ainda tinha a esperança de
que algo poderia mudar a situação. Na ânsia de chegar e
me socar na cama deixei cair meus óculos novos, BIFOCAIS, uma nota, que
se espatifaram na calçada. Tive que retornar ao uso dos velhos óculos.
Na quarta-feira, já sem gosto pela vida, ritualmente esperei o ônibus,
sentei no meu lugar e não resisti à vontade de olhar pelo buraco
e eis que estava lá em toda sua majestade o número 35678 ... com
oito.
MORAL DA HISTÓRIA: ÓCULOS BIFOCAIS? NUNCA MAIS.
(17-03-2005)