No meio da cabeça da cabra havia uma vaca.
Havia uma vaca
no meio da cabeça da cabra.
A Cabra Cabriola, era uma espécie de Cabra, meio bicho, meio monstro.
Sua lenda em Pernambuco, é do fim do século XIX e início
do século XX. Era uma Bicho que deixava qualquer menino arrepiado só de ouvir falar.
Solta fogo e fumaça pelos olhos, nariz e boca. Ataca quem andar pelas
ruas desertas às sextas a noite. Mas, o pior é que a Cabra Cabriola
entra nas casas, pelo telhado ou porta, à procura de meninos malcriados
e travessos, e canta mais ou menos assim, quando vai chegando:
"Eu sou a Cabra Cabriola
Que como meninos aos pares
Também comerei a vós
Uns carochinhos de nada..."
Sempre me perguntava o porquê de estar neste lugar. De fato não
se pode reclamar, afinal de contas estar num quadro de Chagall é mesmo
um privilégio. Gustav me dizia que a pergunta está mal formulada
pois o certo seria perguntar: " - para que?" ... e isto lhe daria
um senso de finalidade.
Eu mesma não posso imaginar qual seria a finalidade de me encontrar
ali. Pensei em fazer uma enquete entre os visitantes, mas não consegui
atinar como poderia fazê-lo. Num site na internet, talvez ... mas isso
seria praticamente impossível. Mas, mesmo que conseguisse, para que serviria
o resultado?...
Pensei, ao invés, que deveria me preocupar menos com a quantidade do
que com a qualidade, já que é esta propriedade que determina a
essência ou a natureza de um ser ou coisa. Eureca! Era isto mesmo que
iria fazer. Começaria de imediato. Então me surgiu a questão:
nesta posição em que me encontrava era difícil olhar nos
olhos das pessoas. Gustav concordou comigo, pois ele mesmo sempre preferiu estar
frente a frente com seu interlocutor.
Assim sendo, pensei em pedir a ajuda da vaca que, estando de perfil, poderia
ser mais objetiva na sua avaliação. A vaca nem respondeu, pois
não está na natureza das vacas esta consideração
com os humanos. Balançou duas ou três vezes o rabo como quem dissesse
que já era muito nos fornecer o leite durante tantos anos. Gustav sorriu
mas não comentou nada, ele não é do tipo que julga. Só
comentou mais tarde: "- De fato a vaca sabe qual a sua finalidade ...".
Gustav vinha religiosamente duas vezes na semana, sempre no mesmo dia, sempre
no mesmo horário. Isto me aliviava muito e me dava muito mais segurança.
Sabia que com ele a conversa era franca, pois se pouco falava sabia ouvir como
ninguém. Ele tem me ajudado muito numa questão muito complexa
com que me defrontei durante a última reforma do museu quando, sabe-se
deus por que, deixaram durante uma semana encostado na parede oposta a minha
um espelho. E eis que de manhã após o despertar do galo
de Patrícia Martin - que diuturna e diariamente acorda todo o setor
leste - dei de cara com o espelho. Nunca tinha estado frente-a-frente com um
deles. Como disse uma vez o poetinha "De repente ... Fez-se da vida uma
aventura errante". Primeiro custou-me reconhecer que era eu que estava
ali. Há que se considerar que de fato o que reconheci mesmo foi a vaca
e depois, com muito espanto, a extensão dela que era eu mesma. Foi chocante!
Primeiro porque nunca tinha me visto. Mas, o que realmente me desconcentrou
foi ter percebido que a vaca e eu não éramos nada mais do que
o pensamento da Cabra.
Foi uma semana de intenso sofrimento, a depressão me impedia de fazer
qualquer coisa até de tirar o leite da vaca; por pouco ela não
desenvolve uma mastite. Felizmente Gustav, intuitiva ou quem sabe sincronisticamente,
sentiu que alguma coisa não ia bem e convenceu o vigia, a custa de alguns
quartos de dólar, a deixá-lo entrar com alguma desculpa bem engendrada
que só ele era capaz de criar.
Quando o vi, lágrimas vieram-me aos olhos; enxuguei-as rapidamente com
medo de danificar o quadro mas já era tarde demais. Um olhar atento identificará
na parte inferior do queixo da cabra um ligeiro borrão permanentemente
intumescido.
Agradeci a deus a presença de Gustav naquele momento tão difícil
para mim.
Bastou que ele visse o espelho para imediatamente compreender o meu drama.
Coçou a cabeça ao olhar em torno e verificar que aquilo era obra
pra seis meses no mínimo; confirmou com o engenheiro que passava ...
Na mosca!
Pediu que me acalmasse que algum jeito seria dado. Ao mesmo tempo, passava
delicadamente a manga do sobretudo no espelho para retirar a poeira e deixar
que a imagem se tornasse mais clara e nítida. Fiquei magoada pois esperava
que a atitude dele fosse de mandar retirar de imediato aquele objeto que havia
me produzido tanta angústia e disse: "Não se aflija vou sair
para buscar alguma alternativa. Volto tão logo tenha uma resposta"
- e saiu.
Passaram-se três longos dias e três curtas noites pois com a luz
apagada não era obrigada a ver mais uma vez aquela cena e, então,
de repente aparecem aqueles quatro caras, meus conhecidos, especialistas em
mover obras de arte e me transportam para uma pequena sala que está situada
ao lado do salão de restauro. A partir daquele dia Gustav me visitou
diariamente, sempre durante o que seria a hora de almoço. E assim começamos
um interlóquio que durou quatro meses tendo acabado por conta da sua
partida (acabado é maneira de dizer pois uma vez começado não
termina mais). Foram momentos maravilhosos de mergulho profundo na minha existência.
Pude compreender que não apenas eu era um sonho da cabra mas que a própria
cabra era um sonho de Chagall. A única coisa que não ficou muito
clara era quem estaria sonhando Chagall.
Agora sete anos após cresce em mim a esperança de reencontrá-lo,
pois já estou dentro de um container rumo a Europa para a grande
exposição que terá lugar em Zurique sobre O Imaginário
sendo ele o curador (Cura Dor) ... nada me convence que não tenha tido
esta ideia apenas para me ter perto por mais alguns dias... afinal pretensão
e água benta ... cada um toma o que aguenta...