A Garganta da Serpente
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Restos

(Roberta Tostes Daniel)

Pego um pedaço de biscoito no chão e o devoro com a pressa de um somali.

Depois me questiono se havia recheio naquilo que comi. Era um biscoito desses que divertem crianças, adultos deprimidos, e velhos felizes em seus pijamas de algodão; um biscoito que, definitivamente, não me diverte, ou eu não teria deixado seus restos jazendo, inertes, no chão do meu quarto.

Levanto-me com pressa de fuga, envergonhada da porqueira do meu ato. Corro pra cozinha e lanço mão de mergulhar água pra dentro do meu corpo. Água com gosto estranho, sabe? Gosto de geladeira, gosto de água acabando, de vela suja, de paz morta, de tarde fria, gosto de solidão de sabá. Palavra muito propícia prum sábado também morto: 'sabá', do hebraico 'shabbath'. Coisa muito antiga, mas que soa bem nos ouvidos.

Eu voltei pro quarto, sem querer, só pra conferir se ainda havia farelos, restos de chocolate em frangalhos, qualquer coisa que se assemelhasse ao corpo estranho que pus na boca minutos atrás: massa derretida, amarronzada, adocicada, repousando perto da cama, ao lado do pacote quase intacto, mas já sem biscoitos.

Aquilo que comi, hoje, foi a sobra da insônia de ontem. O não-quis das horas noturnas, que amassei, devorei, que expeli dentro e fora de mim. Eu e o resto, por ora morrente em minha barriga, descendemos da mesma origem. Somos dejetos da madrugada abolida, prestes à deglutição, seres à beira do abismo, da boca que cobre o céu, e o céu da minha boca. Ele é o meu resto, e eu, o resto do biscoito divino, um farelo estelar, por ora vivente, às vezes morrente, de quando em quando feliz.

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