Pego um pedaço de biscoito no chão e o devoro com a pressa de
um somali.
Depois me questiono se havia recheio naquilo que comi. Era um biscoito desses
que divertem crianças, adultos deprimidos, e velhos felizes em seus pijamas
de algodão; um biscoito que, definitivamente, não me diverte,
ou eu não teria deixado seus restos jazendo, inertes, no chão
do meu quarto.
Levanto-me com pressa de fuga, envergonhada da porqueira do meu ato. Corro pra
cozinha e lanço mão de mergulhar água pra dentro do meu
corpo. Água com gosto estranho, sabe? Gosto de geladeira, gosto de água
acabando, de vela suja, de paz morta, de tarde fria, gosto de solidão
de sabá. Palavra muito propícia prum sábado também
morto: 'sabá', do hebraico 'shabbath'. Coisa muito antiga, mas que soa
bem nos ouvidos.
Eu voltei pro quarto, sem querer, só pra conferir se ainda havia farelos,
restos de chocolate em frangalhos, qualquer coisa que se assemelhasse ao corpo
estranho que pus na boca minutos atrás: massa derretida, amarronzada,
adocicada, repousando perto da cama, ao lado do pacote quase intacto, mas já
sem biscoitos.
Aquilo que comi, hoje, foi a sobra da insônia de ontem. O não-quis
das horas noturnas, que amassei, devorei, que expeli dentro e fora de mim. Eu
e o resto, por ora morrente em minha barriga, descendemos da mesma origem. Somos
dejetos da madrugada abolida, prestes à deglutição, seres
à beira do abismo, da boca que cobre o céu, e o céu da
minha boca. Ele é o meu resto, e eu, o resto do biscoito divino, um farelo
estelar, por ora vivente, às vezes morrente, de quando em quando feliz.