A Garganta da Serpente
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Os ombros que suportam um homem

(Roberta Tostes Daniel)

Amanhece. Teu amor ainda dorme a teu lado, na cama que foi feita pra um, mas que na pressa do amor, abriu contornos e cabeceiras onde repousam nesse instante uma vida conjugada a tua. Os corpos de ontem, tão impregnados da doce embriaguez do amor, hoje se estilhaçam da dor que foi amar no espaço exíguo de um leito de solteiro. Repara nela: como dorme em paz agora. É quase uma deusa, não fossem as marcas arroxeadas do prazer. Como cabe nesse leito que é teu, mas que é como se tivesse sido dela a vida inteira. Repara nos pêlos do corpo, nenhum animal traz igual os pêlos no corpo como tua amante traz. É quase seda, cheira a pêssego e a saliva tua. Vê como é sedutora a cena que vos ofereço: contempla a deusa enquanto devora teu cereal com leite, que nunca falta nas manhãs de domingo. Lês sempre as mesmas notícias de domingo, devoras a vida com bolacha e pão, e perdes, e perdes nesta manhã exuberante que não volta mais, a criatura que Deus te ofertou, mulher deusa dormindo, mulher criança de sonhos, mulher envelhecendo contigo na esperança de ser tua pra sempre. Ela nem sabe quantos anos bastarão até que percas o teu medo de solidão, até que deixes acompanhá-la na tua estrada a Santiago, até que estendas a mão sobre ela e te permitas ser só, acompanhado, na fiel companhia de tua amada, até que compres a cama de casal que ela suplica há tantos anos; para que de fato tornem-te um e mesmo corpo, num leito comum. Com direitos, deveres, e uma boa noite de sono porque ninguém é de ferro e nem aguenta passar a vida toda dormindo nesse estreito leito de estiagem. Para que durmam juntos uma inteira noite. Se algo te faltas, descartas a falta, como as cartas da tua mãe que te doem relembrar. Só não descartas o medo, tampouco a mulher, que é teu inverso no feminino, tua fome de jantar e sobremesa de coração. Espreguiças na poltrona, tens pena de acordá-la, porque acordada, ela te serás outra, não mais a tua dama da Renascença, não mais a Deusa do Olimpo, mas alguém de cujos sentimentos só sabes por vozes e olhos. E porque a conhece há uns bons anos. Olhando-a enquanto dorme, tu a sabes por sonhos. É tão mais fácil, não? Tão mais atraente vê-la assim, morta para teu deleite e para a covardia da tua coragem. Por isso eu te peço: contemple mais um pouco a sereia que dorme em teu leito. Repara como inclina as mãos sobre os cabelos, a espera do carinho teu, a espera do teu jeito pouco brando e arredio de amá-la. A espera da coragem tua. Ela o ama por isso, justamente. Porque te esperas para os açoites da alma, para os prazeres do corpo, para que a protejas no inverno, e para que aprenda a proteger-te também. Teus carinhos de certa forma serão sempre pancadas, e os dela, flores frescas colhidas em campo primaveril. Tu não te conformas nem te conformarás jamais com a delicadeza da mulher que escolheu pra si. Não sabes das provas de amor que ela te dá. Na pressa de amá-la, ela soube encolher ombros como quem dobra papéis de carta para o amado; encolheu-se toda, só para que abrigasses teu sexo e tua sede nela. Só para que coubesse na mesma cama o amor, ela se dividiu toda: ombros, tronco, pernas. Doeu-te toda, para ti, para ti. Não sabes, quiçá nem no leito de morte, saberás. Mas é ela, essa que dorme em tua cama como cigana nua, que fecharás teus olhos, chorarás uma derradeira vez e nunca mais verterá lágrimas por amor a ti. Aquela que se enrosca nua em tua cama a pedir um pouco do teu leite e da amabilidade viril de homem, será aquela que dividirá contigo um a um dos teus tormentos e das tuas alegrias. Vê, repara bem nela agora. Alargou-se como a cama, na pressa d'um abraço, não hesitou doer uma vez mais no corpo para que a alma sorrisse, e para que não percebesses que seus ombros encolheram para abrigar a tua vida inteira nela.

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