Havia numa vila muito humilde, uma mulher que se impacientava com... galinhas.
Isso mesmo, galinhas!
"São umas histéricas!" - afirmava a velha, que as monitorava
dia e noite, como se referisse a achaques femininos em tempos de Freud: "E
há nelas qualquer coisa de sobrenatural", salientava.
Ninguém sabia ao certo o que pensar daquela senhora, tampouco de suas
galinhas, que povoavam a vila toda com mais ovos por metro quadrado do que gente.
Sabiam-na estranha, de uma estranheza pouco comum para os anormais da sua época.
Não era cocha, incapacitada mental, tampouco intelectual refugiada pelo
machismo desmoralizante ou pelos subterfúgios da vida no campo.
Era mulher da lida. Não sabia nem de mais, nem de menos. A vida inteira
lidou com lavoura, terra, minhoca, flor, bicho de plantação, joaninha...
galinhas.
"Talvez uns sessenta anos ou mais", presumiam-lhe a idade. Vez ou
outra, arriscavam palpites uns sobre os outros, para quebrantar a monotonia.
"Esse negócio de vitrola não chegou aqui ainda não,
moço. Muito menos é coisa que vá consumir a gente. Nossa
vontade é outra. A vantagem do silêncio é a estrela a mais
que vemos no céu, o pensamento avantajado, e os mistérios; por
aqui tem muito mistério, moço", era o que falavam quando
aparecia um forasteiro.
Da velha e de suas galinhas voadoras, ninguém definia um modo único,
ou mesmo um modo consistente de pensar sobre elas. Era como se fossem eternas
forasteiras, ela e as galinhas, embora os mais antigos jurassem conhecer a velha
- já velha, desde crianças; e os pais de seus pais diziam a mesma
coisa.
"Eu vi uma sombra atrás dela hoje, e não era galinha",
segredava o padeiro.
Era o peso de seus pensamentos, de uma sabedoria de chão, de barro,
de fundo dele. Cavucava a terra e sabia direitinho o paradeiro da minhoca. Vivia
de si mesma, e de suas galinhas voadoras. Ela, que detestava galinhas, como
mesmo brandia aos quatro ventos chamando-as de histéricas, era a única
que lhes dava de comer.
Por mais inimigas que fossem, jamais deixaria que duelassem sem equidade
de condições: "Uma questão de ética",
explicava-se. E lembrava Voltaire com uns dizeres pra lá de eruditos:
"Posso não concordar com uma só palavra do que dizeis, mas
defenderei até a morte vosso direito de dizê-lo".
Só que galinha não diz, nem aquelas que pareciam mágicas.
Galinha bota ovo. E aos montes, porque tem de zelar por sua natureza ovípara.
Se ao menos fossem galinhas convencionais! Mas as galinhas daquele povoado
eram imensas, inúmeras, inexplicáveis. Eram umas galinhas sorumbáticas,
umas galinhas soturnas, e tinham olhos de encanto, ah, isso tinham!
Como se fossem capazes de revelar um segredo cabeludo, desses que nem sequer
chegam a ser segredos; que são, no máximo, suspeitas, lapsos de
memória e de corações desmemoriados. Lapsos da moral torpe
das redondezas que condenava um filho efeminado, um pai bêbado, uma mãe
puta.
Verdades mascaradas por um medo cristão, por um medo de galinha que
elas revelavam com seus ovos sobre os telhados dos escolhidos. Segredos que
as pessoas escondiam como se fosse um mau-cheiro, uma praga da plantação,
um tiro de morte dado no escuro, um surdo assassinato, com medo que alguma delas
pudessem lhes apontar um ovo certeiro.
Era isso. Havia o segredo, havia um segredo de morte em cada galináceo
que rondava a vila. Andavam soltas pelos caminhos de terra, formando esquinas,
entre uma casa e outra; eram cachorros vadios de uma vila pobre e sem cachorros.
E não me deixem esquecer de dizer que seus ovos eram sagrados.
Por mais que abundassem em telhados, varandas, lances de escadas, portas de
casebres, debaixo do tapete, atrás de uma cortina, no berço de
uma criança.... jamais deveriam ser usados para qualquer refeição.
E a presença deles prenunciava um terrível malogro. Daí
a pouco o recém nascido em cujo berço se encontrou o ovo, era
o anjo adormecido em seu caixão branco, afundado dentro da terra, como
um Moisés bebê a ser salvo do rio da Morte.
Mas houve uma vez - quando morreu outra criança, em que o povo se arrastou
pelas asperezas e areais da revolta, e expulsou as galinhas da vila. Queimou
todas quanto pôde, enforcou a velha, a bruxa que era quem as paria, segundo
eles, levando embora o mau presságio que elas simbolizavam.
Passaram-se meses tranquilos, sem sombras e sem galinhas. Não se
viam mais ovos, nem mortes de rebentos. Não fosse o inverno que virou
verão e o verão invernal, as mãos embranquecidas de um
mulato muito bondoso que ali vivia, e o fato de todas as crianças ficarem
totalmente carecas, inclusive as meninas, tudo teria significado aconchego e
paz por trinta ou mais anos.
Eis que as mãos embranquecidas do mulato reavivaram sua cor, as meninas
puseram-se de novo defronte ao espelho, vaidosas, quase sem crer, com o crescimento
súbito de suas madeixas, agora longas, sedosas, dia a dia mais vastas
e negras.
A plantação seguia seu ritmo. Não houve mais pragas, a
população tinha o suficiente pra comer, e até dava-se ao
luxo de vender as sobras pro povoado vizinho. Alguns alfaiates se instalaram
por lá e, pouco a pouco, a viela virou vila, que virou cidade.
Muitos anos depois, quando a cidade vivia seus dias de glória, agora
tão rica a ponto de exibir um prefeito (um prefeito, como não?),
alguém de fora - talvez o próprio prefeito, quis pôr fim
ao mito antigo das galinhas voadoras, que os impediam de comprar, vender, ou
mesmo criar tais espécimes. Do alto escalão, foi expedida a ordem
de trazerem algumas poucas para criar, vender, quem sabe negociar.
"É só em caráter experimental!", tranquilizava
o prefeito do povoado, com vagas assertivas aos habitantes mais antigos, que
ainda se recordavam com temor da funesta presença daquelas galinhas durantes
anos e anos de suas existências.
"Aproveitaremos tudo. Criaremos as galinhas; com os ovos, faremos bolos,
acho que nessa terra nunca ninguém fez um bolo, acreditam? Comeremos
frango e tudo quanto puder ser aproveitado delas, aproveitaremos", incentivavam
os entusiastas da ideia, em geral, os mais jovens.
A população mais ambiciosa, aceitou de pronto a inovação
- aceitariam sempre qualquer inovação. Seus pescoços eram
válvulas mecânicas do sim, movimentam-se pra frente e pra trás,
as mãos aplaudiam, e eram tudo o que sabiam fazer.
Não mais contemplavam estrelas, "não tinham tempo para essas
besteiras de velhos sonhadores", recusavam-se a ouvir os ritos, as lendas,
e não tardariam para que colocassem os velhos em asilos, que se não
existia ainda, criariam em breve.
À revelia do medo que sentiam, foram, os velhos, banidos do direito
de opinar. As crianças de trinta anos atrás, sabiam da ameaça
que representava o retorno das galinhas voadoras, mas ainda assim, apostavam
numa certa insensatez adolescente, que não tiveram por conta dos cabelos
que lhe caíram muito cedo e lhes envelheceram a face.
"E se algumas delas, se algumas dessas galinhas, entre elas houver uma
descendente das voadoras? E se o bruxedo não tiver morrido com a morte
da velha parideira de galinhas e perigos?".
Muitos questionaram se, de fato, haviam procedido corretamente quando enforcaram
aquela velha, arremedo de duende, no centro da vila velha, a postos de todos
os ódios que sentiam por si mesmos e por suas medíocres existências.
"Enforquem a parideira da morte!", urrava o pai de mais uma criança
acometida. "Enforquem-na que a histérica é ela, a bruxa que
corrompeu os animais de Deus, e transformou essas galinhas em agouros do azar!".
Assim foi feito. E a vila se calou por trinta anos. Cabelos de crianças
caíram nos rios: do medo, da carne podre de vivos, mortos e espectros
do manto branco de uma casca apodrecida de ovo cru. Verões invernaram,
mãos negras embranqueceram e tudo mais virou lembrança quando
o mal se arrefeceu.
Agora voltara a sombra. E não era como antes. Não havia mais
galinha passeando como cachorro vadio pelas ruas, por ora asfaltadas.
Assim que chegavam, as novas galinhas eram postas num cubículo onde
só saíam para serem abatidas, ou para lhes retirarem os ovos já
chocados. Cientistas principiantes davam-lhes vacinas, estranhas rações,
controlavam-lhes o peso, e se investiam de toda e qualquer espécie de
proteção que pudesse conter a ameaça iminente que a presença
das mesmas um dia representara.
Dois meses depois, a população toda calvejara. Uma onda de pequenos
desastres atracou na região, como um barco louco da má sorte.
Crianças despencadas dos muros, crânios abertos, bicicletas retorcidas
em meio a pernas laceradas. O mar virou sertão, que virou mar. Ciclone
era brisa porque o resto era furacão. Havia um ódio que trovejava
apocalipses prenunciando um segundo dilúvio divino.
E choveu, choveu como nunca antes. Primeiro, ovos. Muitos, de todos os tamanhos.
Choveram tantos ovos, que a cidade amareleceu. Virou uma gema bruta de sangue
e calamidades. E depois choveu de novo, as águas da renovação.
Os que conseguiram se salvar, repetiram-me a história uma única
vez, e nunca mais se falou sobre assunto, até onde soube, pelo menos.
Jamais retornaram à vila, embora, sem que soubessem, estivessem, suas
vidas, para sempre interligadas às vidas daquelas galinhas, que se espalharam
por toda parte, para além do povoado do qual surgiram.
Por uma questão de sobrevivência, talvez, os remanescentes daquela
geração inteira de carecas, expulsos de suas terras prometidas,
aprenderam a engolir o ego e respeitar, em coexistência, galinhas, voos
e também seus ovos. As voadoras, por sua vez, souberam manter sua disfarçada
ausência, desde que seja mantida a devida distância.
Hoje, a vila faz parte de um fosso de onde deságuam as águas
cristalinas de um mundo imperfeito. A população ribeirinha bebe,
lava suas roupas, e usa. Usa a água. E acredita em magia. Cientistas
não querem saber do assunto.