Eu queria sentar perto daquele mendigo - redundante designá-lo sujo,
enquanto escrevo as linhas deste meu diário invisível. Sentaria
perto de ti, mendigo, não fosse o que deixas exalar das tuas entranhas
e dos teus farrapos. O odor é de fracasso.
Todo abandono é um mendigo. Mendigo, portanto, é quem deixei boiando
em minha cama de afeto puro-incolor. Como quando se abandona uma criança
que não se teve tempo de amar. Presto honra com fidelidade de cão
vadio; de quando em vez escrevo a história do mendigo, e a minha, mesmo
que eu pense várias versões para cada uma delas.
Ele dorme a poucos metros de mim. Seus pés já não são
pés, são patas. Aquele casco um dia foi tão macio quanto
os pés da menina linda que brinca no parque. Isso me faz entender que
ninguém é mais puta na santidade que Santa Maria de Deus, que
sempre se deu à humanidade. Tudo ou quase tem um mesmo início.
Nunca enxerguei diferença na água benta e no esperma, no fato
de matar ou ser morto, amar um homem ou uma mulher.
Escrevendo isso eu não me contive! Gargalhei tão alto que a criança
no colo daquela linda mãe negra chorou. Depois da noite de ontem, só
poderia vir aqui me redimir.
Alguém ouve Rapsódia Húngara num volume ensurdecedor. Certamente
algum vizinho que
sobreviveu ou vai se matar. "Ninguém ouve Rapsódia se não
estiver em seu momento definitivo", penso eu. De repente eu entendo porque
certas mães atiram filhos contra os carros.
Comprei uma água de coco e vim assistir as meninas em suas cordas de
pular. O sol emplacou e os óculos que eu trouxe finalmente ganham serventia
de óculos. Ganham vida na minha cara descarada. De onde estou, já
não vejo o mendigo, diviso o homem que ele não foi.
São nove e meia da manhã. A menina mais linda do mundo chuta uma
bola muito maior que ela. Por um momento, o mundo todo é dela.
A menina mais linda do mundo, muito gananciosa, quer segurar o mundo com as
mãos. Mas a bola é tão grande, que a menina cai. Bem feito,
aprendiz de ditadora! de ditadora! Ela já sabe agora que nada é
pra sempre, muito menos um desejo, uma pretensão. Caprichos de meninas
vergam e o mundo escapa de pequenas mãos.
Eis a linha derradeira deste diário, vez última em que eu, a menina
e o mendigo, habitamos um mesmo espaço.