Na casa em que morei não houve muitos nascimentos. Sendo filha única,
dividi a graça de irmã com o sexo oposto, fui a eterna caçula
de uma mãe muito coruja, e de um irmão carinhoso.
Na casa em que morei - e foram tantas! -, a natureza fez controle de natalidade.
Fomos a geração mais castigada pela seca. Poucos óvulos
fecundados, uma estia de barriga, de dinheiro, de gente ao redor da mesa, de
pipa empinada, férias de verão, praia em Guarapari.
Eu nunca estive em Guarapari!
Na casa em que morei, moraram os pais dos meus pais. Morou a extensa família
de minha mãe: nove irmãos, nove universos inteiros que triplicariam
a família não fosse o patrimônio esquálido, não
fosse o medo de criar, e de ser criado.
Não houve muitos nascimentos. Pertencemos à geração
que mais abortou e foi abortada. Foram-se os sonhos, os 80's, década
perdida. Nasci pouco antes que a população envelhecesse. E foi-se
o tempo em que não ter tv em casa representava algum perigo.
Pobre tem cachorro e filhos. Rico tem filho-cachorro. O que não é
uma regra, mas também não é a exceção. Rico
tem cachorro e não tem filho. Pobre não tem casa.
Na casa em que morei, houve renascimentos, muitos! Porque o amor foi o útero
que não tivemos. A pátria que não escolhemos. O sonho que
adoecemos.
Amor significou, no começo, encarar o vazio dos cômodos, sentir
doer no regaço da matriarca a longevidade ameaçada, desmoronada
de obsoletas tradições. Na casa em que morei, não morou
meu pai não.
Moraram inquilinos. Não pagaram aluguel e foram despejados pelo proprietário
imigrante. Morei trimestre por trimestre, diferentemente. Alugavam pra verão
a casa em que eu morei.
A casa em que morei nem tinha sótão, não se brincava de
peão, e a sombra nos corredores era corrigida com lâmpada elétrica.
Na casa, não havia mais fantasmas não.
"Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não
tinha nada".
Nada, nada.
Só amor.