A Garganta da Serpente
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O bicho

(Robert Thomaz)

(em memória de Manuel Bandeira)

A tosse impunha noites insones marcadas pela intermitência do sono. Ah, como me fazia falta dormir. Deixar-me arrastar pelo entorpecimento poderoso do cansaço causado pela dispneia e cair lasso sobre a cama coberta por lençóis amarfanhados. Meu braço percorria a superfície da cama e fria era ela. Percebia a ausência do torso nu, de seios descobertos. Ela estava apenas nas profundezas de minha mente. Bela e sedutora. Não pude sorrir pelo prazer da lembrança, pois naquele instante um odor abjeto invadiu não somente a janela aberta, mas também minhas narinas, dificultando-me ainda mais de respirar. Tosse, tosse que me atormenta. Queria eu num sobressalto sentar-me na cama. Contive-me em levantar devagar e sentar na beira do colchão mole e fedorento pelos meus suores noturnos. Meu olhar soturno foi atraído pelo bafejo frio que penetrou pela janela. Que cheiro horrível. Fechei mais um botão do pijama enxovalhado e fiquei de pé. As costas doíam. Segundo o doutor era hérnia de disco. Lombar. Velha companheira. Tosse, tosse que me atormenta. Expectorei uma nódoa avermelhada que, fugidia, precipitou-se de minha boca seca e caiu no balde que, todas as noites, adormecia ao lado da cama. Pensei em beber um copo d'água. Limpar a boca do gosto amargo que permaneceu. Súbito, um ruído metálico me deteve. Ele se repetiu. Originava-se do beco que ficava ao lado de minha casa. Devagar, caminhei até a janela.

Meu quarto ficava no segundo pavimento da casa, cuja janela se debruçava sobre o beco. Ele não era extenso, mas servia perfeitamente ao descarte de restos e imundícies das pessoas que viviam ao redor de minha morada. Novamente o odor fétido penetrou em minhas narinas, mais forte, mais repugnante, causando-me uma breve tontura e ânsia de vomitar. Curvei o corpo, abaixando a cabeça. Respirei profundo. Tosse, tosse que me atormenta. Expeli mais uma nódoa que caiu diante de meus pés descalços. O ruído novamente aconteceu. Ergui a cabeça e, mesmo com a visão nebulosa, divisei alguma coisa nas penumbras do beco.

Meu olhar se fixou, apesar da escuridão, naquilo que vorazmente procurava por alguma coisa na imundície do pátio. Parecia um bicho a revolver o lixo. Indiferente a minha presença, ele continuou a derrubar as latas e latões enferrujados. O bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato. Era um animal de compleição grande e robusta. Seus pêlos eram abundantes, na cabeça e na face oculta pelas trevas. Ele revirava tudo, catando comida entre os detritos. A sofreguidão que o dominava, na procura de algo, mesmo em decomposição avançada, chamou-me atenção. Fez-me lembrar a sensação torturante que a fome causa, vivida por muitos e desconhecida por poucos. A dor aguda e visceral que se espalha pelo abdômen e depois atinge a cabeça. A insuportável aflição que domina os sentidos e a consequente prostração. Devaneios à parte, quando o bicho achava alguma coisa, suas patas não examinavam e seu focinho não cheirava. Ele devorava com avidez e violência, na tentativa perseverante de extinguir a fome que o ensandecia.

Tosse, tosse que me atormenta. Ela fez o animal parar repentinamente. Empertiguei-me e me afastei um pouco da janela, tomado por um medo que até hoje não sei explicar. O animal caminhou devagar por sobre os detritos e se aproximou do muro de minha casa. Sua atitude era rude, selvagem. Embora longe de suas garras, que deveriam ser afiadíssimas pelo estrago que fez no lixo, fiquei atemorizado com sua aproximação. O brilho de seus olhos selvagens me fulminaram e um calafrio percorreu minha espinha tão dolorida. Ele avançou em minha direção e... meu Deus, o bicho era um homem!

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