(em memória de Manuel Bandeira)
A tosse impunha noites insones marcadas pela intermitência do sono. Ah,
como me fazia falta dormir. Deixar-me arrastar pelo entorpecimento poderoso
do cansaço causado pela dispneia e cair lasso sobre a cama coberta
por lençóis amarfanhados. Meu braço percorria a superfície
da cama e fria era ela. Percebia a ausência do torso nu, de seios descobertos.
Ela estava apenas nas profundezas de minha mente. Bela e sedutora. Não
pude sorrir pelo prazer da lembrança, pois naquele instante um odor abjeto
invadiu não somente a janela aberta, mas também minhas narinas,
dificultando-me ainda mais de respirar. Tosse, tosse que me atormenta. Queria
eu num sobressalto sentar-me na cama. Contive-me em levantar devagar e sentar
na beira do colchão mole e fedorento pelos meus suores noturnos. Meu
olhar soturno foi atraído pelo bafejo frio que penetrou pela janela.
Que cheiro horrível. Fechei mais um botão do pijama enxovalhado
e fiquei de pé. As costas doíam. Segundo o doutor era hérnia
de disco. Lombar. Velha companheira. Tosse, tosse que me atormenta. Expectorei
uma nódoa avermelhada que, fugidia, precipitou-se de minha boca seca
e caiu no balde que, todas as noites, adormecia ao lado da cama. Pensei em beber
um copo d'água. Limpar a boca do gosto amargo que permaneceu. Súbito,
um ruído metálico me deteve. Ele se repetiu. Originava-se do beco
que ficava ao lado de minha casa. Devagar, caminhei até a janela.
Meu quarto ficava no segundo pavimento da casa, cuja janela se debruçava
sobre o beco. Ele não era extenso, mas servia perfeitamente ao descarte
de restos e imundícies das pessoas que viviam ao redor de minha morada.
Novamente o odor fétido penetrou em minhas narinas, mais forte, mais
repugnante, causando-me uma breve tontura e ânsia de vomitar. Curvei o
corpo, abaixando a cabeça. Respirei profundo. Tosse, tosse que me atormenta.
Expeli mais uma nódoa que caiu diante de meus pés descalços.
O ruído novamente aconteceu. Ergui a cabeça e, mesmo com a visão
nebulosa, divisei alguma coisa nas penumbras do beco.
Meu olhar se fixou, apesar da escuridão, naquilo que vorazmente procurava
por alguma coisa na imundície do pátio. Parecia um bicho a revolver
o lixo. Indiferente a minha presença, ele continuou a derrubar as latas
e latões enferrujados. O bicho não era um cão, não
era um gato, não era um rato. Era um animal de compleição
grande e robusta. Seus pêlos eram abundantes, na cabeça e na face
oculta pelas trevas. Ele revirava tudo, catando comida entre os detritos. A
sofreguidão que o dominava, na procura de algo, mesmo em decomposição
avançada, chamou-me atenção. Fez-me lembrar a sensação
torturante que a fome causa, vivida por muitos e desconhecida por poucos. A
dor aguda e visceral que se espalha pelo abdômen e depois atinge a cabeça.
A insuportável aflição que domina os sentidos e a consequente
prostração. Devaneios à parte, quando o bicho achava alguma
coisa, suas patas não examinavam e seu focinho não cheirava. Ele
devorava com avidez e violência, na tentativa perseverante de extinguir
a fome que o ensandecia.
Tosse, tosse que me atormenta. Ela fez o animal parar repentinamente. Empertiguei-me
e me afastei um pouco da janela, tomado por um medo que até hoje não
sei explicar. O animal caminhou devagar por sobre os detritos e se aproximou
do muro de minha casa. Sua atitude era rude, selvagem. Embora longe de suas
garras, que deveriam ser afiadíssimas pelo estrago que fez no lixo, fiquei
atemorizado com sua aproximação. O brilho de seus olhos selvagens
me fulminaram e um calafrio percorreu minha espinha tão dolorida. Ele
avançou em minha direção e... meu Deus, o bicho era um
homem!