(para todos aqueles que perderam alguém que muito amaram)
Olhando assim, em retrospectiva, parece mais natural do que realmente foi. Parece
óbvio, inexpugnável. Parece que foi ontem, e não foi. Parece
que ela esteve aqui do meu lado, desde sempre, e que eu não preciso mais
que um pulo para alcançar sua cama, e acordar a dorminhoca a dormir sem
véus ou lençóis.
Talvez o esforço (sempre consciente) que eu faça para me apartar
do meu objeto de eterno desejo e sofrimento, tenha feito de mim um alguém
aterrorizado pelo genocídio da emoção. Talvez a dor da
perda me tenha transformado em vítima e algoz de mim. Talvez... Bem,
talvez eu não devesse seguir com essas lembranças de ontens.
Por mais longínquo que pareça ser, a cantilena monótona
e rouca de Agnes, me arrefece o entusiasmo até hoje, de dor e de memória,
pela saudade eloquente dos nossos tempos de menina. Pela cidade que nos
viu nascer e morrer, pela face gloriosa dessa morte-vida que é, senão,
uma pequena linha na história universal.
Nascer é morrer pouco a pouco, isso todo mundo sabe. Só que eu
não sabia. Eu e minha fé cega na faca amolada da vida.
Agnes sempre me dizia:
- Vamos combinar, eu nasci pra ser estrela! No dia em que eu for cantora reconhecida
arrumo um jeito de te publicar, e fazer com que o mundo saiba de ti. Rubia Woolf,
Rubia Dickinson, Rubia Stein... não, não... Rubia Mansfield: a
maior promessa da literatura contemporânea. Promessa não, realização!
Eu sempre ria daquela explosão-menina que era Agnes, do seu impulso
diabólico de me torturar com sua santidade de louca, porque eu sempre
achei que os maiores santos fossem loucos, no melhor sentido da palavra, e sempre
acreditei que loucos sem menores virtudes também haveriam no fundo de
ter vocação para santo.
Era única, a menina Agnes. Seu sorriso era como o da foto. Ela sempre
seduzia os menestréis, com a voz entorpecente, e o jeito morno de dizer
sim. Não havia quem passasse neutro à uma audição
com ela. As chansons francesas eram as suas preferidas.
- Minha Edith Piaf - eu implorava, cante para mim, que sou uma desditosa e
preciso me matar! Não há melhor maneira de morrer que ao som de
uma cantiga francesa. Nem Ana Karenina morreu de maneira tão graciosa.
Risos novamente. Gargalhadas de desejo e sal. Éramos atrizes da Companhia
de Artes Dramáticas das Mulheres Enjeitadas, e outras tantas brincadeiras.
Amadoras na vida real.
Éramos desde sempre, Agnes e Rubia. Éramos um vício, a
mão e a luva, o vinho e o Baco, numa amizade sem fim, porém ambígua,
porém necessária, porém vida.
Não obstante visitá-la hoje com flores, não ouso eu mesma
mais roubar uma pétala que seja do jardim da vizinha, como quando fazíamos
na infância. Roubar flores sem Agnes, seria arrancar com a mão
o cheiro da rosa, e fazê-la murchar só com o olhar. De tanta saudade.
No dia em que me deparei com aquelas asas quebradas de pássaro prenhe,
no dia em que divisei aquele olhar triste grasnando como um corvo a dor de perder
o voo, um arrepio de horror me subiu pela espinha, como que predizendo
o futuro, como que antecipando, em recado, a minha despedida.
Eu a vi naquele bicho, adivinhei Agnes nele, vi a menina que ela era, brincando
com os arvoredos, roçando com as cores, inventando modinhas, tingindo
de púrpura o papel, que também chamuscava no cabelo, ensaiando
a morte no pássaro de asa quebrada, arrependido por ambicionar o voo
mais arriscado e bonito de sua curta existência de pardal.
Aquele espantalho de ave me assustou, agonizando no túmulo dos meus
dedos. Era Agnes que eu via em olhos baços de adeus.
Foi assim que passei a guardar a foto de nós duas na carteira.